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Para enganar as autoridades, e a censura, os chineses usam um trocadilho é fonético: “Arroz coelho” que em chinês, 米兔, pronuncia-se “mi tu”
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Para enganar as autoridades, e a censura, os chineses usam um trocadilho é fonético: “Arroz coelho” que em chinês, 米兔, pronuncia-se “mi tu”

Para enganar as autoridades, e a censura, os chineses usam um trocadilho é fonético: “Arroz coelho” que em chinês, 米兔, pronuncia-se “mi tu”

O caso da tenista Peng Shuai não é o único. #MeToo na China: um movimento de pernas cortadas

O caso da tenista Peng Shuai captou a atenção do mundo, mas está longe de ser único. O movimento #MeToo na China foi uma “barragem que rebentou”, mas desde 2018 que está a ser esmagado pelo governo.

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Desde setembro que a única coisa que se sabe sobre Huang Xueqin é que foi detida pelas autoridades chinesas. A jornalista e defensora dos direitos das mulheres é um dos mais recentes casos polémicos ligados ao movimento #MeToo na China, mas nunca atingiu a notoriedade de Peng Shuai, uma estrela internacional do ténis que acusou de assédio sexual um dos todo-poderosos do Partido Comunista Chinês — Zhang Gaoli, antigo vice-primeiro-ministro.

O caso atingiu proporções à escala mundial quando Peng desapareceu por três semanas. As suspeitas do mundo recaíram sobre o governo chinês, que não foi capaz de estancar a polémica. “Xueqin não é uma figura pública, não há cobertura internacional deste caso”, lamenta Rio (nome fictício), um dos organizadores da plataforma “FreeXueqin&Jianbing”, que faz campanha pela libertação da ativista e do colega Wang Jianbing, ativista defensor dos direitos laborais.

“Agora, qualquer pessoa que diga que é feminista ou que faz campanha por causas feministas é considerada dissidente. E Xueqin é uma figura influente neste movimento”
Rio, nome fictício, organizador da plataforma “Free Xueqin and Jianbing”

Rio está em Taiwan, e esse é um dos motivos por que fala ao Observador, ainda que não divulgue a sua identidade. “Falo porque estou fora da China (continental). É muito perigoso para as pessoas que estão no país falarem publicamente”, ressalva. “Agora, qualquer pessoa que diga que é feminista ou que faz campanha por causas feministas é considerada dissidente. E Xueqin é uma figura influente neste movimento”, explica.

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O recente caso da tenista Peng Shuai, que acusou um antigo dirigente chinês de assédio sexual, veio evidenciar o desconforto de Pequim em relação a este tipo de acusação, principalmente quando o visado ocupa uma posição de poder. Mas a postura das autoridades não é nova. O famoso ‘hashtag’ #MeToo há muito que foi bloqueado na internet chinesa, e muitas outras mulheres tiveram problemas com a justiça ou com a polícia.

Foi o que aconteceu com a influente Huang Xueqin, a mulher que ajudou a divulgar o primeiro caso associado ao #MeToo na China.

Sophia Huang Xueqin, a freelance journalist who wants to raise peopleé??s awareness on sexual harassment in China, poses with a #MeToo sign at her home. 08DEC17 SCMP/Thomas Yau

Huang Xueqin está detida desde setembro, acusada de incitar subversão do poder do Estado

South China Morning Post via Get

A denúncia partiu de Luo Xixi. Em 2018, revelou na internet que, uma década antes, tinha sido assediada por um professor universitário — em apenas 24 horas, a publicação na rede social chinesa Weibo registou mais de três milhões de visualizações. Seguiram-se denúncias de seis outras antigas alunas. O docente, Chen Xiaowu, foi afastado, e, inicialmente, a resposta pública foi positiva: a Universidade de Beihang foi elogiada, e o governo encorajou outras instituições a investigar casos de assédio sexual. Mas esta postura viria rapidamente a mudar.

Antes de tornar o caso público, Luo Xixi contactou Huang Xueqin, que na altura já era conhecida pelo trabalho jornalístico sobre o assédio sexual. Huang ajudou Luo a apresentar queixa contra o professor, tornando-se, desde então, um ícone do #MeToo na China.

