Começou em Paris, à chuva, foi um amor de tempos felizes na Autoeuropa, mas o desencanto chegou com a Europa. A relação de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa tem sido pacífica, mas os arrufos e os amuos tornaram-me mais permanentes nos últimos três meses, em vários episódios que dariam uma história aos quadradinhos: Costa a utilizar Marcelo como trunfo eleitoral, o Presidente a pré-vetar um ministro para uma determinada pasta, o chefe de Estado a saber da lista pela comunicação social e, dias depois, a limitar uma eventual saída do primeiro-ministro a meio do mandato para um cargo europeu.
Um dos membros do inner circle de conselheiros de Marcelo Rebelo de Sousa assume que existe um pequeno conflito, mas que logo desvaloriza, classificando-o de “guerra localizada“, que “nunca se vai tornar numa guerra global, porque o primeiro-ministro é suficientemente inteligente para saber que não ganharia com isso”.
A mesma fonte acredita, segundo explica ao Observador, que nunca haverá um “conflito institucional grave, nunca se vão zangar”. E acrescenta: “Não é previsível nenhum clima de guerrilha como houve entre Soares e o Cavaco no terceiro Governo do cavaquismo”.
Tanto Costa como Marcelo são “muito ciosos dos seus poderes”, explica a mesma fonte, que acrescenta que. nenhum está disposto a “ceder um milímetro” nesse poder. O Presidente acredita que, se não definisse já os termos, mais tarde podiam acusá-lo de não ter avisado. Por isso decidiu fazer um aviso — tal como tinha feito sobre o Orçamento do Estado de 2022 — que provocou desconforto nas hostes socialistas e envolveu o presidente do PS na história.
Será este o primeiro tremor com força para ruir o “Bloco Central de Palácios”? Para perceber o novo episódio da novela é preciso recuar algumas páginas que retratam os últimos três meses.
Marcelo: de trunfo de campanha, a cobrador de poder
É preciso recuar a 13 de janeiro. Marcelo Rebelo de Sousa estava num voto de silêncio eleitoral que o fez contrariar a sua própria natureza: foram raras as declarações entre o momento em que convocou eleições e a noite eleitoral. Mas António Costa estava em campanha e — após o único duelo a dois com Rui Rio — utilizaria a confiança que os portugueses têm no Presidente para apelar a um voto sem medo no PS: “Alguém acredita que, com Marcelo Rebelo de Sousa, poderíamos ter uma maioria absoluta que pisasse o risco?”
O Presidente continuou em silêncio e Costa teve mesmo maioria absoluta. Na noite eleitoral, o primeiro-ministro dava uma no cravo e outra na ferradura. A começar pelo cravo, elogiou as boas relações com Belém: “Se há coisa que os portugueses têm registado é que creio que nunca houve um período tão longo da nossa história onde o relacionamento entre Presidente da República, Assembleia da República e Governo tenha sido não só tão pacífico, como tão construtivo como aqueles que têm existido nos últimos seis anos.”
Mas também deixou um aviso que os limites de Marcelo eram os limites da Constituição: “Quanto ao senhor Presidente da República o que esperamos todos é que continue a exercer o seu mandato presidencial e as suas competências próprias nos termos da Constituição, como tem habituado os portugueses a fazer. Não havemos de esperar outra coisa, com certeza.” Ficava dado o aviso.
No discurso de tomada de posse, Marcelo viria a cobrar as funções que Costa lhe reconheceu na campanha, de fiscalizador último da maioria absoluta. O Presidente comprometeu-se então a vigiar “distrações e adiamentos quanto ao essencial, autocontemplações, deslumbramentos, tentando evitá-los para não ter de intervir a posteriori.”
Na mesma circunstância, o chefe de Estado não esqueceu que o socialista o utilizou como trunfo na campanha, lembrando que — enquanto olhava diretamente para os olhos de António Costa — estava “no fundo, a fazer exatamente aquilo que vossa excelência reconheceu em plena campanha eleitoral ser uma garantia decisiva contra os tremores habituais de que a maioria absoluta se convertesse no que não pode, nem deve ser.”
No mesmo discurso na cerimónia de posse, como que respondendo à lembrança de Costa na noite eleitoral de que Marcelo iria continuar a agir dentro das “competências próprias da Constituição”, o Presidente também destacou que esta vigilância a que se propõe mais não é do que “fazer exatamente aquilo que a Constituição prevê“.
