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Marco Paulo — e este dia e esta última homenagem fazem-nos pensar nisto — foi o lado alegre dos portugueses de que tão pouco se fala
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Marco Paulo — e este dia e esta última homenagem fazem-nos pensar nisto — foi o lado alegre dos portugueses de que tão pouco se fala

PEDRO ROCHA/OBSERVADOR

Marco Paulo — e este dia e esta última homenagem fazem-nos pensar nisto — foi o lado alegre dos portugueses de que tão pouco se fala

PEDRO ROCHA/OBSERVADOR

O adeus a Marco Paulo, por uns 10 milhões de amores

No funeral do mais popular dos românticos, fica esta ideia para uma canção: no fim, o que importa é a alegria que deixamos. Assim celebrou a multidão, num país tantas vezes envergonhado de ser feliz.

É um dia triste de outono como se precisássemos de um para mostrar, alguma vez, a alguém que não soubesse o que o outono é: o outono é isto, diríamos então, abrindo os braços. Este cinza, estas nuvens, este chuvisco, estes carris e estas pedras da calçada perigosamente molhados, estes casacos tirados dos armários para apertar contra os primeiros arrepios do ano. O dia da mudança da hora, se precisasse de qualquer coisa mais para ser ainda mais exemplar. O dia em que entramos pela metade escura do ano adentro, longe já da beleza dourada de setembro, que tantos melancólicos gostam de cultivar. Não.

O último sábado de Outubro é coisa onde já nem o mais deprimido encontra conforto: é um bom dia para morrer, como diria Kiefer Sutherland numa inesperada frase de abertura de filme, idos longínquos de Flatliners. Somado ao fado e ao diagnóstico de crónica melancolia nacional, bom dia, dir-se-ia, para dizer enfim adeus ao rei da música popular.

Mas isso seria apenas a metade óbvia da história.

Abrigados de qualquer possibilidade de aguaceiros ou interpelação pelas muitas câmaras de televisão apontadas lá fora, muitos admiradores de Marco Paulo (que morreu na quinta-feira, 24 de outubro, aos 79 anos) aguardam junto às portas da igreja que estas se abram para a missa marcada para as 14h30. Uma rosa branca no ar, depois outra, um cachecol da tour dos 50 anos de carreira; uma lágrima no olho, uma ou outra conversa sobre o ligeiro atraso na cerimónia.

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Num instante, tinha-se espantado a tristeza. Perdido o respeitinho ao cinzentismo maldisposto do luto. "Maravilhoso Coração". Claro. Estava mesmo a pedi-las: tudo de coração cheio a cantar

PEDRO ROCHA/OBSERVADOR

Até que alguém decide arriscar o que todos parecem com medo de fazer: cantar. E o que lhe sai é Eu Tenho Dois Amores. Ainda não ia a meio destas palavras e já toda a multidão aglomerada na entrada da Basílica da Estrela se lhe tinha juntado. Mais rosas brancas no ar, telemóveis a documentar tudo para dizer que, um dia, se esteve ali, alguns chapéus-de-chuva erguidos – o que se tivesse à mão e pudesse levantar ao céu, acompanhando a toada da canção.

E num instante, tinha-se espantado a tristeza. Perdido o respeitinho ao cinzentismo maldisposto do luto. Veio uma segunda: Maravilhoso Coração. Claro. Estava mesmo a pedi-las: tudo de coração cheio a cantar. Aplausos. O senhor que lidera as hostes arrisca então os primeiros versos de um terceiro tema, mas a senhora ao lado dá-lhe uma cotovelada: “Essa não. Ninguém sabe essa”, com uma noção de espectáculo que o homenageado, certamente, não desdenharia. Tudo bem; há muitas mais donde estas vieram. E avança-se, sem medo, para Taras & Manias. Mexe e remexe à porta da igreja. Uma ou outra pessoa não evita um bambolear de anca.

E esta, ali prontamente demonstrada, é que era a segunda e mais importante metade desta história: Marco Paulo era alegria. E alegria era o que continuava a dar a todas estas pessoas, mesmo neste dia quase caricatural de outono. Em menos de nada, vinha o caixão da capela mortuária e abriam-se as portas da igreja para que entrasse. “Marco! Marco! Marco!”, grita-se a compasso e ecoa pelas abóbodas do templo. Palmas sentidas, arrepios que já não do tempo fresco. As lágrimas agora a correr muito abundantemente.