Do feminismo para a democracia

É difícil dizer exatamente o que levou à detenção de Huang Xueqin que, aos 33 anos, tem já uma longa história de ativismo.

Depois do caso de Luo Xixi, outras vítimas vieram pedir-lhe ajuda. Numa ocasião, conseguiu que uma rapariga recebesse 5.000 yuan (cerca de 700 euros) de compensação do agressor. A jovem optou por doar o dinheiro a Huang, que começou assim um fundo para o apoio a vítimas de assédio sexual.

Mas nem todo o seu trabalho está ligado a questões de género. Em 2019, a jornalista de Cantão estava em Hong Kong e escreveu sobre os protestos contra a lei da extradição, um diploma que levou milhões para a rua e marcou o início de um gigantesco movimento popular de contestação contra a interferência de Pequim em Hong Kong.

Getty Images

O artigo foi mal recebido pelas autoridades e, ao regressar à China continental, Huang foi detida, acabando por ser libertada só ao fim de três meses. Rio, amigo de longa data, contextualiza: “O governo valorizou este artigo porque nessa altura ela já era muito influente, tinha muita notoriedade por causa do #MeToo”.

A detenção não abrandou a jornalista. De regresso a Cantão, continuou ativa em várias causas, e este ano começou a organizar, com o amigo Wang Jianbing, “encontros comunitários” semanais. “Todas as quintas-feiras à noite, amigos da sociedade civil de Cantão vinham ao apartamento de Jianbing para falar de diferentes questões sociais. Era um espaço para as pessoas partilharem as suas experiências. Havia também muitas questões ligadas ao #MeToo, pessoas que enfrentavam assédio sexual. Esta comunidade apoiava-as”, descreve Rio.

Estes encontros terão sido a gota de água para as autoridades. Huang e Wang desapareceram em setembro, mas só no início de novembro é que a família recebeu uma notificação de detenção. Ambos estão acusados de incitar à subversão do poder do Estado — o mesmo crime que levou à condenação de Liu Xiaobo, o único Nobel da Paz chinês. Por se tratar de uma questão de segurança nacional, foi-lhe recusada visita do advogado. A família também não pôde, até agora, visitar, ou sequer falar, com Huang.

Acho que existe zero probabilidade de serem libertados. Julgo que vão ser condenados. Digo isto porque, nestes dois meses, mais de 50 pessoas, amigos de Xueqin ou Jianbing, foram interrogados pela polícia, alguns durante 12 horas. No momento em que falo consigo, tenho um amigo na esquadra a ser interrogado”, diz Rio.

O grupo de Rio, “FreeXueqin&Jianbing”, tem feito o que pode para divulgar o caso. Entende que esta é a única maneira de garantir que são tratados com dignidade enquanto estão presos. “O caso está numa caixa negra e não sabemos o que se está a passar. Não temos esperança de que saiam em breve, o que esperamos é que a nossa voz possa fazer com que sejam mais bem tratados no centro de detenção”, afirma.

“Depois de 2018, o feminismo tornou-se uma questão política. Antes disso, quando as pessoas falavam de feminismo, o governo não considerava que eram campanhas organizadas ou influenciadas por forças estrangeiras, ou políticos ocidentais. Mas depois o #MeToo, tornou-se um tema muito sensível”
Rio, organizador da plataforma “Free Xueqin and Jianbing”

O fantasma das interferências externas

Rio admite que há um conjunto de motivos que colocaram Huang nesta situação, mas não tem dúvidas de que o envolvimento da jornalista com o movimento #MeToo foi determinante. “Depois de 2018, o feminismo tornou-se uma questão política. Antes disso, quando as pessoas falavam de feminismo, o governo não considerava que eram campanhas organizadas ou influenciadas por forças estrangeiras, ou políticos ocidentais. Mas depois o #MeToo tornou-se um tema muito sensível”, explica.

