No percurso político de Sá Carneiro, o dado mais importante é talvez este: a simetria entre a sua posição política na ditadura, antes de 1974, e em democracia, depois de 1974. Antes e depois, Sá Carneiro representou o mesmo projecto – fazer de Portugal uma sociedade como as da Europa ocidental. Antes e depois, bateu contra a mesma muralha: gente que recusava esse objectivo, e outra gente que, aceitando-o, preferia “evoluções na continuidade” ao risco das rupturas necessárias para chegar lá. Por isso, antes de 1974, havia quem, sem gostar da ditadura salazarista, estivesse disposto a deixá-la arrastar-se; e, depois de 1974, houve outros que, condenando embora a revolução comunista de 1975, nunca mais se decidiam a liquidá-la. Para eles, cheios de moderações e de calculismos, Sá Carneiro foi sobretudo um “grande agitador”, como lhe chamou Eduardo Lourenço. Antes de 1974, disseram que se passara para a “subversão”; depois, que era “fascista”. Esteve quase sempre sozinho na elite política. Mas o ponto é que nunca esteve sozinho no país. Em 7 de Dezembro de 1980, três dias depois da sua morte, 2,3 milhões de portugueses – quase metade do eleitorado — ainda votaram num candidato presidencial que, como toda a gente sabia, tinha sido quase só o candidato dele. No fim, era essa a sua força.
Em ditadura
Francisco Sá Carneiro foi eleito deputado pelo Porto em 1969, numa lista da União Nacional. Chegava tarde à política, aos 35 anos. Sob a ditadura salazarista, como em regimes anteriores, quase só fazia política em Portugal quem já tinha familiares na política, e por isso começava-se geralmente jovem, nos organismos do Estado ou nos movimentos da oposição. A família de Sá Carneiro já constava da oligarquia salazarista há muito tempo. O pai, o advogado portuense José Gualberto de Sá Carneiro, tinha sido deputado entre 1938 e 1957. O tio materno, o professor universitário João Pinto da Costa Leite (conde de Lumbralles), era um dos colaboradores mais próximos de Salazar. Entre 1940 e 1955, fora ministro das Finanças e depois ministro da Presidência. Mas em 1969, essa província conservadora, católica e monárquica, donde vinha a família de Sá Carneiro, começara a deixar de apoiar automaticamente a ditadura. Em 1958, as críticas do bispo do Porto a Salazar foram um primeiro sinal. Na década de 1960, apareceu mesmo uma oposição de monárquicos e católicos, indignados com a repressão política ou a guerra em África. Mas, mais importantes do que esses, eram os que simplesmente se abstiveram de apoiar o regime como antes teriam feito. Não se tratava apenas de uma aspiração à liberdade. Era ainda outra coisa: uma vontade de autenticidade, num regime, como a ditadura salazarista, em que nada era o que parecia, a começar pelas leis e pelas instituições. Sá Carneiro, com a sua mulher, militou no movimento católico do pós-guerra, assente na ideia de viver a religião no quotidiano. Isso fê-lo como ele ia ser sempre, muito sério e muito intenso.
Em 1969, a sua candidatura à Assembleia Nacional numa lista da União Nacional significava o sucesso de Marcello Caetano em recuperar para o regime gente que Salazar perdera. Mas era uma recuperação com condições, como Sá Carneiro pretendeu logo tornar claro, para desagrado de Caetano. Tratava-se de colaborar, não na manutenção da ditadura, mas numa transição ordenada para uma democracia de tipo ocidental. Sá Carneiro nunca teve outro ideal para o país: um regime e uma sociedade como as da Europa ocidental do pós-guerra, com um Estado de direito, uma economia de mercado e serviços públicos de educação, saúde e segurança social. Nos anos 1960, tudo isso já parecia possível em Portugal. O país já era membro da NATO e da EFTA. Em 1960, pela primeira vez na história do país, toda uma geração frequentou o ensino básico. Com a emigração e a industrialização, acabava a antiga sociedade rural, e ampliava-se a classe média urbana. A televisão, o cinema, as revistas, e, para alguns, as viagens ou a emigração alimentavam novas aspirações, que podiam ser resumidas nisto: uma vida como se vivia na Europa ocidental. Porque não? Foi essa a profissão de fé que Sá Carneiro fez logo em 1969: “Recuso-me a aceitar (…) que o nosso povo tenha por natureza de ficar eternamente sujeito ao paternalismo de um homem, de um sistema, ou de uma classe. Recuso-me a admitir que, ao contrário dos outros povos, não possamos ser capazes de conciliar a liberdade com a ordem, o progresso com a segurança, o desenvolvimento com a justiça”.
