Pode ler o Rui Miguel Tovar quase todos os dias no Observador, mas desta vez não é ele que assina no cabeçalho deste texto, porque assina tudo o resto. O livro que aqui pré-publicamos, Bola ao Ar — As Histórias Mais Insólitas do Futebol Português, reúne os episódios mais marcantes do futebol português dos últimos 90 anos. E em dia de Benfica-Sporting, não podíamos deixar de escolher duas histórias em dérbis no Estádio da Luz. Uma mete um tal de Caniggia e árbitros, pois claro, não fosse um dérbi, a outra um brinco perdido no meio do relvado. Ora recuemos até 1995…
Benfica-Sporting. O dérbi invalidado pela FIFA
Um dérbi é um dérbi e vice-versa. Além de lugar comum do mais banal que há, nem sempre é verdade. Como o Benfica-Sporting em Abril 1995 que se estende incrivelmente por mais dois meses, por teimosia da Federação Portuguesa de Futebol. Um cartão vermelho a Caniggia está na origem do irritante imbróglio, só resolvido a eito pela FIFA. Para felicidade do árbitro Jorge Coroado.
Preud’homme erra e só um artista como Balakov é que o apanha desprevenido para fazer um chapéu de aba larga tão divinal como perfeito. Marco Aurélio e João Vieira Pinto lesionam-se no mesmo lance e saem aos 21 minutos. Problema: o Benfica esgota aí as substituições (que, na altura, são só duas) porque Artur Jorge já tirara Abel Xavier por opção (entra Edilson), numa altura em que já há 2-0 para o Sporting na Luz, com golos búlgaros – além do monumento assinado por Balakov, um pontapé do meio da rua de Iordanov. Mas que raio…?!
Pois é, que noite. O Sporting de Queiroz ganha pela segunda vez ao Benfica no campeonato (1-0 na primeira volta, cortesia de Amunike) mas isso não interessa nada para esta história. Nem o golo de Dimas. Nem o resultado final (2-1). O que fica para a história desse dérbi é a expulsão de Claudio Caniggia, por ordem do árbitro Jorge Coroado, que motiva trocas e baldrocas e até um jogo de repetição (2-0 para o Benfica, bis de Edilson, no Restelo, a 14 de Junho), promovido pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e posteriormente anulado pela FIFA.
“O que as pessoas pensaram foi que eu me tinha enganado. Que eu julgava que ele já tinha amarelo e que portanto foi segundo amarelo. Nada disso. Foi amarelo, o primeiro dele naquele jogo, e depois o vermelho directo, porque não aceito insultos de ninguém. Em português ou em castelhano.”
Pronto, pronto, já passou. Mas Jorge Coroado ainda não sabe se há-de rir ou chorar. “Porque tudo isto é kafkiano”, justifica o árbitro desse jogo, que sofre o inimaginável. Das mãos de desconhecidos, adeptos do Benfica. Mas antes disso, vamos contextualizar: no dia 30 Abril 1995, à passagem do 80.º minuto, o Sporting ganha 2-1 ao Benfica, no esquisito 10×10 (Veloso e Naybet vêem o cartão vermelho aos 73’ e 75’, respectivamente). É aí que houve uma falta duríssima de Sá Pinto sobre Tavares, perto da área do Sporting. Jorge Coroado assinala falta mas gera-se o enésimo sururu, com empurrões vários. Às tantas, Caniggia mete-se com Sá Pinto e é aí que Coroado intervém. “A ideia é dar um amarelo a cada, mas o Caniggia insulta-me. Chama-me ‘filho da p***’ e manda-me para a ‘p*** que te pariu’. Dei-lhe o amarelo. Depois ouvi isso e dei-lhe vermelho directo. O que as pessoas pensaram foi que eu me tinha enganado. Que eu julgava que ele já tinha amarelo e que portanto foi segundo amarelo. Nada disso. Foi amarelo, o primeiro dele naquele jogo, e depois o vermelho directo, porque não aceito insultos de ninguém. Em português ou em castelhano.”