O ativista entende que o governo considera que Huang Xueqin e o colega Wang Jianbing são “apoiados por forças estrangeiras” e “tentam impor uma ideologia estrangeira”.

FRANCE-WOMEN-POLITICS-HARASSMENT-SEXISM

AFP via Getty Images

Esta não é só a leitura da maioria dos ativistas e investigadores do movimento #MeToo, é também a narrativa oficial de Pequim.

“O verdadeiro objetivo do movimento na China não é a oposição ao assédio sexual e a promoção de igualdade de género. Sob o pretexto de um ‘movimento de bases que quer quebrar o silêncio’, este é na verdade um movimento para instigar caos, divisão e até subversão na China (…) Algumas forças Ocidentais são extremamente desprezíveis por tentarem usar o movimento para destruir a sociedade chinesa”, escreve o jornal Global Times, com fortes ligações ao Partido Comunista chinês.

Este artigo, publicado em setembro, aponta Huang Xueqin como exemplo de que o #MeToo “está intimamente ligado a forças estrangeiras, e tem sido aproveitado por alguns grupos ou figuras anti-China”.

Este novo entendimento teve um efeito devastador para organizações que se dedicavam a questões de género — muitas foram obrigadas a encerrar. Frida, que também prefere não revelar o nome verdadeiro, trabalhava numa destas ONG. “O nosso foco era o combate ao assédio sexual. Fazíamos relatórios regulares, dávamos formação a advogados, a assistentes sociais ou em universidades. Também fazíamos formação de formadores, que depois trabalhavam em campanhas públicas sobre o assunto”, explica, em entrevista ao Observador.

Tal como Rio, Frida só aceita falar através de plataformas encriptadas, que garantem um maior grau de segurança nas comunicações. Os dois são chineses.

Foi no âmbito deste trabalho que Frida conheceu Huang Xueqin. “Ela veio a um workshop e apresentou-se. Disse que estava interessada em fazer investigação sobre assédio sexual entre jornalistas. Decidimos cooperar na elaboração de um relatório. Foi assim que tudo começou, ficámos amigas”, recorda.

Jornalistas na linha da frente do assédio sexual

Os resultados deste inquérito foram alarmantes: das 416 jornalistas inquiridas, mais de 80% disseram ter sido vítimas de assédio sexual, incluindo comportamento sexual indesejado de natureza física ou verbal. E, dessas, 40% revelaram que o assédio partiu dos seus chefes. “É uma taxa bastante elevada. Há muitos casos de jornalistas assediadas em ambiente de trabalho, quer enquanto faziam entrevistas quer por colegas ou pelo patrão”, comenta.

Há histórias de todos os tipos, mas Frida diz que na China há um ‘modus operandi’ muito comum: “Quando há uma festa e as pessoas bebem, os homens acham sempre que se podem aproveitar das mulheres, especialmente as mulheres com menos poder.”

“Conheço uma jornalista que foi violada por um investidor do jornal. Outra foi assediada por um entrevistado, e foi uma coisa que teve um grande impacto. Passou a sentir-se preocupada e com medo nas entrevistas seguintes"
Frida, nome fictício, dirigente de uma ONG proibida na China

Ela própria, antes de começar a trabalhar na área dos direitos das mulheres, passou por uma situação semelhante. “Depois de bebermos algum vinho, no meu último dia de trabalho, o meu patrão pediu-me para ir ao andar de cima com ele, só os dois. Eu estava um bocadinho bêbeda e acho que ele tinha intenção de se aproveitar de mim. Mas recusei, fiquei no primeiro andar do edifício, não subi”, recorda.

Se no caso de Frida o episódio não passou de um susto, noutros não foi assim. “Conheço uma jornalista que foi violada por um investidor do jornal. Outra foi assediada por um entrevistado, num episódio que teve um grande impacto. Passou a sentir-se preocupada e com medo nas entrevistas seguintes, com receio de estar sozinha com um homem. Sentia-se em grande desvantagem em relação a jornalistas homens, que não têm qualquer receio”, descreve.

A própria Huang Xueqin, diz Frida, foi vítima de assédio sexual por um superior, enquanto jornalista.