António Costa não poderia responder ao Presidente, precisamente para evitar conflitos institucionais, colocando o presidente do PS em campo para dar a resposta que o próprio primeiro-ministro não podia dar publicamente. Carlos César quis responder a Belém que quem fiscaliza a atividade governativa do Governo é o Parlamento, não é o Presidente.
“O primeiro-ministro é refém dos compromissos que assumiu e que serão reafirmados no Programa do Governo que será submetido ao órgão de soberania a quem incumbe a fiscalização política da atividade governativa — a Assembleia da República“, disse o presidente do PS a 31 de março, um dia depois da tomada do Governo Costa III.
Já passou, já passou… Um veto raro, irritações e amuos
Costa conseguiu a maioria absoluta a 30 de janeiro, mas Marcelo Rebelo de Sousa não demorou a fazer uma demonstração de poder para afirmar a sua força constitucional. A Constituição diz que “os restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do primeiro-ministro”. Ora, isto significa que o chefe de Estado não escolhe os governantes, mas tem uma palavra a dizer.
Dias depois de o Governo tomar posse, segundo contaram ao Observador fontes com conhecimento dessa reunião, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de afirmar essa autoridade e informou o primeiro-ministro — já reforçado por uma maioria absoluta — de que não aceitaria João Gomes Cravinho como ministro da Defesa. Tratou-se de um momento de afirmação presidencial raro por esta via.
Marcelo gosta de apresentar paralelismos e tem como referência o facto de Jorge Sampaio ter forçado António Guterres a demitir Armando Vara na sequência de uma polémica do então ministro socialista na Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária.
Ainda assim, a circunstância aqui era outra: o Presidente estava a informar o primeiro-ministro que não podia ter um determinado ministro antes da constituição do Governo. As razões invocadas por Marcelo foram o facto de o ministro ter falhado no dever de informação ao Presidente no âmbito da Operação Miríade (apesar de ter informado as Nações Unidas).
António Costa reagiu e questionou Marcelo Rebelo de Sousa sobre se se oporia a que o ministro Gomes Cravinho integrasse o Governo noutra pasta, sem especificar que o destino era os Negócios Estrangeiros. O Presidente respondeu que não se opunha.
A partir daí, na versão de Belém, Costa e Marcelo não voltaram a falar em nomes de ministros, com a exceção a ser a pasta da Defesa. O Presidente apenas foi sabendo alguns dos nomes e dos convites através de telefonemas paralelos e através da comunicação social — nunca pela via oficial.
A 23 de março — dia em que ficava resolvida a votação do círculo da Europa — Marcelo e Costa tinham uma audiência em Belém para o primeiro-ministro apresentar os nomes. Ao início da tarde desse dia, começaram a circular três listas com os nomes dos novos governantes.
O Presidente ficou irritado por a informação ter chegado por esta via e quando saía do Palácio de Belém, abordado pelo jornalista SIC sobre a lista, não disfarçou o incómodo: “Se aquilo que corre na comunicação social for confirmado, dispensa-se uma audiência [com o primeiro-ministro]. Pelos vistos, fiquei a saber pela comunicação social [da lista de ministros]”.
Na mesma ocasião, sendo já conhecida oficialmente a divisão dos ministérios e secretarias de Estado, Marcelo comentaria que “o Presidente da República não tem de se pronunciar sobre a orgânica, o primeiro-ministro escolhe a orgânica que acha que é a mais adequada”.
O que Marcelo sugeria é que o Presidente não se pronuncia sobre a orgânica, já que ao Chefe de Estado o que importa é a competência para o cargo dos ministros a quem dá posse. Ou seja: Marcelo não queria saber da orgânica, queria mesmo era saber dos nomes.
António Costa, à entrada de uma reunião com a bancada do PS, garantia partilhar “da mesma irritação” do Presidente pela “fuga de informação”, dando mesmo os “parabéns” aos jornalistas por acertarem nos nomes. O primeiro-ministro disse ainda que não estava “menos irritado” que o chefe de Estado e deixava outra garantia: “A fuga não veio de mim, do meu gabinete ou de ninguém que dependa de mim”.
Costa ainda não sabia, por essa altura, se iria entregar a lista ao Presidente, dizendo que aguardava instruções do chefe de Estado sobre se havia audiência ou não. Minutos depois, Marcelo cancelava a audiência em Belém, transformando o amuo num incidente.
No dia seguinte, a 24 de março, Marcelo Rebelo de Sousa voltava a falar do assunto à margem de um colóquio sobre a crise estudantil de 1962, para reiterar que “não fazia sentido manter uma reunião para apresentar uma lista que estava confirmada”.
