Como manda a tradição, tocamos à campainha assim que chegamos ao número 178 da Rua de O Século, a dois passos do Príncipe Real. Escondido pelo toldo verde garrafa, o típico azulejo — como em qualquer uma rua lisboeta — denuncia as conversas escondidas que durante tantos anos decorreram, à porta fechada, neste local. Agora, quem nos abre essa mesma porta, no mesmo tom verde escuro do toldo e das portadas das janelas, já não é Albino Oliveira mas sim Miguel Garcia, responsável do Grupo São Bento, proprietário também do histórico Café de São Bento, que adquiriu em 2022, do Bougain e do Corleone. Inaugurado em 1964, o Snob Bar abriu portas de cara lavada esta segunda-feira, 16 de dezembro, com uma nova gerência. Depois de 40 anos à frente do negócio, o senhor Albino entregou a chave do icónico e histórico bar lisboeta ao novo responsável com a promessa de que nada mudaria.
“[O Grupo São Bento] era alguém que ia ter a responsabilidade de manter a essência e a alma do que é e do que sempre foi”, afirmou o responsável do grupo em conversa com o Observador, explicando que, para o emblemático anfitrião da casa, o trabalho feito nos últimos dois anos no Café de São Bento era a prova dada de que o empresário não transformaria o Snob Bar, nem que lhe iria tirar a identidade. A mudança de propriedade deu-se então em setembro, um ano depois de Miguel Garcia ter visto aqui essa oportunidade. “Isto foi por intermédio de um cliente de muitas décadas do Snob, que por acaso é meu familiar e ex-jornalista”, começou por contar, revelando depois que o senhor Albino sentia que “estava na altura de passar isto a alguém”. “Tinha de ser sim ou sim.”
O sim chegou e, depois de dois meses de obras, o Snob está pronto para continuar a enaltecer o passado ao mesmo tempo que cria novas memórias no futuro. Um sítio onde não passam modas nem entram tendências, o Snob é “um bar onde uma pessoa pode cá vir inúmeras vezes, passa não sei quantos anos sem vir e quando volta está exatamente igual”, garante o novo responsável.
Apesar de não ter sido um cliente frequente — ao contrário do Café de São Bento —, garante que “já cá tinha vindo” e que reconhece o valor deste espaço, por toda a sua história: “É uma Loja Com História onde muita coisa, tanto a nível político e jornalístico, se passou aqui”. O Snob Bar foi fundado a 16 de novembro de 1964, numa antiga latoaria, por Paulo Guilherme D’Eça Leal, na época desenhador do jornal O Século, uns metros mais abaixo naquela rua, e comprado três anos depois, em 1967, por Ariano Oliveira — irmão mais velho do senhor Albino. Só em janeiro de 1975 — dada a Revolução dos Cravos —, Albino Oliveira assumiu o negócio, servindo bebidas a toda uma geração de jornalistas, políticos, escritores, artistas e atores que aqui se reuniam. Plantado no centro dos jornais na época, foi refúgio para os jornalistas e local de encontro para figuras políticas, um fora d’horas que convidava a comer um “Bife à Snob”, os croquetes e a tão pedida mousse de manga.
“Houve muitas conversas, primeiras conversas para o futuro de Portugal aqui. Sempre houve muitas informações passadas neste lugar e o senhor Albino ouvia mas nada contava“, afirmou Miguel, acrescentando que “era um confidente”.
O antes e o depois
Mantendo a mesma identidade de há 60 anos, o Grupo São Bento fez algumas muito pequenas intervenções neste espaço que, talvez apenas para os olhares mais atentos, sejam mais notórias. Quem cá tenha vindo ainda com o senhor Albino atrás do balcão e regresse agora pouco ou nada há de notar. As madeiras são as mesmas, as mesas também, acompanhadas pelas cadeiras, e o balcão, com uma série de garrafas nas suas costas que dão uso às vitrines originais, ainda do tempo de quando antes de ser Snob era uma latoaria. O que mudou então? A começar nos materiais, a alcatifa gasta de tantos passos foi atualizada, os estofos das cadeiras foram resgatados passando do então castanho para o verde garrafa — “a cor da pele que tinha sido usada no início do Snob” —, os candeeiros das mesas, apesar de serem os mesmos, mudaram também de cor, enquanto que os das paredes — novos — têm elementos em latão envelhecido para manter a tradição do que esta casa foi em tempos.