A detenção da amiga, com quem tinha falado dias antes, foi “um choque”. “Parte-me o coração. Depois de ela ser detida, muitas vítimas vieram ter comigo para saber como ela está. Ficaram muito tristes”, garante.

ONG debaixo de fogo

A ONG de Frida, cujo nome prefere não divulgar, foi obrigada a encerrar em 2018, por ordem das autoridades.

“Não percebem por que é que há tantas mulheres a fazer denúncias. Assumem que deve haver alguma organização por detrás do movimento, acham que as vítimas são arregimentadas." 
Frida, dirigente de uma ONG proibida na China

“Acham que há forças por detrás do movimento #MeToo na China. Desde 2018 que houve centenas de denúncias nas redes sociais. E a nossa ONG era das mais ativas a apoiar as vítimas”, justifica.

Frida diz que, além da questão política, a postura do Governo espelha também uma desvalorização das mulheres: “Não percebem por que é que há tantas mulheres a fazer denúncias. Assumem que deve haver alguma organização por detrás do movimento, acham que as vítimas são arregimentadas. Acham que há alguma intenção por trás, ou forças estrangeiras que querem causar problemas à China. Não conseguem acreditar que uma mulher queira, só por si, denunciar. Acham que as mulheres são usadas, que não tomam as suas decisões.”

Mas por que é que, de facto, tantas mulheres começaram a fazer denúncias de assédio sexual?

"As mulheres decidiram que já não vão aceitar a desigualdade. A sociedade e o governo não se prepararam para o facto de, agora, haver uma nova geração que quer reformar as normas tradicionais”
Lu Pin, ativista e investigadora do #MeToo na China

“Depois do ‘hashtag’, as pessoas sentiram-se inspiradas. Caso a caso, começámos a ver mais denúncias, algumas referentes a casos que aconteceram há anos, outros mais recentes. As mulheres mais jovens não têm tanto medo de dizer que foram assediadas, têm mais coragem para acusar um homem”, conclui Frida.

É também esta a leitura de Lu Pin, ativista e investigadora do movimento #MeToo na China. “As mulheres decidiram que já não vão aceitar a desigualdade. A sociedade e o governo não se prepararam para o facto de, agora, haver uma nova geração que quer reformar as normas tradicionais”, diz a professora universitária, que agora vive nos Estados Unidos.

Uma metade distante do céu

“As mulheres seguram metade do céu.” A frase é atribuída ao grande timoneiro do Partido Comunista da China, Mao Zedong, e quis situar a China na vanguarda da igualdade de género, mas mais de meio século depois continua a falhar no teste.

“Essa frase é só propaganda”, reage Lu Pin. “Os países socialistas dizem sempre que proporcionam mais igualdade de género que os países capitalistas, mas isso não é verdade, é só propaganda”, frisa.

A investigadora ressalva que a condição das mulheres registou melhorias nos últimos anos — há mais mulheres nas universidades, mais mulheres com empregos bem pagos, que vivem sozinhas, em contexto urbano —, mas entende que esses avanços não são suficientes. “Se olharmos para a discriminação de género no local de trabalho, para a violência doméstica, o desempenho não é muito bom”, comenta.

Além disso, continua a investigadora, a falta de dados estatísticos sobre assédio sexual reflete falta de interesse por parte do Executivo. “Não há inquéritos nacionais que provem quão prevalente o assédio sexual é. Se o governo não investe em investigação, se não há financiamento público para os académicos investigarem, então não temos dados”, lamenta.

Neste contexto, apesar da onda #MeToo, as mulheres continuam a hesitar fazer denúncias públicas. Não é só um problema social e de género, comum a tantos países do mundo. Na China, as denúncias acarretam também um risco político.

#ArrozCoelho

A máquina da censura tenta resolver o problema a montante: termos como #MeToo ou similares, nomes de vítimas mais famosas ou plataformas não surgem sequer nos motores de busca e quem os escreve não os vê publicados.

