Em quase 150 dias de guerra na Ucrânia, as autoridades de Kiev já abriram mais de 600 processos contra agentes e oficiais ucranianos por suspeitas de traição ou colaboracionismo com Moscovo. A guerra, iniciada a 24 de fevereiro deste ano com a invasão do território ucraniano por parte das forças russas, já causou milhares de mortes entre a população civil — e os esforços por parte da Ucrânia no sentido de identificar e levar a tribunal os traidores e colaboracionistas permitem entender a profundidade com que Moscovo penetrou nas forças ucranianas com o objetivo de obter informação sensível e minar as operações ucranianas a partir de dentro.
O recente afastamento da procuradora-geral e do líder dos serviços de segurança deixou a nu uma realidade inelutável: pelo menos 60 operacionais daqueles dois organismos já se encontravam a trabalhar lado a lado com os russos. Zelensky já prometeu justiça para os traidores. Mas poderá revelar-se difícil conhecer a verdadeira dimensão da operação russa no interior das fileiras ucranianas. Afinal, quem são os altos responsáveis afastados por Zelensky até agora?
O amigo de infância e colega de curso que era visto como incompetente
A demissão que provocou mais estrondo no núcleo duro de Zelensky foi a de Ivan Bakanov, até aqui líder dos Serviços de Segurança da Ucrânia, sobretudo devido à história de amizade pessoal que partilha com o Presidente ucraniano.
De idades próximas, Bakanov e Zelensky eram amigos desde a infância, que passaram na cidade ucraniana de Kryvyi Rih, no centro do país, e a amizade perdurou até à universidade, onde continuaram juntos. Os dois foram colegas no curso de Direito na Universidade em Kiev e, mais tarde, viriam a trabalhar juntos quando Zelensky trocou o Direito pela comédia e Bakanov assumiu a liderança empresarial da produtora criada por Zelensky.
Após décadas de amizade e trabalho em conjunto, Zelensky levou Bakanov consigo quando se lançou na política, em 2017. Aliás, Bakanov foi o primeiro presidente do partido “Servo do Povo”, o movimento político batizado com o mesmo nome da série de comédia que lançou Zelensky para o estrelato — na qual o humorista interpreta, justamente, o papel de Presidente da Ucrânia.
Em 2019, Ivan Bakanov coordenou a campanha eleitoral de Zelensky nas eleições presidenciais e, após a vitória, foi levado por Zelensky para o círculo do poder. Naquele mesmo ano, Bakanov foi nomeado para a liderança dos Serviços de Segurança da Ucrânia, ficando também com a responsabilidade de coordenar o gabinete de combate à corrupção (em 2021, Bakanov ver-se-ia, ele próprio, implicado em esquemas de corrupção trazidos a lume pelos Pandora Papers). Na altura, a decisão de Zelensky foi criticada pela oposição, que considerava que Bakanov não tinha formação nem perfil para o cargo — mas Zelensky avançou na mesma com a nomeação do seu amigo e conselheiro de confiança.
Todavia, já durante o período da guerra, a relação entre os dois foi azedando gradualmente.
No mês passado, o Politico noticiava que Zelensky já estava a ponderar substituir o amigo de longa data por alguém com mais capacidade para coordenar os serviços de segurança em tempo de guerra. Aliás, segundo várias fontes então ouvidas pelo Politico, Zelensky e Bakanov já raramente conversavam (só mesmo em contexto oficial) e, dentro do palácio presidencial, reinava o descontentamento com a atuação de Bakanov no contexto da crise.
“Estamos muito insatisfeitos com o trabalho dele e estamos a trabalhar no sentido de nos livrarmos dele”, admitia em junho ao Politico um conselheiro de Zelensky. “Não estamos satisfeitos com a gestão dele, porque agora precisamos de capacidades de gestão anti-crise, e pensamos que ele não as tem.”
Um mês depois daquelas notícias, e numa altura em que a guerra na Ucrânia se aproxima da marca dos 150 dias, o gabinete presidencial de Kiev anunciou a demissão de Ivan Bakanov no mesmo dia em que revelou que o país já abriu 651 processos contra funcionários do Estado em várias posições devido a “atividades de traição e colaboracionismo”.
