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“Isto é inaceitável. As pessoas de Itália vivem numa democracia ou numa autocracia que não foi eleita e que toma todas as decisões?” Há menos de uma semana, o magnata e dono da Space X, do X e da Tesla, Elon Musk, recorreu à conta pessoal da rede social de que é dono para contestar a deliberação de um tribunal italiano. Em causa estava a decisão que invalida que dezenas de requerentes de asilos sejam transportados para um centro de acolhimento na Albânia, ao abrigo de um acordo estabelecido em 2023 entre o governo do país dos Balcãs e o executivo liderado pela primeira-ministra, Giorgia Meloni.
This is unacceptable. Do the people of Italy live in a democracy or does an unelected autocracy make the decisions? https://t.co/MdVUbt1jbF
— Elon Musk (@elonmusk) November 13, 2024
Após a publicação no X, Meloni conversou ao telefone com Elon Musk para esclarecer o assunto. Durante a chamada telefónica, a primeira-ministra e o homem mais rico do mundo, que mantêm uma relação de amizade, falaram sobre a reação do Presidente italiano, Sergio Mattarella. O chefe de Estado não gostou que o magnata tivesse interferido nos assuntos internos italianos e emitiu um comunicado: “Itália é um país democrata e que sabe cuidar de si mesmo. Qualquer pessoa, especialmente se estiver prestes a assumir um importante papel no governo de um país aliado e amigo, deve respeitar a soberania e não deve dar instruções”.
A intervenção de Elon Musk, aliado público de Giorgia Meloni, nas redes sociais revela o estado de tensão que se vive em Itália entre o poder judicial e o governo italiano — que junta os Irmãos de Itália da primeira-ministra, a Liga de Matteo Salvini e o Forza Italia, o partido liderado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Antonio Tajani e fundado por Silvio Berlusconi. A primeira-ministra quer levar avante o plano que prevê que os imigrantes que cheguem a Itália e sejam resgatados, muitos deles no Mar Mediterrâneo, sejam transferidos para centros de acolhimento na Albânia. Mas os tribunais têm colocado vários entraves.
O poder judicial italiano tem levantado dúvidas sobre um ponto em particular. Ao abrigo do plano, apenas podem ser transferidos para a Albânia migrantes que cumpram três condições: que sejam homens adultos, saudáveis e oriundos de “países seguros”. O problema? Os tribunais italianos têm argumentado que a legislação italiana diverge da europeia sobre que países é que se enquadram na categoria de “seguros”, lembrando igualmente que o Direito europeu tem primazia face ao dos Estados-membros.
O governo italiano não tem escondido a insatisfação com a decisão dos tribunais, num assunto que assume uma grande preponderância do discurso político dos partidos que compõem o governo — a política das migrações. Assim, recuperando alguns fantasmas das polémicas que envolveram o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, os parceiros de coligação que governam Itália têm deixado ataques aos juízes.
Egito e Bangladesh são países seguros? Os argumentos judiciais e os ataques
Foi em meados de outubro que os primeiros 16 migrantes foram deslocados para os dois centros de acolhimento Gjader e Shengjin, no norte da Albânia. Os homens — dez oriundos do Bangladesh e seis vindos do Egito, que chegaram de barco à ilha de Lampedusa — estiveram, contudo, poucas horas em território albanês. Um tribunal de Roma ordenou o seu regresso a Itália, impossibilitando a sua transferência.
“Os dois países de onde vêm os imigrantes não podem ser reconhecidos como países seguros”, explicaram os juízes na decisão judicial, acrescentando que, por isso, tinham “o direito de serem trazidos para Itália”. Os magistrados recordaram uma decisão de maio de 2024, tomada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJE), que, num caso que envolveu a República Checa, declarou que um país só podia ser considerado seguro se todo o seu território estivesse livre de perigo — algo que não acontece em relação ao Bangladesh e ao Egito.
A reação dos membros do governo italiano foi imediata. Matteo Salvini apontou o dedo aos magistrados, sublinhando que Itália estava nas mãos de “juízes de esquerda, pró-imigrantes, pró-ONG, que tentam desmantelar as leis do Estado”: “Se não gostam de nada do que o governo faz, candidatem-se às eleições, se acreditam que as fronteiras de um Estado são algo que pode ser ultrapassado ou superado. Vocês não assustam de forma alguma”.
A primeira-ministra italiana também reagiu. Giorgia Meloni assinalou que não acredita que deve ser o poder judicial a “definir que países são seguros ou não”. “A responsabilidade deve ser do governo, por isso, acredito que o governo deve clarificar o que é um país seguro”, indicou. Em apenas dois dias, cumpriu a palavra.