E depois? “Na cabina do árbitro, o sr. Gaspar Ramos [dirigente do Benfica] estava muito nervoso e incontrolável. Pedi-lhe então que se retirasse. É verdade que aquela casa [Estádio da Luz] era dele, e ele até era delegado ao jogo, pelo que podia estar ali mas não naquele estado, mas aquele espaço era meu.” A FPF reagiu e instaurou um processo ao árbitro, aos jogadores, ao jogo. A expulsão de Caniggia não ficou por ali. O avançado argentino disse nada ter dito e as imagens televisivas confirmavam isso mesmo, embora Caniggia aparecesse tapado pela cabeça de Isaías por uns segundos. O processo avançou e quem foi o relator? Sampaio Nora, do Conselho de Justiça da FPF, que esteve, anos depois, na lista de Vale e Azevedo para as presidenciais do Benfica. “Mal entrei na sala para depor, ele disse-me para estar tranquilo porque não gostava de mim.” Entrada a pés juntos? “É como lhe digo: já se passaram tantos anos que ainda nem sei se hei-de rir ou de chorar. Foi um processo kafkiano.”
E os jogadores, colaboraram? “Os do Benfica defenderam a sua dama. Do Sporting, só houve um que me defendeu e disse o que tinha ouvido. Foi o Sá Pinto. Os outros encolheram-se. Como o Marco Aurélio, aquele central.” E Jorge Coroado começa a falar com sotaque brasileiro. “Ele disse-me: ‘Eu até ajudava você Coroado mas não sei o dia de amanhã, né?” Resumindo: “Eles tinham medo de dizer o quer que fosse porque isso hipotecava o futuro deles.” Concluindo: “A FPF anulou esse jogo e promoveu um outro, de repetição, no Restelo, que a FIFA desvalorizou. Nas contas finais desse campeonato 1994-95, o jogo que conta é o meu.” Que isso fique claro.
E Caniggia? “Olhe, só o vi mais uma vez, na minha despedida internacional. Para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões, num jogo entre Rangers e Maribor, em Glasgow [1 Agosto 2001]. Ele viu-me e deu-me a sensação de estar assustado. Falámos um pouco, ele disse-me que nunca quis criar problemas e eu disse-lhe para estar tranquilo. Nessa noite, ele marcou dois golos [3-1]… e não o expulsei.”
Ok, obrigado, Jorge Coroado. O assunto fica arrumado. Afinal, só mais uma pergunta: sofreu muito com esse episódio? “Nada de especial. Fui ameaçado de morte com uma pistola e depois com uma faca, à porta do meu emprego [bancário na Rua José Malhoa], de manhãzinha, antes das 8h30. Foram pequenos-almoços diferentes. Eram adeptos de cabeça perdida que queriam fazer justiça com as próprias mãos. O da pistola só me queria assustar, o da faca tentou atingir-me mas falhou o alvo e estragou-me o casaco. A sorte dele é que conseguiu fugir. O azar é que lhe fiquei com faca.”
O brinco perdido de Vítor Batista
Benfica – Sporting, 1978
Vítor Manuel Ferreira Baptista. Ou melhor, O Maior. Como? Vamos aos factos. A 19 de Julho de 1971, o Benfica apresenta-o à comunicação social no Estádio da Luz, depois de o contratar ao Vitória Setúbal na transferência mais cara de sempre no futebol português: 3 mil contos (além de José Torres, Matine e Praia) mais 750 contos de luvas por três anos e um salário mensal de oito contos. Num curioso exercício de auto-avaliação, Vítor Baptista diz-se o Maior. Assim, sem mais nem menos. Que o digam os árbitros. Ou, pelo menos, Rosa Santos. “Ele sofria uma falta, fosse dura ou leve, levantava-se, limpava a poeira inexistente na camisola e dizia-me ‘sou ou não sou o Maior?’”
Natural de Setúbal, onde começa a trabalhar aos 13 anos numa mercearia, Vítor é pau para toda a obra. “Eu fazia recados às prostitutas e apanhava moedas que os camones atiravam para a água.”
Natural de Setúbal, onde começa a trabalhar aos 13 anos numa mercearia, Vítor é pau para toda a obra. “Eu fazia recados às prostitutas e apanhava moedas que os camones atiravam para a água.” Aos 15 entra num torneio de futebol de sala e é o segundo melhor marcador, atrás de Quinito (mais tarde treinador). Vai para o Vitória, onde faz história como vencedor da Taça de Portugal aos 18 anos de idade. Aos 22, marca 22 golos na 1.ª divisão e os grandes de Lisboa caem-lhe em cima. Compromete-se verbalmente com o Sporting, assina pelo Benfica. E nem quer saber da concorrência de Nené, Eusébio, Artur Jorge e Jordão. Diz-se o Maior.