“Tal variedade de crimes contra os alicerces da segurança nacional do Estado e as ligações detetadas entre os funcionários das forças de segurança da Ucrânia e os serviços especiais da Rússia colocam questões muito graves em relação às lideranças em questão”, disse Volodymyr Zelensky num discurso gravado em vídeo e divulgado no domingo.
Embora não tenha feito nenhuma referência específica a eventuais atos de traição cometidos por Bakanov, Zelensky afirmou que as agências do Estado não funcionam sem “um líder eficaz” — sugerindo que Bakanov foi incapaz de controlar os serviços de segurança e de detetar atempadamente atos de traição.
Segundo a Reuters, 60 elementos dos serviços de informações comandados por Bakanov, a SBU, constam da lista de mais de 600 figuras afastadas por suspeitas de ligações a Moscovo.
A procuradora leal a Zelensky que se tornou o rosto da luta contra os crimes de guerra russos
Ao mesmo tempo que anunciou a demissão de Ivan Bakanov, o gabinete presidencial de Kiev anunciou também o afastamento de Iryna Venediktova, a procuradora-geral da Ucrânia.
Venediktova, uma procuradora leal a Zelensky desde 2018, tinha-se posicionado ao longo dos últimos meses como o rosto das investigações aos crimes de guerra cometidos pelas forças russas em solo ucraniano, multiplicando-se em declarações fortes e em promessas de justiça para o povo ucraniano. Apesar disso, antes da guerra, Venediktova já estava envolvida em polémicas, tendo sido várias vezes acusada pela oposição de obstaculizar investigações de corrupção que visassem Zelensky, os seus aliados ou o seu partido.
Antes de chegar à liderança do sistema judicial ucraniano, Venediktova era uma jurista de renome no país, que em 2018 se tornou conselheira jurídica de Volodymyr Zelensky, quando ele se preparava para se lançar numa carreira política, e fez parte das listas de Zelensky ao Parlamento ucraniano, sendo eleita em 2019.
No mesmo ano, Venediktova foi nomeada para um cargo de liderança na hierarquia do Ministério Público, subindo a procuradora-geral em 2020 — a primeira mulher no cargo —, apesar de formalmente os poderes executivo, legislativo e judicial estarem separados na lei ucraniana. A proximidade de Venediktova a Zelensky foi durante largos meses motivo de críticas por parte da oposição, que acusou a procuradora-geral de favorecer o partido de Zelensky.
Iryna Venediktova, que ganhou grande notoriedade com a sua campanha pública sobre a investigação e punição dos crimes de guerra cometidos pela Rússia na Ucrânia, sai pelo mesmo motivo que Bakanov: a existência de suspeitas de traição dentro da procuradoria, que levantam dúvidas sobre a eficácia da liderança de Venediktova.
Já esta segunda-feira, depois das notícias que davam conta das saídas de Ivan Bakanov e Iryna Venediktova, o gabinete de Zelensky informou que os dois não tinham sido formalmente demitidos, mas suspensos enquanto decorrem investigações sobre o que se passou sob a sua liderança.
Os dois generais “traidores” que não sabem qual a sua pátria
As duas saídas conhecidas este fim de semana juntam-se a um conjunto de outras demissões polémicas conhecidas nos últimos meses sob o argumento da traição e do colaboracionismo com os russos. A 1 de abril, pouco mais de um mês depois do início da guerra, Volodymyr Zelensky publicou na sua página do Facebook um discurso em vídeo anunciando a demissão de dois importantes generais ucranianos que classificou como “traidores”.
“Agora, não tenho tempo para tratar de todos os traidores. Mas, gradualmente, eles vão todos ser punidos”, garantiu Zelensky, num discurso em tom ameaçador dirigido sobretudo a todos os ucranianos que estivessem envolvidos em atos de traição ou de colaboracionismo.
“É por isso que o antigo chefe do departamento principal de segurança interna dos Serviços de Segurança da Ucrânia, Naumov Andriy Olehovych, e o antigo líder do departamento dos Serviços de Segurança da Ucrânia na região de Kherson, Kryvoruchko Serhiy Oleksandrovych, já não são generais”, anunciou Zelensky.