Num conselho de ministros extraordinário pouco depois da decisão do tribunal de Roma, o governo italiano veio atualizar uma lista fixa de 19 países considerados “seguros” que serviria de guia para a tomada de decisões no futuro. O ministro da Administração Interna, Matteo Piantedosi, disse que a lei era de “interpretação inequívoca” e detalhou que o governo italiano teve em conta a segurança da integridade territorial dos Estados em questão. A lista continuava restrita ao ordenamento jurídico italiano, sendo que a União Europeia não possui qualquer mecanismo concreto para avaliar que países são seguros ou não.
No início de novembro, Itália insistiu na aplicação do acordo que assinou com a Albânia. Desta vez, o governo italiano tinha dado luz verde para que oito migrantes de países seguros incluídos na lista fossem deportados para território albanês. Mas um tribunal de Roma voltou a determinar o regresso dos migrantes. “Os critérios para designar um Estado como país de origem seguro são estabelecidos pela legislação da União Europeia. Os juízes têm o dever de verificar a forma correta da aplicação do direito da União, que prevalece sobre o direito nacional mesmo quando é incompatível”, estipularam os magistrados, remetendo a questão para a Justiça europeia.
Foi outra derrota para o governo italiano. O plano para acolher requerentes de asilo na Albânia voltava a fracassar, atingindo uma das principais bandeiras eleitorais de Giorgia Meloni e também de Matteo Salvini. “Não é uma chapada na cara ao governo, é antes uma escolha que prejudica a segurança e carteiras dos italianos”, afirmou o líder da Liga.
Também o líder do Forza Italia, Antonio Tajani, acusou os “magistrados de tentarem impor a sua linha ao governo”. “Isso não é aceitável. Uma república democrática baseia-se na divisão tripartida dos poderes. Nenhum destes deve atravessar as suas funções. Quando isso acontece, a democracia enfrenta dificuldades”, indicou o dirigente da força de centro-direita.
O cerco aos juízes, o passado de Berlusconi e uma “vendetta” de Meloni?
Nos dias seguintes à primeira decisão judicial, os membros do governo italiano vieram a público criticar os magistrados. “A decisão teve um viés ideológico. Fora disso, a questão é mais ampla é entender por motivo é que os juízes estão a dizer que países seguros não existem. Então o problema não é a Albânia. O problema é que ninguém pode ser repatriado. O problema é que não se podem mandar embora pessoas. O problema é que não se pode implementar qualquer programa para defender as fronteiras”, criticou Giorgia Meloni, em meados de outubro.
O partido da primeira-ministra, os Irmãos de Itália, ainda foi mais crítico da decisão. “A esquerda judicial veio em auxílio da esquerda parlamentar”, atacou a formação partidária em comunicado, acusando os juízes de criarem obstáculos para “deter quem entra” em solo italiano “ilegalmente”. “Eles gostariam de abolir as fronteiras de Itália”, avisaram.
Dias depois, Giorgia Meloni publicou nas redes sociais um email do procurador-adjunto Marco Patarnello, inicialmente publicado no jornal Il Tempo. Nesse email interno, o responsável jurídico deixava duras críticas à primeira-ministra italiana. “O ataque à jurisdição nunca foi tão forte, talvez nem mesmo no tempo de Berlusconi”, escreveu o procurador. “De qualquer forma, é um ataque muito perigoso por vários motivos. Em primeiro lugar, porque Meloni não tem investigações judiciais abertas em seu nome. Não age por interesses pessoais, mas sim por visões políticas e isso torna-a mais forte. E também torna as suas ações mais perigosas, tendo como objetivo reescrever toda a jurisdição.”
“O expoente da magistratura democrática”, ripostou Giorgia Meloni nas redes sociais, a que se seguiram várias críticas dos seus aliados políticos, como Salvini: “Se há alguém que tomou o Tribunal como local para preparar uma vingança política, faz o trabalho errado, muito simplesmente”. A oposição, liderada pelo Partido Democrático (PD), acusou a primeira-ministra de se “vitimizar” e colocar em risco a independência do poder judicial.
Giorgia Meloni não foi a única a queixar-se do poder judicial. Ao longo das últimas décadas, a relação dos políticos e dos juízes foi tensa. No início dos anos 90, a megaoperação Mani Pulite (Mãos Limpas) expôs uma vasta rede de corrupção que terminou com a Primeira República Italiana, como a dissolução de forças políticas fundadas após o regime do duce Benito Mussolini, como a Democracia Cristã e o Partido Socialista Italiano. Como lembra a Spectator, os italianos estiveram a favor dessa profunda remodelação.
“Meloni non ha inchieste giudiziarie a suo carico e quindi non si muove per interessi personali ma per visioni politiche e questo la rende molto più forte, e anche molto più pericolosa la sua azione (…)”. Così un esponente di Magistratura democratica. pic.twitter.com/p2oeaXuvGF
— Giorgia Meloni (@GiorgiaMeloni) October 20, 2024
O único partido que saiu mais ou menos ileso destes escândalos foi o Partido Comunista Italiano — e, desde aí, tem havido uma certa associação do poder judicial aos comunistas. Foi também nessa altura que Silvio Berlusconi entrou na política. E que também se abriu um novo capítulo na relação entre o poder político e a justiça italiana. Apesar de todas as acusações e penas de que foi alvo ao longo da sua carreira política, o Forza Italia, partido que fundou, foi vencendo eleições, com Silvio Berlusconi a ocupar o cargo de primeiro-ministro por vários anos.