“Em 2018 a expressão #MeToo foi censurada. As pessoas usam “arroz” e “coelho” em vez de #MeToo. Quando as pessoas se querem referir ao #MeToo é muito comum escreverem ‘arroz’ e ‘coelho’”
Lu Pin, ativista e investigadora do #MeToo na China

É uma realidade a que os internautas chineses estão habituados, e que se estende a múltiplas áreas da vida social e política. A prática a lidar com a censura resulta quase sempre em soluções criativas: é comum a utilização de números, alegorias, siglas e imagens, em combinações altamente elaboradas para contornar o lápis azul.

Este caso não é exceção. “Em 2018, a expressão #MeToo foi censurada. As pessoas usam “arroz” e “coelho” em vez de #MeToo. Quando as pessoas se querem referir ao #MeToo é muito comum escreverem ‘arroz’ e ‘coelho’”, explica Lu Pin.

O trocadilho é fonético: “Arroz coelho” em chinês, 米兔, pronuncia-se “mi tu”. O ‘hashtag’ com origem americana já foi, por isso, muitas vezes substituído, na China, pelo #ArrozCoelho, por vezes acompanhado de outras versões chinesas como #EuTambémSou (#我也是) e #MeToonaChina (#MeToo在中国).

Mas conseguir contornar a censura não significa que os problemas acabaram. “Se a publicação atrai muita atenção, também pode ser perigoso, porque há uma lei que diz que ‘promover discussões e provocar problemas’ é crime. Isso faz com que muitas vítimas desistam”, explica Lu Pin. Esta é uma acusação-chapéu, invocada com muita frequência na China e capaz de abranger quase todo o tipo de comportamento considerado desordeiro — seja político ou não.

Uma questão de prova

Antes da conceituada tenista Peng Shuai captar a atenção do mundo, ao desaparecer por três semanas depois de acusar um alto cargo do Partido Comunista da China de assédio sexual, Xianzi era o nome que todos na China associavam ao #MeToo.

A antiga estagiária da emissora estatal CCTV acusou, em 2018, um famoso pivot de televisão de assédio sexual. Zhou Xiaoxuan, conhecida como Xianzi, disse que Zhu Jun a apalpou e beijou à força, quando os dois ficaram por momentos sozinhos um camarim. Na altura, Xianzi tinha pouco mais de 20 anos.

A publicação online foi um sucesso: partilhada múltiplas vezes, conseguiu uma grande cobertura mediática. Mas isso não impediu que a polícia desse uma resposta negativa. Xianzi diz que foi aconselhada a desistir da queixa, já que Zhu, uma proeminente figura da televisão, era visto como uma pessoa com “impacto positivo na sociedade”.

Zhou Xiaoxuan, conhecida como Xianzi, processou um pivot da CCTV por assédio sexual

Xianzi decidiu, ainda assim, avançar com um processo judicial. Além de um pedido público de desculpas, exigia uma indemnização de 50.000 yuan (quase 7.000 euros). Zhu negou as acusações e processou a ex-estagiária por difamação. Três anos depois, a justiça decidiu contra a queixosa. O tribunal de Haidian considerou que Xianzi não conseguiu apresentar provas de que o assédio tinha, de facto, acontecido.

No dia 14 de setembro, à porta do tribunal, Xianzi disse aos jornalistas que os juízes não lhe deram oportunidade de detalhar as alegações. De acordo com o New York Times, a queixosa lamentou não podido apresentar provas, como gravações vídeo do exterior do camarim e notas que a polícia tirou durante entrevistas com os seus pais, logo após o alegado assédio.

Apesar de desanimada, Xianzi prometeu recorrer da decisão. “Acho que fiz tudo o que posso. Não há mais esforços que possa fazer. Não me perguntaram se vou recorrer. Vou, mas acho que já dei tudo o que tinha a dar”, afirmou, citada pelo jornal americano. O processo de Xianzi data de 2018 e, nessa altura, este tipo de queixas eram tratadas como disputas laborais, ou ao abrigo de outras leis não relacionadas com assédio sexual. Este caso foi designado como uma “disputa de direitos da personalidade”.