Saída da urna que transporta o cantor Marco Paulo, que faleceu vítima de doença prolongada, na Basílica da Estrela, em Lisboa, 26 de outubro de 2024. O cantor Marco Paulo foi o intérprete de êxitos como "Eu tenho dois amores" e "Maravilhoso coração", e recebeu um Disco de Diamante, por mais de 1,5 milhões de discos vendidos. FILIPE AMORIM/LUSA

“Marco! Marco! Marco!”, grita-se a compasso e ecoa pelas abóbodas do templo. Palmas sentidas, arrepios que já não do tempo fresco. As lágrimas a correr muito abundantemente.

PEDRO ROCHA/OBSERVADOR

Lá dentro, o padre Paulino não deixaria de notar o mesmo que nós: o que ali na entrada ficara demonstrado era que este não poderia ser um momento de tristeza, mas de ação de graças. “Será que acreditamos mesmo na ressurreição?”, perguntará, também apoiado na leitura de hoje, que é do Evangelho de São João, quando Jesus Cristo visita as irmãs de Lázaro, por agora, ainda morto. “Com a morte, acaba uma vida; com a morte, começa uma vida nova”, diz. Marco Paulo era um homem de fé, como tantas vezes assumiu. Mas o padre Paulino tem o cuidado de deixar algumas palavras também para quem não possa dizer o mesmo: o que importa, no fim, é a alegria que fomos capazes de espalhar à nossa volta.

Marco Paulo teve uma carreira de quase seis décadas ao longo da qual chegou, indiscutivelmente, a gente de todas as gerações, mas é impossível não notar o número de senhoras “de uma certa idade” — diriam os Divine Comedy — aqui hoje presentes. Os cabelos de muitas cores e muitos graus de prata, que Marco Paulo acompanhou desde que eram ainda de muitos outros tons. Foi tantas vezes através delas, dos seus rádios, das suas televisões, dos seus discos e cassetes, dos seus simples cantarolares pela casa, pelo pátio, mesmo rua afora, que Marco Paulo chegou a todos nós, os filhos, os netos, os bisnetos, os vizinhos, os amigos.

Marco Paulo — e este dia e esta última homenagem fazem-nos pensar nisto pela primeira vez — foi o lado alegre dos portugueses de que tão pouco se fala. “Les Portugais sont toujours gais”, dizem os franceses numa expressão em que pensamos pouco e em que talvez nos revamos ainda menos. É muito possível que o dito, aliás, venha mais do jogo de palavras que permite do que da sua verdade incontestável, mas di-lo-iam os nossos anfitriões, no nosso maior destino de emigração, se não vissem, pelo menos, alguma verdade nisto? Desde quando é que deixámos que o fado dissesse tudo o que há a saber sobre nós?

Um senhor mostra um vinil antigo de Marco Paulo na janela. Uma senhora no cortejo comenta que, a esta hora, estaria a dar o programa dele. Duas ou três pessoas pedem o Panteão

PEDRO ROCHA/OBSERVADOR

Marco Paulo foi, de certo modo, o reverso da medalha representada pela sua amiga Amália (que já de si tanta luz que antes não havia no fado nele deixou entrar). Foi a voz do povo sempre que ele não era triste, quando estava apaixonado, quando era dia de festa.

As lágrimas só hão-de voltar, e em força, quando discursar Pedro Silva, o mais novo dos quatro sobrinhos de João Simão da Silva, um homem que, para os outros, foi Marco Paulo, e para eles foi o tio. E que foi sempre forte e crente e pensava, até há poucos dias, que ainda ia vencer o cancro outra vez e voltar o gravar o seu programa e cantar para o seu público.

Dali a pouco, subiremos todos o quilómetro e pouco que leva até ao Cemitério dos Prazeres. Rua afora, canta-se Ninguém, Ninguém, Nossa Senhora e Maravilhoso Coração. Mas é Sempre que Brilha o Sol, como se fizesse troça do outono sombrio cá fora e lhe dissesse que a realidade climatérica nada importa perante o que sentimos cá dentro, que de novo abre sorrisos nos rostos e deixa no ar o tom em que a canção deve ficar.

Ao virar para a Rua Saraiva de Carvalho, um senhor mostra um vinil antigo de Marco Paulo na janela. Uma senhora no cortejo comenta que, a esta hora, estaria a dar o programa dele. Duas ou três pessoas pedem o Panteão. Mas o lugar de Marco Paulo é aqui: no coração de toda esta gente.

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