Numa longa vida política, Silvio Berlusconi foi atirando contra o poder judicial sempre que podia, defendendo a “luta pela democracia e pela liberdade”. “Vamos fazer de Itália um país em que as pessoas não têm medo de irem para a prisão por razão nenhuma”, assinalou o líder da Forza Italia num comício em 2013. A ideia, que ganhou dimensão com o ex-primeiro-ministro e que foi ganhando tração entre o eleitorado, é de que os juízes têm intenções políticas, que tendem para a esquerda.
Aproveitando esse contexto, a primeira-ministra italiana volta a colocar a mira nos juízes para alcançar um fim político. Como nota o Politico, por conta do passado entre o poder judicial e o poder político, isso pode ser uma estratégia eficaz, por causa da desconfiança em relação às instituições jurídicas. E o objetivo a alcançar também é bastante importante para Giorgia Meloni. “Fomos eleitos para lutar contra imigração ilegal e desmantelar a rede de escravos desumano no Mediterrâneo e não vamos desistir”, disse Andrea Delmastro Delle Vedove, deputado dos Irmãos de Itália, na sequência da decisão judicial de novembro.
Os Irmãos de Itália e a Liga apoiam uma política migratória bastante mais restritiva. Politicamente, sabem que é um trunfo e não podem prescindir dele, sendo que o falhanço do acordo com a Albânia pode ser um derrota em toda a linha para os dois partidos, que podem ser vistos como ineficazes num tópico em que fizeram tantas promessas. Isto ajuda a explicar o que muitos jornais descrevem como uma “vendetta” de Giorgia Meloni contra o poder judicial.
Como parte dessa vendetta, o partido de Giorgia Meloni apresentou uma emenda legislativa destinada a retirar poderes aos magistrados na aceitação ou rejeição da detenção de migrantes. A mesma emenda também privaria as secções especializadas em migração dos tribunais competentes de terem de validar as detenções, quebrando os atuais fundamentos da organização judicial. As associações de magistrados têm deixado várias críticas às alterações.
Por sua vez, os parceiros de coligação apoiam esse emenda. Em termos políticos, também é certo que Matteo Salvini e Giorgia Meloni estão unidos na questão da imigração, mas também competem pelo mesmo eleitorado. Porém, há algo que os distingue. A primeira-ministra italiana usa uma retórica e um estilo menos agressivo em comparação com Matteo Salvini, cujo partido mantém uma essência antissistema mais vincada. Para essa imagem que gosta de cultivar, a chefe do executivo também conta com a boa relação quem mantém com alguns líderes europeus, como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Moderada, “ma non troppo”. Como Giorgia Meloni pôs Salvini no bolso e encantou Von der Leyen
Por exemplo, após o acordo assinado com a Albânia, Ursula von der Leyen descreveu-a como uma abordagem “fora da caixa” — e a presidente da Comissão Europeia até o chegou a apoiar. “Devemos continuar a explorar as ideias de desenvolver centros de acolhimento fora da União Europeia”, escreveu a líder comunitária numa carta.
Independentemente dos apoios que tem recebido, o governo italiano tem tido dificuldades em convencer a população do acordo. Uma sondagem publicada esta segunda-feira pela Sky Tg24 mostra que 49% vê com maus olhos o plano assinado com a Albânia, contra 38% que estão a favor. Contudo, entre os apoiantes dos Irmãos de Itália, 81% estão a favor, enquanto 76% da Liga estão a favor — o que mostra que, na base eleitoral dos dois partidos, o pacto é bem visto.
No que diz respeito a que entidade deve caber a definição de país seguro, o cerne da disputa entre os tribunais e o governo, 43% dos inquiridos da sondagem acreditam que deve ser a União Europeia a definir esse estatuto, enquanto 28% indicam que deve ser o governo. Apenas 16% dizem que deve ser os tribunais. No entanto, mesmo entre apoiantes dos Irmãos de Itália e da Liga, há algumas dúvidas sobre a que entidade deve caber essa responsabilidade.
A ofensiva ao poder judicial de Giorgia Meloni não dá sinais de parar, apesar das queixas que o poder judicial tem repetido nas últimas semanas — incluindo o facto de uma juíza já ter recebido ameaças de morte. Porém, isso será um dano colateral para o governo. Na base do conflito com a magistratura está a imigração, um tema central na ideologia da primeira-ministra (e do governo) e um assunto em que Meloni não pode capitular. Porque tem Salvini, parceiro e ao mesmo tempo concorrente, muito perto no executivo que lidera.