Um “inocente”
Mas porquê escolher a ditadura, mesmo sem Salazar, para conduzir o país para a liberdade? Porque a maior parte da oposição não desejava um regime como os da Europa ocidental. A oposição, depois dos jacobinos e dos comunistas, recebera uma nova vaga esquerdista, a sonhar com a China maoísta. Insistia em conceber Portugal como o país dos anos 40, à medida de uma experiência de colectivismo estalinista. A ditadura que, apesar de tudo, inserira o país na NATO e na EFTA, dava mais garantias de uma opção ocidental. Era o que esperava Sá Carneiro. Não era o único na Assembleia Nacional. Ali se ligou a outros deputados, como Francisco Pinto Balsemão, Joaquim Magalhães Mota, João Pedro Miller Guerra e João Bosco Mota Amaral. Fora da Assembleia Nacional, através de uma associação, a SEDES, atraíram alguma gente da oposição, que no início da década de 1970, ao contrário do que dizia em público, acreditou em privado que talvez o regime acabasse por mudar. Derrubá-lo pela força é que não parecia fácil. Resistira a nove anos de guerra em África, sem grandes incidentes. Num país com taxas de crescimento económico de 10% ao ano, a contestação parecia confinada às universidades. Muita gente acreditou assim que Marcello Caetano pudesse usar o poder da presidência do conselho, de quem dependiam tradicionalmente a PIDE e a censura, para fazer outro regime emergir do Estado Novo.
Na Assembleia Nacional, Sá Carneiro dedicou-se especialmente à questão das liberdades e dos direitos e garantias. Esteve aí a ênfase do seu projecto de revisão constitucional de 1971: por um lado, garantir direitos e liberdades; por outro, retornar à eleição directa do presidente da república e aumentar as competências da Assembleia Nacional, isto é, preparar uma orgânica de poderes adequada a uma transição democrática. Os deputados que com ele subscreveram essa proposta ficaram a ser os “liberais”, embora nunca tivessem organização nem soubessem ao certo quem pertencia ao grupo. Marcello Caetano mudou os nomes às coisas e, inicialmente, aliviou a repressão. Mas depressa se percebeu que a sua “liberalização” consistia, não na mudança do regime, mas apenas na captação dos “liberais”. Marcello Caetano queria manter os “liberais” como uma minoria para contrabalançar outra minoria, a dos “ultras” que desejavam a continuação da ditadura tal como Salazar a definira. Marcello Caetano podia assim emergir como um “moderado” entre dois “extremos”, o árbitro cheio de bom senso entre os que queriam mudar tudo e os que não queriam mudar nada. Com ele, haveria uma “evolução na continuidade”, sem retrocessos mas também sem saltos para a frente.
As suas razões eram muitas, a começar pela situação no ultramar, que lhe servia para pedir tempo a todos. O ultramar, em 1970, não era pouca coisa. Sá Carneiro visitou-o nestes anos, e também ficou impressionado. Em nenhum lado havia tantos portugueses a viver tão bem como em Luanda ou em Lourenço Marques. Não era fácil pôr tudo isso em risco. Mas em 1973, sobretudo após a crise do petróleo, que marcou o fim dos anos de crescimento económico do pós-guerra na Europa, o tempo de Marcello Caetano pareceu acabado. O exército agitava-se. Os generais conversavam e os majores e capitães faziam abaixo-assinados. Sá Carneiro não esperou mais. Renunciou ao mandato de deputado, começou a colaborar no novo jornal Expresso, e apareceu num encontro de “liberais” em Julho, em Lisboa. Marcello Caetano ironizava: “Eu por mim sempre me tive na conta de liberal: mas não pertenço ao número destes inocentes”. Era isso que Sá Carneiro lhe parecia: um “inocente”, um ingénuo. Mas já ninguém tinha ilusões. A ditadura assentava nas forças armadas, mais do que em qualquer organização civil de apoio. As forças armadas iam decidir.