O tribunal não deu razão a Zhou Xiaoxuan, conhecida como Xianzi, num caso de assédio sexual

Mas, desde então, a lei chinesa passou a contar com um novo instrumento: o artigo 1010 do Código Civil entrou em vigor no início deste ano e apresenta uma ampla definição de assédio.

“Diz que não se trata apenas de tocar, mas também palavras ou imagens enviadas por mensagem. Diz diretamente que a vítima pode processar o agressor”, explica ao Observdor Darius Longarino, especialista em Direito da China. O investigador da Universidade de Yale sublinha, no entanto, que este novo artigo não significa que o assédio seja crime. “É um mecanismo que se pode usar para processar alguém num tribunal cível”, esclarece. “É sem dúvida uma melhoria”, diz Longarino, mas não elimina uma série de outras dificuldades que as vítimas enfrentam.

"Se a vítima não tiver provas concretas, como uma gravação ou fotografias, tem uma probabilidade muito pequena de ganhar”
Darius Longarino, especialista em Direito da China

“O motivo por que as pessoas perdem em tribunal tem a ver com as regras do jogo em litigância. Na China, o queixoso tem o ónus da prova em casos cíveis. E tem de provar o caso com um grau de certeza de 75% a 85%, é bastante alto”, explica.

Além disso, os tribunais desfavorecem o depoimento das partes envolvidas. “O testemunho de uma parte num caso não pode ser base única para provar um facto. Num caso de assédio sexual que ocorre num espaço fechado, sem testemunhas, sem câmaras nem gravações, é a palavra de A contra a palavra de B. Mesmo que, hipoteticamente, o juiz acredite sinceramente que a parte A está a dizer a verdade, não lhe pode dar razão. Se a vítima não tiver provas concretas, como uma gravação ou fotografias, tem uma probabilidade muito pequena de ganhar”, indica o investigador.

“Os casos em que a vítima processou o agressor são muito raros. O mais comum é ser o agressor a processar a vítima por difamação, ou a processar o empregador por ter sido despedido ou punido”
Darius Longarino, especialista em Direito da China

Neste contexto, os processos judiciais iniciados por vítimas acabam por ser raros. Mais comum é as queixosas serem processadas por difamação. Numa análise a bases de dados judiciais, entre 2018 e 2020, Darius Longarino encontrou apenas 83 casos cíveis relacionados com assédio sexual, e quase todos partiam do alegado agressor. “Os casos em que a vítima processou o agressor são muito raros. O mais comum é ser o agressor a processar a vítima por difamação, ou a processar o empregador por ter sido despedido ou punido”, explica Darius Longarino, autor desta investigação.

“Nos 83 casos que encontrámos, 93% eram de agressores a processar alguém. Só 7% eram vítimas a processar o agressor”, revela, acrescentando que, em casos de difamação, o ónus da prova é ao contrário, não cabe ao queixoso. “As vítimas ficam numa situação difícil. Se processarem têm o ónus da prova. Se denunciarem online são processadas por difamação e têm também o ónus da prova”, resume.

Apesar das dificuldades, o professor da Universidade de Yale sublinha a importância das mudanças no Código Civil. “Não quero estar a dizer que não significam nada. Significam. Estes instrumentos são valiosos, mas são muito graduais”, afirma.

"O #MeToo é tão poderoso porque é como uma barragem que rebentou. Ao reprimir discussões sobre o que se passou com Xianzi ou com Peng Shuai remove a ideia de que as pessoas podem usar a lei, podem fazer-se ouvir. Tenta tirar o oxigénio do movimento”
Darius Longarino, especialista em Direito da China

Estabilidade e proteção do poder

Longarino acredita que as mudanças legais surgiram como resposta ao #MeToo — não só ao movimento, mas aos problemas reais que evidenciou —, mas admite uma certa contradição.

“O partido tenta parecer que está a abordar a causa da insatisfação, ao mesmo tempo que reprime as pessoas que trouxeram essa insatisfação para a superfície (…) O #MeToo é tão poderoso porque é como uma barragem que rebentou. Ao reprimir discussões sobre o que se passou com Xianzi ou com Peng Shuai, remove a ideia de que as pessoas podem usar a lei, podem fazer-se ouvir. Tenta tirar o oxigénio do movimento”, defende.