Na estreia pelo Benfica marcou um golo ao seu Vitória. Seguem-se mais 61 num total de 150 jogos até 1978. O seu traço de exotismo não passa despercebido. É um desadaptado. Um dia, conta Shéu, prende um cão ao poste de uma baliza antes de um treino. Outro dia, conta toda a gente, marca um golo monumental ao Sporting – o seu último pelo Benfica. Braços abertos, como um bailarino, Vítor Baptista domina no peito, sem que Inácio pudesse fazer o que quer que fosse, para depois atirar a bola ao ângulo superior esquerdo. Indefensável para Botelho. Um golo total.
O Benfica marca o primeiro (e único) golo de mais um clássico com o Sporting. A festa, essa, não é total. “Os colegas correram para me abraçar e quando o Cavungi o fez, o brinco soltou-se e foi parar à relva!”, conta, na altura, Vítor Baptista, que ainda passa três minutos e meio de pernas flectidas e com cara de mau, a resmungar consigo mesmo. Ao seu lado, os companheiros ajudam-no, sem êxito. “Sempre gostei mais de ter perdido o brinco e ganho o jogo. Ficava muito mais aborrecido se o Benfica não tivesse ganho, mas foi aborrecido. Veja lá, o brinco custou-me 12 contos e penso que o prémio de jogo é de oito. Perdi dinheiro a trabalhar”, continua aquele que se autointitula o “Maior”.
Inácio, defesa do Sporting, que surge algo desamparado no dito lance, recorda-se perfeitamente. “Nesse jogo, estava a jogar a central do lado esquerdo e o Manaca a defesa-esquerdo. O Bastos Lopes ia meter a bola no extremo (Nené) mas deu-lhe mal e ela foi para dentro. Quando percebi a trajectória, quis cortar a bola de cabeça, mas não deu, e o Laranjeira também não chegou a tempo para evitar aquele golão do Vítor Baptista. Que golo! Depois, uma situação anormal, a do brinco. Todos os jogadores do Benfica de olhos na relva à procura. Nós, do Sporting, não quisemos saber desse ‘problema’ e estávamos à espera de reatar o jogo, pois estávamos a perder 1-0”
Nessa tarde de 12 Fevereiro 1978, Toni cumpre os 90 minutos, como é habitual. “A história do brinco é engraçada. Mas, primeiro que tudo, devo dizer que o que mais me tocou nesse jogo foi a execução técnica, brilhante e espectacular do Vítor (Baptista). Foi dos melhores momentos que vi no futebol. Depois, a excentricidade do Vítor: todos à procura do brinco como se fosse agulha em palheiro. No final, em vez de irmos para os balneários, também andámos à procura.”
É a risada geral. Só mais esta: certa vez, antes de um jogo europeu em Moscovo, Vítor aparece vestido de calças de ganga na Portela enquanto os restantes colegas do Benfica levam fatos e calças de fazenda. Pedem-lhe que troque de roupa e ele recusa. Às tantas, lá entra no avião. Na URSS, nega-se ir a jogo. Queixa-se de dores no peito ao sprintar. “Disse ao Sr. Mortimore [treinador] que só jogaria se, no caso de agravar a lesão, o Benfica me pagasse o ordenado total durante o período de inactividade.” É um regabofe. O Benfica recusa e Vítor nem vai ao banco – e só se livra de uma suspensão ad aeternum por intervenção do plantel, capitaneado pelo seu grande amigo Toni.
