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Aquela madrugada de segunda-feira, 21 de julho, foi diferente. Ricardo Sá Fernandes recorda-se de estar sentado na sala, ao lado dos pais, todos expectantes de olhos postos nas lentas movimentações a preto e branco, no pequeno televisor. “Lembro-me perfeitamente. Parece que foi ontem. Tinha 15 anos e consegui autorização para não ir para a cama”, recorda o advogado de 65 anos, o mais velho de três irmãos que viveu aquelas horas de forma intensa.
Eram cerca de quatro horas da manhã em Lisboa quando as primeiras imagens começaram a ser emitidas. “Não era normal os meus pais estarem acordados aquela hora. Tenho ideia que a minha mãe foi fazer um chá para bebermos enquanto estávamos ali.” Guarda a emoção que o marcou, mas também a inquietação: “Tenho muito presente um receio. É que eles estavam na Lua! Só pensava ‘estamos a aqui a comemorar, mas não há um risco de eles não voltarem?’”
Excitação e hesitação, algum medo, boa dose de dúvida e, até, histeria. A viagem de julho de 1969, que culminaria com os primeiros passos do Homem no satélite natural da Terra, gerou um turbilhão de emoções à volta do mundo, Portugal incluído. Afinal, 1969 não foi só o ano do último grande sismo a apavorar o país (7,9 na escala de Richter), o ano que Simone (en)cantou a “Desfolhada Portuguesa” no Festival Eurovisão da Canção ou o ano em que os universitários se rebelaram contra o regime, exigindo reformas na educação. 1969 foi também o ano em que os portugueses se aproximaram da Lua.
Faltavam ainda semanas para o lançamento da Apollo 11 e já era tema de conversa e de jornal. O Diário de Notícias publicava artigos dedicados ao assunto: detalhava-se o plano da viagem, fazia-se um BI da Lua (temperatura, diâmetro, relevo) e partilhavam-se outras preocupações com o desconhecido. Mais de um mês antes, a 3 de junho, lia-se assim: “O regresso dos primeiros homens da Lua pode causar um perigo mortal para a humanidade. Ninguém, com efeito, é capaz de dizer que eles não serão portadores de microrganismos, micróbios, bactérias, ou qualquer outra forma de vida (…)”
Feiticeiro não acredita
Portugal não só assistiu. Também fez a viagem e até deixou uma recordação em solo lunar. A bandeira portuguesa foi uma das 136 que viajaram a bordo da Apollo 11 anunciava o Diário de Notícias a 16 de julho, publicando uma mensagem do então Presidente da República, Américo Tomaz: “O povo português, descobridor do mundo conhecido, nos séculos do passado, admira aqueles que, nos dias de hoje, se dedicam à exploração do espaço, levando a humanidade a entrar em contacto com outros mundos.” A mensagem, junto com outras 73, foi “reduzida à escala de um por duzentos e microgravada num disco pouco maior que uma moeda de um escudo.”
Nesse dia, 16 de julho, os ataques de El Salvador às Honduras, a explosão de bombas na Irlanda do Norte e a guerra do Vietname estavam na capa do jornal, mas mais de metade era dedicada ao início da expedição norte-americana que batizavam como “a maior aventura do século.” O entusiasmo era tanto que explorava o tema ao ínfimo pormenor. Os leitores ficaram a saber o que Armstrong e Aldrin tomariam de pequeno-almoço no dia derradeiro: um sumo de laranja, oito cubos de bacon, quatro cubos de compota de morango e dois pêssegos em calda. “Tratarão depois de envergar o equipamento lunar, a extraordinária carapaça que os protegerá contra os perigos de um mundo inumano.”