O especialista em Direito da China acredita que o executivo não é “totalmente cínico” em relação aos problemas de assédio sexual do país. “Em teoria, o partido gosta de se apresentar como protetor dos direitos das mulheres, da igualdade de género. Mas no fim de contas o que importa mais são as necessidades do partido: estabilidade, manutenção e proteção do monopólio do poder”, conclui.

Lu Pin tem uma leitura semelhante. O governo chinês, diz, quer combater o assédio sexual — prova disso é a imposição de novos regulamentos nas universidades, que proíbem relações íntimas entre professores e estudantes, e “trouxeram mudanças consideráveis na educação”.

No entanto, o governo quer concentrar em si “toda a autoridade”. “Não quer que a sociedade se organize para resolver problemas, quer que fiquemos à espera”, afirma.

Quando as vítimas fazem denúncias online, causam “agitação na sociedade”, aos olhos do Executivo. “Como não conseguem proteção do sistema legal, viram-se para a internet e é comum criticarem a polícia e o tribunal. E o governo não quer críticas ao sistema. A prioridade é manter a estabilidade da sociedade, e isso significa que ninguém se queixa, não há conflitos”, defende Lu Pin.

A lição política de Peng Shuai

A lista de denúncias públicas de assédio sexual na China não é enorme, mas é significativa o suficiente para ser uma questão política interna. E, apesar de a repressão ter feito abrandar as queixas, elas continuam a fazer-se notar — o caso de uma funcionária do gigante Alibaba que acusou o supervisor de abuso sexual voltou este verão a fazer notícia.

Alguns destes casos chegam aos media internacionais, mas nada que se assemelhe ao que se passou com a tenista Peng Shuai.

“É um caso diferente por causa da fama dela. E também é diferente por causa da posição do acusado, um líder de topo do partido. É muito mais sensível politicamente, porque relevou o lado negro da vida dos líderes. O partido não permite que as pessoas falem disso”, comenta Lu Pin.

No início de novembro, a estrela do ténis Peng Shuai acusou Zhang Gaoli de abuso sexual — foi a primeira vez que o #MeToo atingiu a cúpula do poder chinês.

epa09591476 (FILE) - Peng Shuai of China in action during her women's singles first round match against Nao Hibino of Japan at the Australian Open Grand Slam tennis tournament in Melbourne, Australia, 21 January 2020 (re-issued 19 November 2021). The Women’s Tennis Association (WTA) chief executive Steve Simon said in an interview with a US broadcaster on 18 November 2021 that the WTA could pull their business and deals out of China over the uncertainty of Peng Shuai's situation. Peng has not been seen in public since 02 November 2021 following a post of her on social alleging that she was sexually assaulted by a former Chinese vice premier.  EPA/FRANCIS MALASIG *** Local Caption *** 55786094

A tenista Peng Shuai acusou um alto cargo do Partido Comunista da China de abuso sexual

FRANCIS MALASIG/EPA

Numa publicação na rede social Weibo, Peng admitiu ter tido uma relação amorosa com Zhang, que era casado e foi membro do Comité Permanente do Politburo entre 2012 e 2017.

Mas a tenista diz que a relação não foi sempre consensual. “Por que é que vieste à minha procura outra vez, me levaste para tua casa e me forçaste a fazer sexo? Não tenho provas, e seria impossível para mim manter qualquer prova (…) Essa tarde eu não consenti e chorei o tempo todo”, escreveu Peng Shuai no dia 2 de novembro.

A publicação desapareceu ao fim de 34 minutos, mas esteve online tempo suficiente para ser amplamente partilhada pelos seus 574 mil seguidores no Weibo. Depois disso, a tenista de 35 anos desapareceu durante três semanas. Estrelas internacionais do ténis como Novak Djokovic, Serena Williams e Naomi Osaka manifestaram preocupação com a colega. Nasceu o ‘hashtag’ #WhereIsPengShuai.

