O dia mais longo em decisões orçamentais antecipa que o orçamento possa ter uma vida curta. O Governo decretou o fim das negociações sem ceder até ao ponto que o PS pretendia e o núcleo duro de Pedro Nuno Santos defendeu o chumbo. Ao mesmo tempo, o Chega foi chamado de catavento e foi novamente afastado com estrondo pelo primeiro-ministro de qualquer acordo. Sobrou a Ventura uma lose-lose situation: teria de aprovar um orçamento a que chamou de socialista e continuaria sem um lugar à mesa de negociações com o Governo. A porta que o Chega diz ter aberta implica a humilhação que Ventura sempre disse que não permitiria.
O dia que se previa que pudesse ser de todas as decisões foi, afinal, de todos os adiamentos. O impasse deve, por isso, continuar, no mínimo, mais um ou dois dias. Mas, a um dia da entrega do OE na AR, foram deixados importantes sinais de que um cenário de chumbo do Orçamento do Estado e consequentes eleições antecipadas está agora mais próximo do que nas últimas semanas.
Governo. Montenegro não cede no IRC, coloca decisão nas mãos de Pedro Nuno e prepara-se para eleições
Luís Montenegro admitiu que tem conversado com Pedro Nuno Santos nos últimos dias, mas decidiu decretar o fim do vai-vem de contrapropostas. O primeiro-ministro comunicou isso mesmo na noite desta terça-feira ao líder do PS que, até então, esperava uma resposta definitiva do Governo à proposta de sexta-feira à noite. Essa resposta foi única (e última) e sabe-se que estará vertida na proposta do Orçamento do Estado que será aprovada esta quarta-feira em Conselho de Ministros e entregue no dia seguinte na Assembleia da República.
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O primeiro-ministro anunciou, no entanto, que não recuou no IRC, mas desconhece-se os termos em que a proposta estará no documento (a referência aos anos seguintes, por exemplo, era contestada pelo PS). Por outro lado, não cedendo ao PS, Luís Montenegro fez uma aproximação de posição ao do PS: se o PS tinha proposto que IRS Jovem passasse dos 13 anos propostos pelo Governo para sete anos, o Governo aceitou recuou 10 anos. A par de tudo isto, na entrevista à SIC, Luís Montenegro deixou vários elogios a Pedro Nuno Santos: “Não fez birra no IRC, só defendeu a sua posição”, “o PS também fez o seu esforço”, “não me custa reconhecer que a proposta [do IRS Jovem] ficou mais equilibrada”.
Seja uma canção do bandido ou uma genuíno desejo de aproximação, Montenegro deixou claro que só quer um parceiro: o PS. Apesar deste aparente esforço e de todo o otimismo o primeiro-ministro quis transmitir na entrevista ao País (que, presume-se, com base nas conversas com Pedro Nuno Santos), Montenegro pretendeu, acima de tudo, colocar pressão no PS.
Montenegro deixa decisão nas mãos de Pedro Nuno e liga modo de combate pré-eleitoral
O otimismo público de Montenegro não tem, como escreveu o Observador, correspondência com aquilo que é o sentimento dos seus mais próximos. Um dirigente do PSD, como escreveu o Observador, chegou a dizer a meio da tarde que “o mais provável é haver eleições antecipadas”. O Governo tentou colocar assim um ponto final no processo e sacudir, para já, a pressão: se o PS viabilizar, o Executivo tem mais um ano e meio de governação; se não o fizer, o Governo está preparado para ir de novo a votos e está confiante que não vai piorar a situação em que está.
PS. Decisão adiada, mas pedronunismo manifesta preferência pelo chumbo
Quando entrou na reunião da bancada do PS, Pedro Nuno Santos já sabia duas coisas: qual a última proposta do Governo para o IRC e o IRS Jovem e o que tinha dito Luís Montenegro na entrevista à SIC. Na intervenção inicial ao grupo parlamentar, o líder do partido não se quis comprometer com um sentido de voto, dizendo que prefere conhecer o documento antes de tomar uma decisão. Depois de o primeiro-ministro ter decretado o fim da negociação, o líder da oposição quer agora gerir o seu tempo e decidir quando comunica a decisão. Só esta declaração inicial, permite-lhe, pelo menos, ponderar sem pressão uma resposta até quinta-feira (dia em que o documento é entregue) ou sexta-feira, com nada a impedi-lo até de o fazer mais tarde. Na verdade, não há nada, para além da pressão mediática, obriga o PS a revelar o sentido de voto antes de 31 de outubro.