O Presidente voltava a não conseguir esconder o desconforto: “Acontecem estas coisas na vida. O que passou, passou. Foi registado. Agora vamos ver para o futuro”. O “vamos ver” era Marcelo a admitir alguma imprevisibilidade relativamente a uma nova atitude de São Bento em relação a Belém.
Antes do assunto ficar encerrado, Marcelo ainda deixaria mais uns recados a Costa sobre o novo Governo. Três dias depois de serem conhecido os nomes, o Presidente registava que “cada primeiro-ministro escolhe as pessoas que são mais adequadas do seu ponto de vista”, mas logo acrescentava:
“Eu não sou primeiro-ministro, sou Presidente da República, portanto, não sou eu que tenho de formar o Governo. Como primeiro-ministro, formaria certamente um governo noutra área política e com outras pessoas, mas não existe esse filme”. O filme era outro e esta mais uma sequela do novo estado das coisas entre São Bento e Belém.
Aviso prévio de bomba atómica: fuga para Bruxelas dá eleições
O principal poder do Presidente, repete-se na política nacional, é a palavra, mas a Constituição dá ao chefe de Estado um poder que tem uma alcunha bélica: a “bomba atómica”. O termo é utilizado para descrever a demissão do Governo, apesar de ser uma arma raramente utilizada em Belém.
No momento em que deu posse ao Governo de António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa não utilizou a bomba atómica, mas fez um aviso prévio de que a utilizaria caso o primeiro-ministro decidisse deixar o mandato a meio. Alguns sinais alertaram o Presidente: primeiro, o facto de António Costa ter colocado quatro sucessores no Executivo (o que daria opções que bastasse para ser substituído a meio do mandato); segundo, o facto de António Costa chamar para a sua dependência a pasta dos Assuntos Europeus e de se ter rodeado de especialistas em assuntos comunitários.
Mas há mais. Na véspera da tomada de posse, quando Marcelo Rebelo de Sousa ultimava o discurso, adensou as desconfianças quando ouviu Porfírio Silva, dirigente do PS, numa Vichyssoise especial, programa da Rádio Observador a dizer: “Se as circunstâncias nacionais e internacionais forem mais suaves, penso que [António Costa] terá mais margem de manobra [para sair para um cargo europeu]”. Marcelo ficou em guarda e ainda reforçou mais o aviso que queria dar.
Em plena tomada de posse, o Presidente voltaria à carga para dizer que o primeiro-ministro tinha de ter consciência que “agora que ganhou e ganhou por quatro anos e meio”, tem de saber “que não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara que venceu, de forma incontestável e notável, as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho.”
Marcelo dizia ainda que não teria problemas em avançar sem “hesitações ou inibição” para uma “posição arriscada“, como fez quando o Orçamento foi chumbado e convocou eleições antecipadas. Ficou claro o aviso: se Costa sair, Marcelo convoca eleições.
António Costa ainda ensaiou uma meia-resposta quando falou, minutos depois, e disse que “os portugueses resolveram nas eleições a crise política e garantiram estabilidade — como bem referiu o Presidente da República — até outubro de 2026”. Mas se Costa não podia falar, mais uma vez o presidente do PS tomou as dores e avisou que o eleitorado votou nos socialistas.
No dia seguinte à tomada de posse, Carlos César aproveitou para dizer que Costa só pode ser travado pelo “povo” e não pela vontade presidencial: “O primeiro-ministro, como em qualquer democracia e na sequência da renovação expressiva da legitimidade eleitoral do PS, é refém do povo que o elegeu e dos compromissos que assumiu”. César colocava a tónica na “legitimidade eleitoral do PS”, que é o mesmo que dizer que a leitura de Marcelo não é a da Constituição.
O vice-presidente da bancada do PS, Pedro Delgado Alves, também diria no programa Linhas Vermelhas, da SIC Notícias, que “não deixa de ser peculiar que o Presidente da República escolha o momento em que se desfez o nó górdio da crise política, em que estabelece estabilidade, marque bem a cerimonia de posse dizendo que não é de excluir” que possa sair a meio do mandato.
Marcelo Rebelo de Sousa não deixaria o PS sem resposta, dizendo que César estava a comprometer o primeiro-ministro com um mandato completo: “Se o presidente do partido no Governo assume que o primeiro-ministro é refém do povo, assume que ele está a avançar para uma empreitada de quatro anos e meio.”