Na pré-democracia
Em Abril de 1974, Sá Carneiro era muito mais conhecido dos portugueses do que qualquer dos líderes dos outros partidos, cujos nomes a censura não deixara aparecer nas televisões. Não estivera preso nem exilado, mas enfrentara a ditadura na Assembleia Nacional, sem quaisquer ambiguidades. Foi o primeiro político civil a falar na RTP. Aderiu imediatamente à nova situação e fundou logo um partido, o Partido Popular Democrático, que apresentou em Maio de 1974, na companhia de Francisco Pinto Balsemão e Joaquim Magalhães Mota.
À volta dele, no seu partido, juntaram-se muitos dos jovens advogados, professores universitários e economistas que frequentavam a SEDES e liam o Expresso. Vinham quase todos do activismo católico e dos gabinetes da administração pública e das empresas, cheios de vontade de construir uma espécie de Suécia, eficiente e justa. Não deveria haver outro grupo com tantos potenciais futuros ministros, secretários de Estado e directores-gerais. Pareciam as pessoas adequadas para governar um país, e estavam com Sá Carneiro. E ele parecia estar com o presidente da república, o general Spínola, que então ainda era tratado como uma espécie de De Gaulle da nova situação política. Se Sá Carneiro tivesse sido primeiro-ministro em 1974, não teria sido uma surpresa. Não foi, mas quase. No I Governo Provisório, apareceu como o braço direito do primeiro-ministro, o professor Adelino da Palma Carlos. Por um arranjo ocasional, foi mesmo o primeiro político, depois de Salazar, a residir em São Bento.
A segunda derrota
Em Julho de 1974, Sá Carneiro foi o único líder partidário a secundar uma proposta do primeiro-ministro para realizar eleições presidenciais antes de quaisquer outras eleições, de modo a dar a Spínola uma autoridade popular. Se tivesse resultado, teria feito de Spínola o condutor da transição democrática. Mas não resultou. Foi o segundo revés da vida política de Sá Carneiro, depois da sua frustrada passagem pela Assembleia Nacional de Marcello Caetano. Os majores e capitães que, em Lisboa, se tinham auto-proclamado representantes do MFA recusaram qualquer presidencialismo. Os partidos políticos não mostraram nenhum entusiasmo por um gaullismo à portuguesa, que os marginalizaria. Palma Carlos demitiu-se, e Sá Carneiro também. Quando Spínola forçou a nota em Setembro de 1974, com a manifestação da “maioria silenciosa”, já não contou com Sá Carneiro. O que estava em causa era o ultramar. Spínola fora cedendo na Guiné e depois em Moçambique, mas queria fazer valer a promessa de eleições em Angola. Perdeu e teve de abdicar da presidência da república.
As forças armadas, depois do 25 de Abril, já não estavam em condições de sustentar nenhum projecto no ultramar que implicasse a continuação da guerra, como seria a realização de eleições livres, recusadas pelos partidos independentistas armados. A questão ultramarina deu o poder nas forças armadas a uma “esquerda militar”, e, a partir do Outono de 1974, essa “esquerda militar” sustentou a infiltração e o controle do Estado, dos organismos corporativos, das escolas e dos meios de comunicação social pelo PCP e pela extrema-esquerda. O resultado foi uma súbita esquerdização da vida portuguesa, que afectou todos os outros partidos, incluindo o PPD de Sá Carneiro. De repente, o socialismo tornou-se o mínimo denominador comum. No PPD, a elite dirigente encarou a derrota de Spínola como uma derrota de Sá Carneiro. Todos aqueles advogados, professores universitários e economistas estavam agora angustiados em se darem aparências de esquerda, e iriam manter esse trauma nos anos seguintes. Nunca se conformaram com o facto de a proibição dos demais partidos da direita ter feito do PPD e do CDS a direita efectiva do regime.