“Quem aqui chega não acredita que isto é tudo novo. As madeiras mantivemos as mesmas, mas tratámos de todas, tanto as das paredes como dos tetos. A alcatifa é nova, as casas de banho são novas, a iluminação foi toda revista, assim como a cozinha”, enumera Miguel. O que é claramente novo é o grande espelho que dá mais dimensão à segunda sala e as molduras com excertos de jornais que decoram as paredes. Nessas páginas estão notícias e reportagens feitas sobre o Snob que, ao longo dos anos, o senhor Albino foi guardando. “Eu peguei nos jornais antigos que o senhor Albino tinha, desde os 20 anos, 25 anos, 35 anos, 40 anos do Snob, e emoldurei tudo para enaltecer a história do que se passou do Snob, para que as coisas não sejam esquecidas”, explicou. Onde estão agora os jornais originais? Na mala do carro do responsável do Grupo São Bento. “É como se fosse o meu escritório, assim sei que estão seguros e não são danificados durante as obras.”
O que mudou definitivamente foi a presença de senhor Albino. Junto ao balcão, numa das vitrines, está uma fotografia do antigo proprietário, agora com 77 anos, tirada neste mesmo bar. Depois de 40 anos à frente do negócio, visitou pela primeira vez o novo velho Snob antes de inauguração. “O senhor Albino gostou muito. Percebeu que o que foi feito foi o que eu lhe tinha dito e saiu com um sorriso portanto acredito que tenha gostado, sobretudo do que nós fizemos a respeito da história”, afirmou.
O Bife à Snob
“O famoso Bife à Snob, a receita original do Sr. Albino desde 1974”, lê-se na renovada carta do Snob que, inspirada no “bar dos jornalistas”, apresenta-se como uma capa de um jornal. Com 100% do que já havia, não convida a grandes mudanças, mantendo por isso os bifes à Snob (entre 17 e 20 euros), os pregos (entre 9 e 12 euros), os croquetes (4,50 euros), a omelete (10,50 euros), o Bacalhau à Brás (15 euros) e, claro, a famosa mousse de manga (5 euros) — “não podíamos tirar a mousse”. O Grupo São Bento manteve assim “tudo aquilo que o senhor Albino disse que tínhamos de manter”, ou seja, a carta na íntegra.
Não há um livro de segredos mas sim as receitas do senhor Albino e da Dona Maria, a primeira cozinheira que o Snob teve, que foram agora passadas aos novos donos. “Vai tudo permanecer igual. Fizemos provas com o senhor Albino e acertámos as receitas com ele. Vimos como é que ele fazia e vamos dar continuidade, exatamente como sempre foi”, garantiu. Iguais ficaram também os preços: “Não queremos que as pessoas achem que ao ter uma nova gerência o Snob vá aumentar os preços”, explicou Miguel, enquanto mostrava o antigo menu, guardado atrás do balcão como forma de comprovar que os valores são os mesmos. De novo, há as gambas al ajillo (13 euros), o bitoque à portuguesa (15 euros) e duas sobremesas, a tarte de lima (5 euros) e o toucinho do céu (5 euros).
Quanto à carta das bebidas, é “um tema importante”, garante Miguel. É no mesmo layout que a anterior que convida a embarcar numa viagem no tempo, “até à era dourada dos cocktails”. Desenhada por Manuel Frazão, está dividida em dois eixos: no primeiro, uma seleção de mais de 50 whiskeys e 60 referências de rum e conhaque, onde é contada a história de cada destilaria, e no segundo, uma seleção de cocktails, 100% clássicos, onde é também contada a história da mixologia. “O menu do Snob não é só uma lista de marcas e preços. É uma carta que conta a história daquilo que serve”, afirmou.
Tal como no Snob do senhor Albino, há bifes das 19h00 até às 2h00 (a cozinha encerra às 1h00) todos os dias da semana.
E “o bar dos jornalistas”?
Para Miguel Garcia é importante que “essa essência permaneça” no Snob, tanto pelos jornalistas que já frequentam o espaço há muitos anos como as novas gerações de jornalistas. “Vamos trabalhar para isso e trabalhar para isso é manter como sempre foi, não é? É não alterar”, afirmou, acrescentando não acreditar que o Snob seja para todos os tipos de público. Assim como num speakeasy, a campainha à entrada permite que seja um bar mais exclusivo, preservando um ambiente mais acolhedor e menos caótico do que em espaços abertos: “Eu acho que o Snob não é para todos. É para as pessoas que gostam de ambientes mais recatados, menos expostos, um pouco mais privado”, defendeu.
Parte dessa privacidade devia-se ao senhor Albino, à confiança que os clientes tinham no proprietário e às relações de proximidade. Agora sem, o responsável do Grupo São Bento acredita que quem frequentava o Snob vai continuar a aparecer por cá pelas “memórias do que viveram aqui”. No entanto, o senhor Albino é a alma deste espaço, e a “imagem e a memória dele vão continuar sempre”.