O facto de não dar já uma resposta negativa ao Governo não significa que a situação tenha evoluído no sentido da viabilização. Os sinais foram, aliás, em sentido contrário. A forma como Pedro Nuno Santos se irritou com Sérgio Sousa Pinto na reunião da bancada quando este defendeu a viabilização para impedir a influência do Chega na esfera de poder é sinal disso mesmo. O líder do PS não se incomodou com ninguém que defendeu o voto contra, mas o mesmo não se pode dizer relativamente à ala pró-viabilização.
Pedro Nuno Santos também não tem demonstrado, ao longo dos últimos dias, estar a valorizar a opinião dos que defendem a viabilização. Francisco Assis, que o apoiou de forma empenhada nas últimas diretas, voltou a pressionar, na Rádio Observador, a viabilização com o argumento de deixar o Chega arredado do poder. Assis é eurodeputado, logo não esteve na reunião na AR, mas o argumento do ex-líder parlamentar é o mesmo de Sousa Pinto — que incomodou o secretário-geral do PS. A mesma (pouca) atenção tem sido dada a outros nomes como José Luís Carneiro,Fernando Medina ou Mariana Vieira da Silva que voltaram a pronunciar-se pela viabilização, desta vez na reunião da bancada.
Pedro Nuno com bancada dividida, mas círculo mais próximo do líder quer voto contra
Mais do que isso, vários dos pedronunistas ou deputados alinhados com Pedro Nuno Santos pronunciaram-se a favor do voto contra. Como escrevia o Observador no serão de terça-feira, deputados como Marina Gonçalves, Isabel Moreira, Tiago Barbosa Ribeiro, João Paulo Correia ou João Torres fizeram intervenções no sentido do chumbo do documento. Alinharam ainda com o secretário-geral na ideia que o PS não está amarrado à responsabilidade de travar a influência do Chega no Orçamento.
Chega. O irrevogável voto contra caiu, mas o velho ‘não é não’ isolou o “catavento”
O irrevogável voto contra ao Orçamento do Estado, que o líder do Chega anunciou há um mês, foi-se tornando mais revogável à medida que as negociações entre PS e Governo foram tendo problemas nos últimos dias. André Ventura decidiu então convocar uma reunião de bancada de urgência como parte de uma estratégia de preparar um caminho para inverter a posição — algo que já vinha a admitir em várias declarações públicas nas últimas duas semanas. Logo na convocatória para a reunião desta terça-feira, o líder do Chega dava pistas de que estava a ir ao encontro da viabilização, ao justificar a realização reunião com o “contexto delicado” e a “responsabilidade perante o país”.
Horas antes do início da reunião de bancada, o Correio da Manhã dava conta de que o Chega estaria disponível para viabilizar o Orçamento do Estado caso as negociações entre PS e PSD falhassem. À entrada, o André Ventura mantinha o tabu e, à saída, não seria mais conclusivo: continuou sem dizer o sentido de voto. As posições na reunião acabaram por ser diversas e até erráticas: houve quem defendesse o chumbo, quem defendesse a viabilização sem negociação e até quem defendesse uma negociação para vários anos. Perante tudo o que ouviu, André Ventura — a quem compete sempre a última palavra — decidiu não decidir. O irrevogável desapareceu, no entanto, do léxico, o que significa que o Chega quis passar a ideia de que está mais perto de viabilizar (o que significaria votar a favor) do que colocar-se de fora.
Chega não fecha portas à viabilização do Orçamento, mas prefere que ónus fique do lado PS
Para dançar o tango — como lembrou Sócrates, quando Passos substituiu Ferreira Leite — são precisos dois. E é isso que o Chega não controla. E Montenegro faz questão de continuar a deixar Ventura a um canto da pista. Ao contrário do tom respeitoso, cândido, quase elogioso para Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro voltou a ser duríssimo para Ventura em entrevista a SIC. Além de lembrar as várias posições que o Chega já teve, Montenegro manteve uma posição cristalina de não-é-não: “Está afastada qualquer negociação com o Chega. Transformou-se num catavento. Não se apresentou sequer à altura de negociar com o Governo.”
Ficou, assim, claro que o Governo não vai negociar com o Chega em nenhum momento. Isto não significa que o partido de André Ventura não possa viabilizar — por decisão própria e sem qualquer ganho de causa para apresentar aos eleitores — o Orçamento do Estado para 2025. Será sempre uma decisão que até pode adensar o dramatismo do orçamento. Caso PS e PSD não cheguem a acordo, o Chega pode decidir aprovar (ou rejeitar) o documento no último minuto e não anunciar o seu posicionamento até lá. Mas é um caminho que terá de fazer sozinho e não coordenado com o Governo.