Numa semi-democracia sob vigilância militar
Nas eleições para a Assembleia Constituinte de Abril de 1975, o PCP e a extrema-esquerda não provaram valer, juntos, mais do que 20% do eleitorado. Mas, além do que valiam em votos, havia o que, através da esquerda militar, valiam num exército da NATO agora transformado numa espécie de “movimento de libertação” do Terceiro Mundo, que dispunha de propriedades e de vidas, com ocupações de casas, fábricas e quintas, e prisões sem culpa formada. Foi o Processo Revolucionário em Curso (PREC).
Sá Carneiro, doente, não esteve em Portugal nesse “Verão Quente” de 1975. Quando regressou, em Setembro, chegou precisamente no momento em que os “moderados” do MFA, com a ajuda da Igreja e dos países da NATO, pareciam ter conseguido deter a deriva revolucionária. O VI Governo Provisório já era o governo deles. Faltava o PCP e a “esquerda militar” aceitarem um compromisso. A situação não era de todo estável, mas Sá Carneiro não hesitou em contribuir para a agitar. Não se deu por satisfeito com a simples contenção do PREC. Exigiu que o PCP saísse do governo e que o exército voltasse aos quartéis. O 25 de Novembro de 1975 não o deixou mais satisfeito. A “esquerda militar” foi finalmente desmantelada, mas o PCP manteve muito do que conquistara — as nacionalizações, a reforma agrária. Mais: os “moderados” do MFA impuseram o prolongamento do poder militar revolucionário, através do Conselho da Revolução.
A nova evolução na continuidade
No fim de 1975 e no princípio de 1976, Sá Carneiro foi assim confrontado com uma situação que já conhecia: outra vez a “evolução na continuidade”. Tal como em 1970, havia boas razões para esse arrastamento. Nunca teria sido fácil desmantelar o Estado dentro do Estado que os comunistas tinham construído à sombra do MFA — os sindicatos, as terras e empresas ocupadas –, sem arriscar conflitos e repressões. Mas, tal como acontecia no tempo de Marcello Caetano com o ultramar, a relutância de enfrentar as “conquistas da revolução” tinha também a ver com uma nova classe política que cultivava essa dificuldade de modo a identificar o seu poder com um papel de árbitro. Era nitidamente o caso do PS, que depois de resistir ao PCP em 1975 parecia agora interessado em ser a “charneira” entre dois “extremos”, o PCP de um lado e a “direita revanchista” (isto é, o PSD e o CDS) do outro. Por isso, os governos socialistas preferiram sempre enfrentar os problemas de viés: por exemplo, usaram a desvalorização monetária (139% em relação ao marco alemão, entre 1973 e 1978) para diluir os compromissos sociais insustentáveis da revolução, e para dar competitividade a uma pequena e média indústria exportadora a norte. Nada, porém, correu bem. Em 1978, os desequilíbrios financeiros impuseram um pedido de ajuda ao FMI. Sá Carneiro comentou sem rodeios: “Deixámos de facto de ser um país adiado para nos transformamos numa Nação arruinada sob estrito controle dos credores”.