Peng voltou a ser vista através uma série de publicações da imprensa estatal chinesa, primeiro através de fotos, partilhadas pelo editor do Global Times, e depois num vídeo em que surge num restaurante em Pequim, mas em que Peng quase não fala.

O Comité Olímpico Internacional anunciou, mais tarde, ter falado durante meia hora com Peng, através de uma vídeo-chamada em que a tenista terá dito que estava bem. Da conversa com câmara só existe, no entanto, uma fotografia.

A polémica chegou às mais altas instâncias: a Casa Branca e a ONU pediram uma investigação ao caso — o Presidente americano Joe Biden chegou a colocar a hipótese de um boicote ao Jogos Olímpicos de Inverno em 2022. E, no dia 1 de dezembro, a Associação de Ténis Feminino (WTA, Women’s Tennis Association) passou das palavras aos atos e anunciou a suspensão imediata de todos os torneios na China, incluindo em Hong Kong.

“Ela própria escreveu ‘Sou como uma traça atraída pelas chamas, sou como um ovo a embater como uma rocha’. Ela sabia das consequências. Mas claro, tem família, tem uma equipa, uma carreira. A prioridade tem de ser a sua segurança física e a da sua família."
Lu Pin, ativista e investigadora do #MeToo na China

Lu Pin diz que este comportamento por parte das autoridades é comum dentro da China: “Muitas pessoas foram forçadas a dizer que estavam bem, mesmo que não estivessem. Isso já aconteceu muitas vezes. Mas quem não está familiarizado com a política chinesa pode ficar baralhado”, comenta.

A ativista acredita que o caso de Peng Shuai teve um duplo efeito: deu impulso ao #MeToo na China, mas também deixou muitas mulheres assustadas.

Lu Pin não tem dúvidas de que a tenista sabia que a denúncia pública lhe iria trazer problemas. “Ela própria escreveu ‘Sou como uma traça atraída pelas chamas, sou como um ovo a embater como uma rocha’. Ela sabia das consequências. Mas, claro, tem família, tem uma equipa, uma carreira. A prioridade tem de ser a sua segurança física e a da sua família. Se o governo a forçou a fazer alguma coisa, não pôde recusar, temos de compreender”, comenta.

Para a investigadora do feminismo na China, Peng Shuai “criou uma oportunidade para educação política”. “Mostrou-nos o quão difícil é a política na China, fez-nos pensar na natureza confrontacional do movimento #MeToo. Quando lutamos por igualdade de género, vamos inevitavelmente confrontar o poder político”, aponta.

Vítimas vs. Ativistas

Lu Pin não tem estado apenas a assistir, do lado de fora, à repressão do #MeToo. A sua plataforma, “Feminist Voices”, a primeira a usar o termo “feminista” e considerada a mais influente do país, foi banida no Dia Internacional da Mulher, em 2018.

Mas antes disso já Lu Pin se tinha visto obrigada a deixar a China. Aconteceu em 2015, quando estava nos Estados Unidos para uma conferência: cinco ativistas, conhecidas como as “Feminist Five”, foram detidas por planearem um protesto contra o assédio sexual nos transportes públicos.

“Não quis ser testemunha num caso criminal contra as minhas amigas. É uma questão traumática, não quero falar sobre isso. Eu não me mudei para os Estados Unidos, tive de ficar aqui”, diz ao Observador.

Apesar das proporções que o caso da tenista Peng Shuai atingiu, Lu Pin diz que, regra geral, as vítimas são tratadas de forma mais branda que as ativistas.

“As vítimas são apenas indivíduos, as pessoas têm pena delas. Contam com a solidariedade do público, e a solidariedade do público significa alguma proteção. A polícia não trata as vítimas muito mal, ainda que as censurem e as ameacem, não as detêm”, aponta.

É diferente para as ativistas, como Lu Pin: “Fazem campanhas, pedem responsabilidade ao governo. É muito mais perigoso. Mas agora já nem falamos disto, o movimento foi profundamente reprimido. Perdemos os canais para falarmos dos direitos das mulheres.”

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