No dia seguinte, outras preocupações surgiam: “Se um dos astronautas caísse e fraturasse uma perna… seria muito difícil ao companheiro poder transportá-lo para bordo do módulo dado que o escafandro não os deixa dobrar”, lia-se na edição do DN que garante, ainda, que “as mulheres americanas despendem dez vezes mais dinheiro com os seus vestidos do que o estado com a aventura espacial.” Os dados curiosos juntam-se a outros insólitos, como o de um guru do esoterismo que garante que os norte-americanos perderão a corrida: O ‘feiticeiro de Nápoles’, Achille D’Angelo, ‘convocou os espíritos’ e eles disseram-lhe que os russos serão os primeiros a chegar à Lua. ‘Não tenho dúvidas a esse respeito’, afirmou.”
Crianças ficaram acordadas até tarde, adultos não pregaram olho – e até exceções se abriram no mundo empresarial. A 20 de Julho, véspera do acontecimento, o Diário de Lisboa anunciava como a Robbialac ia permitir que os funcionários fizessem uma adaptação ao seu horário: “Para poder proporcionar aos seus empregados o ensejo de assistirem pela televisão ao desembarque dos três astronautas americanos na Lua, a Robbialac portuguesa fez circular uma nota entre o seu pessoal, comunicando que os seus serviços, na segunda-feira, dia da alunagem, só começarão a funcionar a partir das 10 horas.”
Eram duas horas e 56 minutos (hora de Greenwich) da madrugada de 21 de julho quando Neil Armstrong pôs o pé na lua, seguido de Edwin Aldrin, cerca de 20 minutos depois. Ambos caminharam durante várias horas na superfície lunar, recolheram amostras, hastearam a bandeira e deixaram uma frase para a história: “Um passo pequeno para o homem, um salto gigante para a humanidade.”
Agarrado à telefonia
É com o anúncio “o século XXI começou hoje” que o DN abriu a edição daquele dia, uma edição especial dedicada ao feito. É nela que encontramos palavras de Almada Negreiros, que dá os parabéns à tecnologia – e à poesia. “Este espetáculo inédito tem o sabor da liberdade. Não é só a cosmonáutica que está de parabéns é também a poesia. Primeiro foi o sonho e agora já se pode sair daqui da Terra e voltar vivo. Bem sonhado e bem realizado o sonho de Ícaro e de Júlio Verne.” N’O Século a chegada do homem à Lua partilhava protagonismo com Joaquim Agostinho, anunciado como “o melhor de sempre.” Naquele dia chegaria ao Aeroporto da Portela, depois de ter conquistado o oitavo lugar na Volta à França.
Televisões, seguros ou até pneus. Também as marcas apanharam boleia da emoção em massa, para venderem os seus produtos, como se pode comprovar nos anúncios dos jornais de época: “Na terra: a conquista dum futuro tranquilo”, anunciava a companhia de seguros Tranquilidade enquanto os pneus Mabor perguntavam: “Sabe que usa diariamente a técnica que levou o homem à Lua?”. A Philips também provocava: “Você não pode perder a etapa culminante da fabulosa escalada do nosso satélite natural. Assista à fantástica odisseia através de um tele-receptor Philips.”
O pequeno ecrã era um dos objetos mais desejados por estes dias. O ator Rui Mendes lembra como se juntou a um grupo para assistir ao derradeiro momento em casa de um amigo – precisamente porque não tinha televisão em casa. “Foi um acontecimento. Ali ficámos até às seis ou sete da manhã, na altura em que tinha idade para passar noites em branco”, lembra entre risos o ator português de 82 anos.
Naquela altura, ter uma televisão em casa não era propriamente comum – daí que muita gente tenha acompanhado a façanha pela telefonia. “A reportagem durou várias horas, desde que aterraram (alunaram) até à saída do módulo lunar para pisar a Lua, e fiquei agarrado ao rádio, com um primo da mesma idade, até de madrugada, para não perder nada do acontecimento.” A recordação é de Rui Barros, engenheiro civil, que na altura tinha apenas 13 anos e estava a viver em Luanda: “Foi um acontecimento muito importante. A disputa pela conquista do espaço entre o EUA e a URSS era um tema recorrente na época.” Na escola, a aventura da Lua era tema de conversa entre amigos, explica, “pela tecnologia e o risco que a missão envolvia.”