Tal como antes de 1974, não era fácil ir contra os arranjos da “classe dirigente situacionista”, como lhe chamou Sá Carneiro, sem parecer “radical” ou “insensato”. É verdade que havia um prémio eleitoral para o inconformismo: o CDS, que concorreu às eleições legislativas de 1976 depois de ter votado contra a Constituição, foi o único partido cuja votação cresceu em relação a 1975, duplicando. Mas o PPD, agora já PSD, não estava disponível para acompanhar Sá Carneiro em intransigências. Logo em Dezembro de 1975, mais de 20 deputados abandonaram o partido, horrorizados com o suposto “radicalismo” do líder. Sá Carneiro teve de recuar, o PSD votou a Constituição, e pagou o preço nas eleições de Abril de 1976 (passou de 26,3% para 24,3% do voto total). Era um partido regional, do norte e das ilhas. Talvez houvesse um número suficientemente grande de lesados da descolonização e das expropriações, mais os insatisfeitos da inflação e do desemprego, para aplaudir uma atitude de repúdio da revolução. Mas nas altas esferas, dentro e fora do país, ninguém queria uma ruptura, com mais conflitos. Não a queriam os militares, não a queria a Igreja, nem a queriam os EUA, que em Portugal, por via do embaixador Carlucci, sempre desprezaram a direita e preferiram experimentar (pela primeira vez) apostar numa esquerda moderada para acabar com uma revolução. O ponto estava em fingir que tudo era compatível. Por isso, em 1977, Portugal fez o seu pedido de adesão à CEE, apesar de ostentar um Conselho da Revolução e um regime de limitação à iniciativa privada sem paralelo em nenhuma democracia europeia. Mas a esquizofrenia de um país que pretendia integrar o clube das democracias europeias com instituições herdadas de uma revolução militar marxista não parecia incomodar ninguém, a não ser Sá Carneiro. Só ele, incansavelmente, criticava a “semi-democracia sob vigilância militar” que vigorava em Portugal.
Por volta de 1977, a nova elite política julgou descobrir um árbitro mais interessante do que o PS para a “evolução na continuidade”: o presidente da república, o general Eanes. Eanes não representava apenas as forças armadas. Era também uma esfinge, de poucas palavras, ditas em ocasiões solenes, que oscilava de um lado para o outro do espectro político. A partir de meados de 1978, começaram os “governos de iniciativa presidencial”. Umas vezes à direita, como com o governo de Mota Pinto, outras vezes à esquerda, como com o governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. O PCP tornou-se logo eanista. E uma parte do PS, do PSD e do CDS também. Todos queriam estar junto do poder, dos lugares no governo e na administração, mas também dos lugares de gestão no infindável catálogo de empresas públicas legadas pela revolução. Só o funcionalismo duplicou, durante estes anos, em relação à década de 1960, chegando aos 400 mil funcionários em 1979. Entre 1977 e 1979, falou-se em Lisboa de “bonapartismo” com grande excitação.
Sá Carneiro tentou tudo para formar uma maioria que pilotasse a transição do país para uma democracia plena. Essas tentativas serviram apenas para tornar patente o seu isolamento dentro da elite política. Em Novembro de 1977, demitiu-se da presidência do PSD. A determinada altura, a nova direcção chegou a proibir que ele escrevesse no jornal do partido, o Povo Livre. Como disse numa entrevista de Fevereiro de 1978, os seus adversários no PSD insistiam em “apresentar-me como o grande obstáculo a um entendimento com o PS”, de que, para eles, dependia a solução de todos os problemas. Como vinha do Porto, acusaram-no de representar contra eles, sensatos lisboetas da classe média, o povo reaccionário e caceteiro das províncias do norte. Sem apoio nas cúpulas, nunca faltou de facto a Sá Carneiro o entusiasmo das chamadas “bases”, muito mais à direita do que os dirigentes do partido. Foi isso que lhe permitiu regressar à liderança do PSD em 1978 e depois derrotar o movimento das “Opções Inadiáveis”, um documento subscrito por 43 dos 73 deputados do PSD. A questão, para os signatários desse documento, era evidente: queriam fazer “oposição dentro do sistema”, e não “oposição ao sistema”, “capitalizando o descontentamento”, como insinuavam que era a tentação de Sá Carneiro. Mas para Sá Carneiro, também tudo era muito evidente, como expôs num artigo de 6 de Dezembro de 1977: “Hoje é claro que a democracia portuguesa pode e deve salvar-se sem o Partido Socialista e, se necessário, contra o Partido Socialista”.
