São dez filmes sem ordem de preferência. Na verdade, o melhor é ver todos, para não perder nada do que de melhor aconteceu em 2017 nas salas de cinema. São dramas familiares, aventuras espaciais num futuro distópico, adaptações, argumentos originais e até peregrinações religiosas. Esta é a selecção de Eurico de Barros, crítico de cinema do Observador, com os melhores filmes do ano que agora acaba.

“Paterson”, de Jim Jarmusch

Poesia, autocarros e comédia “cool” e “zen” conjugam-se às mil maravilhas nesta pequena e plácida jóia “indie” realizada por Jim Jarmusch. Um filme sem pressas, em que se sente o tempo passar, explorando o que pode haver de excêntrico no quotidiano das pessoas e nas pequenas coisas do dia-a-dia. Adam Driver faz um condutor de autocarros de New Jersey que escreve poesia, é casado com uma iraniana que adora pintar círculos em tudo, cozinha “muffins” e quer ser cantora de “country & western”, e vivem com um buldogue temperamental. “Paterson” vai contra todos os “clichés” da representação dos poetas e da escrita poética no cinema, e Jarmusch dá ao filme, e à personagem principal, o nome de um poema de William Carlos Williams escrito na zona onde se passa.

“Manchester by the Sea”, de Kenneth Lonergan

Um filme singela mas severamente realista, sobre uma família de gente vulgar do Massachussets, embrulhado num Inverno que parece não querer terminar, tal como Lee, o seu protagonista (soberbo Casey Affleck) vive com a alma e o coração num permanente Inverno, depois de uma tragédia lhe ter devastado a família. Kenneth Lonergan filma as desgraças, as aflições e os problemas que nos podem cair em cima a qualquer momento, e muitas vezes por culpa nossa. Tristonho, soturno, visual e emocionalmente parcimonioso, “Manchester by the Sea” não faz quaisquer concessões às facilidades e às piedades hollywoodescas, tal como não cultiva o choradinho do melodrama social.

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“Silêncio”, de Martin Scorsese

O realizador de “Taxi Driver” levou mais de 25 anos até conseguir levar ao cinema o livro do escritor católico japonês Shusaku Endo, passado no Japão do século XVII, no auge das purgas anti-cristãs. Dois jesuítas portugueses (Andrew Garfield e Adam Driver) entram clandestinamente no país para saber se é verdade que um padre que foi seu mentor (Liam Neeson) abjurou da fé sob tortura e converteu ao budismo. “Silêncio” é um “thriller” espiritual com muita tortura tangível e invisível, da carne mas também da alma. Tormentos tão mais impressionantes quanto Scorsese, também ele um católico atravessado pelas convulsões da dúvida e da interrogação sobre a presença ou a ausência de Deus, os filma com sumptuosidade, citações cinéfilas e pictóricas e um enorme requinte estético.

“Blade Runner 2049”, de Denis Villeneuve

Fazer uma continuação do clássico de ficção científica distópica assinado em 1982 por Ridley Scott, adaptando Philip K. Dick? Não foram poucos os que duvidaram e gritaram “Sacrilégio!”. A verdade é que Denis Villeneuve, realizador do excelente “Primeiro Contacto”, levou a nave a bom porto. Este “Blade Runner 2049”, agora com Ryan Gosling no papel principal, mas que não esqueceu Harrison Ford, mantém a continuidade com o filme original, na caracterização e exploração do mundo futuro em que se passa, no enredo policial e inseparável das suas circunstâncias e nas especulações científico-filosóficas. Villeneuve esmera-se na recriação e amplificação do futuro pessimista e hiper-“high tech” de “Blade Runner: Perigo Iminente”, e aumenta e reforça a sua dimensão visionária. Um feito.

“A Criada”, de Park Chan-wook

Uma fita sumptuosa e diabólica, dissoluta e sardónica, saída das mãos do realizador sul-coreano da tremenda “Trilogia da Vingança”. Chan-wook adapta e transpõe, da Inglaterra de finais do século XIX para a Coreia sob domínio japonês nos anos 20, o livro homónimo da escritora britânica Sarah Walters. Parte “pastiche” de romance popular da era vitoriana, parte “thriller” erótico com requintes de perversão asiática, e injectado com um sentido de humor tão negro quanto perverso, “A Criada” tem uma história habilíssima, apostada em nos surpreender a cada esquina do enredo, e duas estupendas e bonitas actrizes principais, Kim Min-hee e Kim Tae-ri, interpretando personagens peritas em parecer aquilo que que não são.