O país pequeno apreciava, à distância, o feito internacional. “As imagens eram muito pouco nítidas e entrecortadas por ruídos estranhos, sem qualidade nenhuma”, lembra Alice Fernandes, 70 anos, reformada. “Houve muita gente que se questionou sobre a veracidade da notícia. A minha avó Graça dizia: ‘Os pantomineiros [intrujas] andam a dizer que foram à Lua!’ Eu ouvi a notícia e acreditei, claro, mas não me perturbou o dia, não me empolguei demasiado”, conclui. É que se, por um lado, grande parte do país se movia a entusiasmo, outra porção estava cética – ou não acreditava de todo. A alta taxa de analfabetismo que se verificava na década de 60 (26,6% dos homens eram analfabetos assim como 39% das mulheres) pode explicar a reticência.
Bebé Apolo
Depois do dia decisivo mantém-se o entusiasmo. O regresso à Terra continua a gerar curiosidade: dão-se detalhes sobre a duração da viagem, os milhões de contos gastos na missão e já se fala sobre o próximo objetivo – pisar Marte. As atenções viram-se, ainda, para o plano de regresso. Dão-se detalhes sobre a entrada na atmosfera terreste e fala-se sobre o período de quarentena (durante 21 dias os três astronautas permaneceram na Instalação de Quarentena Móvel da NASA).
Entretanto, por todo o planeta se multiplicam os verdadeiros filhos da era lunar. Em Roma nasce uma menina, Maria Lua, com um “sorriso belo como um quarto crescente” justifica o pai. Já em Minas Gerais, Brasil, nascem os quadrigémeos Neil Armstrong, Michael Collins, Edwin Aldrin e Alberto Santos Dumont (aeronauta brasileiro). Portugal não fica atrás. Também em Lisboa, na maternidade do Hospital de São José nasce um menino com 3,650 kg, o bebé Apolo, conta O Século a 23 de julho: “A mãe afirmou já que gostaria que o garotinho viesse a ter um nome que refletisse a coincidência do seu nascimento com a conquista da Lua. Foi uma enfermeira a sugerir o nome de Apolo. A família entendeu que o nome era muito bonito e que valia a pena.”
A euforia do acontecimento prolonga-se. A edição de 1 de agosto do Ilustração Portugueza publica várias imagens da viagem. Fala-se de como tanto Aldrin como Armstrong pisaram a lua com o pé esquerdo, um “mau presságio que assustaria muito boa gente.” As imagens são escuras, desfocadas, com fraca definição, compensadas pelas legendas: “Os dois cosmonautas recebendo a crua (e perigosa) luz do sol, num ambiente sem atmosfera, iniciam as primeiras tarefas. Mesmo a milhares de quilómetros da Terra, o destino do homem é trabalhar.”
Cada novidade é boa desculpa para falar sobre o assunto e Portugal entusiasma-se, mais uma vez, com a aproximação ao sonho lunar. Foi o jornal O Século que apresentou a portuguesa que ajudou a fazer a bandeira norte-americana, já implantada na Lua. Maria Isilda Ribeiro, de 23 anos, natural de Sosa, concelho de Vagos, radicada em New Jersey, estava naquela altura a passar férias em Portugal e não partilhava de metade da excitação com o evento: “O que eu sei é que trabalho com uma máquina de costura, lá na fábrica, e que me deram uma bandeira para fazer. Aliás, a bandeira estava praticamente feita. A mim, coube-me o debrum que serviu para enfiar a haste e as pequenas varas horizontais. Sabia lá para o que era a bandeira!”, contou. Em poucas palavras encerrou o assunto: “Deixem-me um mês e meio de férias. A Lua fica para mais tarde.”