“Aqueles operacionais de entre os oficiais seniores que não tiverem decidido onde fica a sua pátria, que violarem o juramento militar de fidelidade ao povo ucraniano no que toca à proteção do nosso Estado, à sua liberdade e à sua independência, vão inevitavelmente ver-se privados dos seus títulos militares”, acrescentou ainda Zelensky. “Generais sem terra não pertencem aqui.”
Contudo, Zelensky não revelou com pormenor os motivos pelos quais estes dois generais em específico haviam sido afastados do serviço.
O procurador que passava informações aos russos em troca da própria segurança
Contudo, noutro caso conhecido, as autoridades de Kiev revelaram os detalhes da traição. Em abril, o procurador que liderava o departamento do Ministério Público ucraniano na região de Mykolaiv, no sul do país, foi detido pelas forças armadas ucranianas depois de se ter descoberto que estava a passar informações sensíveis sobre as operações militares ucranianas russas. Em contrapartida, o procurador recebeu dos russos a garantia de segurança no caso de a região sul da Ucrânia ser tomada pela Rússia.
A detenção foi anunciada pelos próprios Serviços de Segurança da Ucrânia, que divulgaram um vídeo em que é possível ver o momento em que os militares entram no escritório do procurador e o detêm no chão.
Na sequência da detenção, a ainda procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova, divulgou um comunicado em que sublinhava que o procurador em questão estava “envergonhado” pelo que tinha feito. “Ele tinha esperança de continuar a trabalhar para o Ministério Público no caso de haver uma captura da região por parte do inimigo, mas esqueceu-se de que estas ações resultariam em prisão perpétua.”
O procurador em questão terá recorrido a um intermediário para fazer chegar a mãos russas informações sensíveis, incluindo listas de militares ucranianos mortos, locais onde estavam detidos os prisioneiros de guerra russos, informações operacionais relativas à região de Mykolaiv e até as palavras-chave usadas para passar pelos check-points ucranianos.
Para o capturarem, os serviços de informação da Ucrânia disseminaram propositadamente informações falsas e seguiram o rasto daqueles dados até chegarem ao elemento traidor.
Ucrânia já abriu 651 processos contra agentes ucranianos por traição
A lista de funcionários públicos ucranianos demitidos, suspensos ou detidos por suspeitas de traição ou por inação na resposta à invasão russa já vai em largas centenas. Este domingo, quando anunciou a suspensão da procuradora-geral e do líder dos serviços de segurança, Volodymyr Zelensky revelou que até agora já foram abertos 651 processos contra operacionais ucranianos, entre elementos das procuradorias e agentes das autoridades, por suspeitas de traição e colaboracionismo com os russos.
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Dos mais de 600 processos instaurados na Ucrânia por suspeitas de traição e colaboração com as autoridades russas, quase 200 visam aquilo que Kiev designa por “pessoas relevantes”.
Entre as figuras afastadas por Zelensky por estes motivos contam-se também, por exemplo, o antigo líder dos serviços de segurança na região de Kharkiv, Roman Dudin, que foi demitido em maio por nada ter feito em relação à invasão russa. “Despedi o chefe dos serviços de segurança na região por não ter protegido a cidade nos primeiros dias da guerra, preferindo pensar apenas em si próprio. Quanto aos seus motivos, as autoridades vão descobri-los.”
Fora do país, o blogger ucraniano pró-Rússia Anatoly Shariy foi detido em maio em Espanha sob a acusação de ser pago por Moscovo para espalhar informação falsa prejudicial à segurança nacional da Ucrânia. Também o oligarca ucraniano pró-Rússia Viktor Medvedchuk, líder da oposição pró-russa na Ucrânia, foi detido por suspeitas de traição em abril.
Desde a invasão russa, o clima na Ucrânia tem sido de tolerância zero para traidores e colaboracionistas. Em abril, depois de um presidente de câmara ucraniano ter sido assassinado por suspeitas de colaborar com Moscovo, o ministro do Interior ucraniano, Anton Geraschenko, celebrou o assassinato num comunicado, afirmando que existia “menos um traidor na Ucrânia”.