10 fotos

“O Quadrado”, de Ruben Östlund

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, o novo filme do realizador sueco de “Play” e “Força Maior” é uma comédia passada num museu de arte contemporânea, que parte da obra conceptual que lhe dá título para expor, na pessoa do protagonista, Christian (Claes Bang), curador da instituição, as contradições entre o discurso das boas intenções cívicas e humanitárias e as falhas da sua aplicação no mundo real. Östlund satiriza as mistificações e os ridículos da arte contemporânea, os absurdos do politicamente correcto, as piedades do humanitarismo utópico, a hipocrisia das pseudo-elites das sociedades desenvolvidas e a tensão constante entre as nossas pulsões e instintos irracionais e as nossas inibições sociais e culturais.

https://youtu.be/zKDPrpJEGBY

“A Festa”, de Sally Potter

Em pouco mais de uma hora, em tempo real e a preto e branco, e sem sair do mesmo cenário, Sally Potter transforma um espaço de festejo numa zona de desastre, filmando uma guerra civil entre amigos que partilham quase todos as mesmas convicções ideológicas – e também as camas uns dos outros. Esta comédia política ferozmente negra e a abarrotar de óptimos actores (Timothy Spall, Kristin Scott Thomas, Bruno Ganz ou Emily Mortimer) deixa de rastos a elite bem-pensante e progressista britânica, em toda a sua presunção, arrogância intelectual e alegada superioridade moral, podendo ainda ser vista como uma metáfora sobre a confusão e o desatino que se vive num certo sector da sociedade inglesa após o referendo sobre o Brexit.

“Personal Shopper”, de Olivier Assayas

Kristen Stewart interpreta aqui uma americana que vive em Paris, trabalha como “personal shopper” de uma “top model” caprichosa que nunca pára em casa e vive assombrada por fantasmas que poderão ou não ser reais, e estar relacionados com um sinal do Além que o irmão gémeo, que morreu, disse que lhe enviaria. Olivier Assayas assinou um filme muito peculiar, onde coabitam o materialismo consumista do mundo actual e as manifestações vindos de uma dimensão sobrenatural, postando-se a meio caminho entre o cinema de género (no caso, o policial e o terror) e o cinema de autor. E filma a sua actriz principal com uma atenção devotada e hipnótica, como se quem estivesse realmente assombrado neste filme fosse o próprio Assayas.

“Coco”, de Lee Unkrich e Adrian Molina

Graças ao México e aos seus costumes e tradições, a Pixar volta a a fazer uma longa-metragem de animação à altura dos seus pergaminhos de excelência técnica, estética e narrativa. Centrando-se em Miguel, um menino que quer ser músico mas em cuja família a música está rigorosa e misteriosamente proibida há três gerações, “Coco” passa-se durante as celebrações do Dia dos Mortos, e em pleno Mundo dos Mortos mexicanos, figurado como uma exuberante megalópole “art déco” dos defuntos. É uma exuberante, inventiva e divertidíssima fantasia musical, que faz o elogio dos valores da família, do respeito pela memória dos antepassados e pelas tradições. E a animação digital está tão perfeita, que parece indistinguível da clássica.

“Fátima”, de João Canijo

Este filme não é “pró” nem “contra” o fenómeno de Fátima. João Canijo está muito menos interessado em discutir o sobrenatural, do que em mostrar o que as pessoas são capazes de fazer em nome desse sobrenatural. No caso vertente, um grupo de mulheres transmontanas (interpretadas por onze actrizes que são quase todas “habitués” das fitas do realizador), que vêm em peregrinação a pé desde a sua vila até ao santuário, numa maratona que é mais feita de confrontos e de sofrimento do que de fé e discussões sobre espiritualidade, e em que o pronto-socorro adquire mais importância que o socorro das almas. Canijo, o mais coca-bichinhos dos nossos cineastas, nunca rodou um filme tão encostadinho à realidade como este.