Uma “onda de fundo”
Em 1979, o seu “radicalismo” custou-lhe, mais uma vez, metade do grupo parlamentar do PSD. Quando fez uma aliança com o CDS e o PPM, a Aliança Democrática, todos os sábios do regime julgaram que cometera um erro de palmatória. Era uma aliança de “direita”, sem o PS, apesar de contar com alguns ex-socialistas (os “reformadores”). Como é que podia esperar prosperar num país de esquerda? A resposta esteve na dupla vitória da AD em Dezembro de 1979, nas eleições legislativas e nas autárquicas. Pela primeira vez na história de Portugal, uma força de oposição passava ao governo por via eleitoral. Graças ao sistema eleitoral, que garantia o segredo do voto e a limpeza do apuramento de resultados. Mas graças também a uma sociedade largamente inconformada com a mediocridade que lhe prometia a política de estagnação e inflação do regime, depois das grandes expectativas suscitadas pelo crescimento dos anos 60 e até pela própria revolução.
O que via o país em Sá Carneiro? Um político de ar reservado e cortante, “assomadiço”, como dizia Mário Soares. Mas, com tudo isso, capaz de uma grande “clareza”, na política, como na vida pessoal, onde não dissimulou a sua relação com Snu Abecassis. Precisou, no entanto, de jurar que não era de direita e que era social-democrata. O objectivo era sossegar os seus correligionários, que não queriam ser excluídos de um poder que estava à esquerda. De facto, a sua “social-democracia” nada tinha a ver com o que como tal era entendido na Europa, um movimento político de origem marxista e assente nos sindicatos. A “social-democracia” do PSD referia, essencialmente, o modelo político-social da Europa ocidental, que todas as esquerdas então rejeitavam, incluindo uma parte do PS. Quanto à “direita”, desde 1974 que o PSD e o CDS eram a direita do regime, e vistos como tal. Em meados de 1978, segundo uma sondagem de opinião dirigida por Mário Bacalhau, 35% dos portugueses situavam o PSD à direita, 23% ao centro e apenas 2% à esquerda. Sobre Sá Carneiro, também não havia dúvidas. Era colocado à direita por 34% dos inquiridos, no centro por 16% e na esquerda por apenas 2%. Tinha uma imagem mais marcada à direita do que Mário Soares à esquerda (Soares era colocado à esquerda por 27% dos inquiridos, ao centro por 18% e à direita por 4%).
Sá Carneiro representou algo que, no Portugal do pós-revolução, nunca chegou a ter um nome próprio: uma política de liberalização e de reforço da sociedade civil perante o Estado. Era o que estava, muito claramente, no manifesto eleitoral da AD para as eleições legislativas de Outubro de 1980: “Rejeitamos e rejeitaremos o colectivismo nas suas diferentes expressões; a estatização atrofiante; o centralismo das decisões; o dirigismo cultural e ideológico; a unicidade sindical; a destruição da natureza e a degradação do ambiente; a duplicidade na defesa dos direitos do homem; a anarquia na vida social; a clandestinidade na economia; a violência e a corrupção em todas as suas formas”.
Esta liberalização que não se atreveu a dar a si própria o nome mais adequado correspondia também, no fim dos anos 1970, a uma mudança de opinião geral no Ocidente. Margaret Thatcher ganhou as eleições no Reino Unido em 1979, e Ronald Reagan seria eleito presidente dos EUA em Novembro de 1980. Depois dos consensos estatizantes do pós-guerra, ia voltar-se a acreditar que uma sociedade civil autónoma e mercados abertos eram os pilares mais adequados da prosperidade e da liberdade. Com Sá Carneiro, a AD foi o equivalente desse movimento que, em Portugal, corporizava também a aspiração de viver num país como os outros países da Europa ocidental. Adelino Amaro da Costa, do CDS, definiu o projecto como um “anti-PREC”: tratava-se de rejeitar a herança de 1975 e, por essa via, a ascendência das esquerdas. E embora, ao contrário do PREC, o “anti-PREC” seguisse uma via eleitoral e legalista, dependeu ainda das manifestações de uma juventude agressiva, de t-shirts e autocolantes, que tirou às esquerdas o domínio das ruas (“Assim se vê a força da AD!”).