Isto é o Benfica, agora uma história na selecção. Chipre-Portugal, apuramento para o Mundial-78. O jogo está marcado para 5 de Dezembro de 1976. Nessa altura, o Maior já está na curva descendente da carreira e raramente vai aos treinos do Benfica. Mesmo assim, há quem acredite nele. Como Juca, o seleccionador. De Lisboa a Limassol, a selecção faz escala em Atenas num avião da TWA. Chegados ao hotel, Juca avisa que terá lugar um treino ligeiro antes do jantar. À hora marcada, todos aparecem menos Vítor Baptista, que só chega no final dos exercícios com ar de turista. E a fumar. Repreendido por Juca, justifica-se com o facto de nada ter ouvido e chama-lhes malucos a todos. “Querem-me ver pelas costas, não é?”, solta Vítor antes de ser recambiado para Lisboa na véspera do jogo, ganho por Portugal (2-1). À chegada ao Aeroporto da Portela irrompe uma discussão infindável com os jornalistas. A culpa, segundo ele, é de Juca e ainda de Carrilho do Rosário, um dirigente da federação. Estes dizem que
Vítor não fala, não treina, não come. Só fuma e faz acusações sem sentido. A pena de Neves de Sousa no “Diário de Lisboa” está entre o cómico e o bizarro. Como o próprio Vítor, aliás. Acaba assim: “A partir de agora só está autorizado a dar pontapés na bola. Falar, conversar, dialogar é para pessoas.”
Estamos conversados? Nem por isso, falta outro golo de levantar o estádio de Vítor Baptista. E este no outro lado do Atlântico, seis anos antes deste do dérbi. É uma célebre deslocação ao Brasil entre uma paragem do campeonato 1971-72. Líder invicto à passagem da 15.ª jornada, com 13 vitórias, dois empates e 45-8 em golos, os benfiquistas metem-se num avião e fazem quatro particulares no Rio de Janeiro. No primeiro, 3-1 à Portuguesa dos Desportos, com um golo sensacional de Vítor Baptista. Já deitado na cama do hotel, o Maior haveria de ter um acidente caricato. Com sede, o avançado português acorda a meio da noite e estende a mão para uma garrafa que tem sobre a mesa-de-cabeceira. Esta salta-lhe das mãos. Ainda tenta apará-la com o peito do pé, mas isso é pior. Desequilibra-se e cai sobre os cacos espalhados da garrafa. Resultado: um golpe a necessitar de pontos e regresso antecipado a Lisboa. No aeroporto do Rio de Janeiro, o maior susto da vida dele, contado na primeira pessoa ao jornal “A Bola”.
“Estava no Aeroporto do Galeão, sentado numa cadeira de rodas, falando com funcionários da Varig, sobre pormenores do meu regresso, quando ouvi tiros de pistola e rajadas de metralhadora. Foi tudo num ápice. Gritos por todos os lados. De um lado, três embuçados, do outro um pelotão policial. Tinha sido assaltada uma ourivesaria.” O relato que se segue é arrepiante, e serve para demonstrar a violência do acto que assustou o bad boy do futebol português. “Os polícias eram mais do que os gatunos, mas estes eram tesos e estavam muito bem armados. Ainda vi uma senhora ser atingida a tiro, sem ter nada a ver com o assunto. Era uma barafunda de todo o tamanho. Vi um assaltante ser preso por um polícia negro, que o apanhou pelas costas, mas o gatuno desenvencilhou-se e alvejou-o com uma rajada de metralhadora. Dramático. Como nos filmes. Mas era mesmo ao vivo. Enquanto isso se passava e as balas faziam ricochete nas paredes eu ia fugindo. Larguei a cadeira de rodas e, de rabo no chão e perna esquerda no ar, avancei com auxílio do traseiro, se fosse ao pé-coxinho talvez levasse um tiro na cabeça. Era a única hipótese de me safar. Andei assim uns dez metros, enfiei-me num buraco. E os gatunos, depois de desfazerem a perna de uma senhora, de terem rebentado com a barriga de um polícia, de terem roubado uma série de joias, conseguiram fugir, todos eles, os três, num Volkswagen vermelho, armados até aos dentes. Foi por isso que demorei mais um dia a chegar a Lisboa.”
Vítor Baptista são e salvo. O mesmo já não se pode dizer dos companheiros. Derrotados por Coritiba e Flamengo, ganhariam 2-0 ao Vasco da Gama na despedida, no tal jogo em que os brasileiros descobrem o substituto de Eusébio – um tal de Jordão. Enquanto deslumbravam, os jogadores foram roubados no balneário do Maracanã. A Artur, Messias, Nené, Simões e Zeca roubam-lhes todo o dinheiro. A Toni e Vítor Martins, ainda lhes levaram dois relógios de luxo. E Vítor Baptista são e salvo, na calma Lisboa. Só voltaria a jogar a 18 de Março. A essa hora, o Volkswagen vermelho já estava sabe-se lá onde…