São Bento ficou em silêncio até sexta-feira. Nesse dia fonte do gabinete do primeiro-ministro respondia, em off, ao jornal Expresso sobre a posição do gabinete de António Costa: “Para o primeiro-ministro, é óbvio desde 30 de janeiro que não será candidato a qualquer cargo europeu em 2024″.
Horas depois (o Expresso sai às 23h00, de quinta-feira no seu formato digital), na manhã de sexta-feira, Mariana Vieira da Silva tentava também colocar água na fervura, dizendo que “o Governo tomou posse para uma legislatura que dura quatro anos e seis meses” e que os compromissos assumidos são para “essa duração e o Governo como um todo compromete-se até 2026”.
No primeiro briefing do novo Governo, a super-ministra da Presidência e outras pastas acrescentava ainda que a saída de Costa “não é uma questão”. Sobre os avisos de Marcelo, voltava a dar uma resposta na defensiva: “Não faço quaisquer comentários a intervenções públicas do Presidente da República ou de outros órgãos de soberania.”
Já durante o fim-de-semana, no encerramento do Congresso do CDS, seria a vez da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, vinha reforçar a tese de que o contrato de Costa é para mais quatro anos: “O senhor primeiro-ministro nunca virou as costas ao país nos momentos mais difíceis, não virará num momento em que vivemos uma guerra, e foi eleito para quatro anos”.
Cavaco como arma de arremesso do musculado Costa
António Costa repetiu várias vezes que a maioria absoluta não é poder absoluto. Foi o primeiro a utilizar a frase no atual contexto logo na noite eleitoral e, desde então, muitos a repetiram. Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de utilizar a expressão — nesse mesmo discurso bélico-doce da tomada de posse — dizendo que Costa não estava mandatado para esse absolutismo nem para aquilo que chamou de “ditadura de maioria”. Fez questão de o dizer que isso só pode ser evidente e óbvio numa democracia.
O primeiro-ministro não gostou e fugiu do guião para responde à letra a Marcelo Rebelo de Sousa. Não estava escrito no discurso escrito, mas improvisou o contra-ataque. Primeiro voltou a constatar também o óbvio e repetiu: “A maioria absoluta que nos foi concedida não significa poder absoluto. Nunca o poderia constituir e muito menos eu o poderia interpretar.”
Costa aproveitou rapidamente para lembrar a Marcelo Rebelo de Sousa que o partido do qual faz parte, o PSD, é que interpretou dessa forma a maioria quando estava no poder. “Faço parte de uma geração que se bateu contra uma maioria existente, que tantas vezes se confundiu com um poder absoluto”, ripostou António Costa, numa referência às maiorias absolutas de Cavaco Silva.
Já em entrevista ao Observador uma semana antes das legislativas, António Costa atirava à terceira maioria absoluta de Cavaco Silva. Dizia o primeiro-ministro que “nesse tempo do cavaquismo nós tínhamos uma televisão única, onde os alinhamentos dos telejornais, muitas vezes, eram feitos pelo dr.Marques Mendes, que era então o ministro da Propaganda, e assim nós vivíamos durante muito tempo.”
António Costa acrescentava ainda, corrosivo, que “só na segunda maioria absoluta é que se deu a liberalização da televisão e começou a haver uma visão mais crítica sobre o país”. “E a verdade é que bastou que isso acontecesse para que essa maioria absoluta desaparecesse, se esfumasse rapidamente, e o professor Cavaco em 1995 tivesse decidido que não ia continuar a ser candidato a primeiro-ministro — porque, obviamente, percebeu que o estilo de governação que tinha era dificilmente compatível com essa nova condição”.
Apesar de todas as garantias de que Marcelo não vai alimentar nem permitir uma guerra em toda a linha com António Costa, todos estes sinais apontam no mesmo sentido: as provocações têm-se intensificado nos últimos tempos.
Tudo é motivo para Marcelo Rebelo de Sousa contrariar o Governo. O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, disse esta segunda-feira que nunca mostrou nenhumas reticências em assinalar o 25 de Novembro, mas defende que nos 50 anos do 25 de Abril o país deve focar-se em “comemorar aquilo que nos une“.
Horas depois, chegava a resposta de Marcelo, em sentido contrário, defendia que as comemorações podiam muito bem ser integradas nas comemorações, que se vão estender até dezembro de 2026:”Eu acho que a ideia é [o 25 de Novembro] obviamente caber [nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril]. Quer dizer, cabe”. Uma história que terá seguramente muitos mais capítulos.