Sá Carneiro esperava que esta “onda de fundo” não tivesse resposta do outro lado da política, já que o PS nunca se aliaria ao PCP, nem Mário Soares se dava bem com o presidente Eanes. No entanto, nada foi fácil para o governo da AD em 1980. Começou logo por enfrentar um veto do Conselho da Revolução à lei de delimitação dos sectores público e privado, seguido de rumores de um possível golpe militar supostamente promovido por conselheiros da revolução. A extrema-esquerda passou à luta armada, com as FP-25. O primeiro-ministro tornou-se alvo de uma campanha de descrédito pessoal sem precedentes, explorando a sua vida privada. O governo, no entanto, marcou o terreno. Deixou o neutralismo terceiro-mundista para afirmar uma opção ocidentalista, com uma condenação vigorosa da invasão soviética do Afeganistão. Relançou o processo de adesão à CEE. Não hesitou em medir forças com o presidente da república, deixando claro que não apoiaria a sua reeleição. As relações degradaram-se ao ponto de Sá Carneiro ter passado a boicotar quaisquer reuniões com o presidente.
De resto, o governo fez o que foi necessário para ganhar as eleições. Aproveitou a estabilização conseguida com o programa do FMI de 1978-1979 para revalorizar o escudo e proporcionar o primeiro aumento real do poder de compra desde 1974, mesmo se à custa das empresas exportadoras do norte. A AD aumentou a sua maioria nas eleições legislativas de 5 de Outubro de 1980. As perspectivas, no entanto, não eram boas. Não era difícil prever o segundo “choque do petróleo”, causado pela guerra Irão-Iraque. Mas o maior problema, para o estado-maior da AD, era outra vez Sá Carneiro. Pareceu-lhes um jogador inveterado, disposto a pôr em causa a maioria absoluta das legislativas de Outubro de 1980 apenas para derrotar o general Eanes nas presidenciais de Dezembro. Mas Sá Carneiro sabia o que fazia. Não lhe bastava um governo e uma maioria parlamentar: precisava também de um presidente. Como candidato, escolheu um general, Soares Carneiro. Para acabar com a tutela militar, convinha-lhe dispor de algum poder militar. No que dizia respeito à Constituição de 1976, não previa uma revisão negociada no parlamento com o Partido Socialista, mas uma revisão por referendo popular. Convinha-lhe também um presidente que patrocinasse essa ruptura por referendo.
O confronto com o general Eanes era muito arriscado. Numa sondagem de 1979, Sá Carneiro aparecia como o chefe partidário com quem mais portugueses simpatizavam. Mas em Eanes, Sá Carneiro defrontava uma figura política que era tão popular como ele. Mais: alguém que dizia em público ter o mesmo “ideal de sociedade” da AD. Mas o ideal não era a política: o meio é que era a política. E, aí, as diferenças eram enormes, entre a ruptura democrática de Sá Carneiro e a “evolução na continuidade” que o general Eanes representava, como guardião dos compromissos do 25 de Novembro. A morte, a 4 de Dezembro de 1980, nunca deixou ver até onde Sá Carneiro poderia ter ido, depois da previsível derrota nas eleições presidenciais do dia 7. O seu impulso reformista inspirou as revisões constitucionais de 1982 e de 1989. Portugal passou a ser finalmente uma democracia de tipo europeu ocidental, integrada na União Europeia, como ele sempre desejara. Mas se o objectivo foi alcançado, o caminho seguido não foi o dele. Se fizermos as contas a partir de 1969, foram precisos vinte anos para lá chegar. Vinte anos talvez não seja muito tempo na história de um país, mas foi certamente demasiado tempo para os portugueses que os tiveram de viver. Sá Carneiro, se quiserem, foi o nome da sua impaciência.