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O dilema (de) Taylor Swift

Há demasiada Taylor Swift neste mundo, demasiado debate sobre Taylor Swift, e não há suficientes refrões gloriosos para manter esta conversa eternamente, não no novo "The Tortured Poets Department".

Há certos momentos em que O Indivíduo da Espécie Humana Pago Para Fazer Comentário Sobre a Cultura Pop sabe exatamente o que vai ler sobre O Assunto Do Momento – seja qual for a app em que decida passar o seu tempo, será inevitável ao Indivíduo da Espécie Humana Pago Para Fazer Comentário Sobre a Cultura Pop deparar-se com um Indivíduo Que Aprecia Ter Opiniões Pomposas na Internet, que devidamente fará a sua presença ser notada ao afirmar estarmos perante um “game changer”.

Não é exatamente claro qual é o “game” (se a obra de Taylor Swift, se a cultura popular ou até mesmo toda a vida no planeta tal como a conhecemos) e o que mudou (a forma de fazer canções pop?; o preço da gasolina?) mas é inevitável que o Indivíduo Que Aprecia Ter Opiniões Pomposas na Internet proceda então a uma Exegese Aprofundada dos Significados Obscuros Contidos na Obra, uma atividade que consiste em – resumidamente – adivinhar a quem Taylor Swift se dirige em cada letra de canção e com quem a cantora terá andado a dormir desde a última vez que libertou as profecias do seu críptico oráculo (isto é, desde a última vez que editou um álbum de originais).

Taylor Swift não é o único alvo desta disciplina dos Estudos Contemporâneos de Internet a que, por facilidade, chamaremos Sobre-Leitura de Cantigas. Toda a estrela pop que atinge uma certa dimensão vê a sua vida espiolhada tanto pelo clube de fãs como pelos detratores; o aspeto mais fascinante deste ato de bruxaria (que consiste em alcançar o Verdadeiro Significado de Uma Canção através de deduções abusivas) é sempre o de reduzir a canção a não mais que uma confissão – não parece ocorrer nem aos fãs nem aos oponentes de Taylor Swift que as palavras que ela canta não sejam a sua exata biografia mas sim histórias que a artistas resolveu musicar após observar o mundo — oh, sacrilégio dos céticos e infiéis.

[a versão alargada do álbum “The Tortured Poets Department”, na íntegra no Spotify:]

Mas não há como negar que Swift atingiu uma espécie de estatuto tão colossal que a simples força dos números (de discos vendidos, de streams, de concertos esgotados e da febre que envolves os bilhetes dos mesmos) a tornam omnipresente ao ponto de cada passo da artista ser, inevitavelmente, perscrutado até à náusea por uma base de fãs que se conta nos milhões e milhões e, adquira, quase que por inércia, o pathos das grandes obras que marcaram a humanidade. Como é que Leonardo Da Vinci criou o sorriso de Mona Lisa? Pouco importa, Taylor estava a sorrir nas bancadas durante o último jogo de Travis Kelce? (Estava) No meio do ruído provocado pelos especialistas em Taylor Swift (sejam adoradores ou torcedores de nariz), quase não se consegue ouvir as canções em sossego – e há muitas para ouvir: duas horas após lançar The Tortured Poets Department, na sexta-feira, 19 de abril, Swift pôs cá fora uma versão alargada do disco, com (exatamente) 31 canções e duas horas de música.

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Talvez a própria Taylor alimente o volume decibélico em seu redor – em Who’s Afraid of Little Old Me?, Swift canta “I was tame/ I was gentle/ till the circus life made me mean”; mais à frente ela canta “Tell me everything is not about me / but what if it is?”, o que tem sido visto como um comentário ao seu próprio estatuto enquanto estrela mega-planetária. Presumo que, para alguém que não consegue ir à mercearia em sossego, seja complicado escrever sobre (digamos) vegetais (e se este assunto vos parecer pouco digno de ser tema de canção pop, aconselho a escuta de Vegetables, dos Beach Boys). Em But Daddy I Love Him, que soa a uma canção dos The National dos últimos anos (a guitarrinha às voltas, uma espécie de crescendo que não explode ou explode da forma controlada que é necessária quando se tem uma audiência de milhões, uma atmosfera geral de melancolia), Swift parece dirigir-se diretamente à sua massa de fãs e não nos termos mais simpáticos:

“I’d rather burn my whole life down
than listen to one more second of all this bitching and moaning”

"The Tortured Poets Department" apresenta uma sucessão de "tus" amorosos que, por esta ou aquela razão, estão ausentes – por vezes o tom é acusatório, por norma é sofrido. Nas canções de Taylor Swift o sofrimento (não raro associado a um falhanço amoroso) é uma condição quase omnipresente; talvez por isso tanta gente se identifique com elas.

É difícil não ter empatia por este sentimento, em particular quando se passou os últimos dias a ler reações ao disco na internet que vão do habitual “É a nossa deusa” a “Mas como é que vocês levam a sério uma artista que se farta de poluir o planeta [por causa do seu uso de aviões privados, se bem entendi]”. Também li demasiadas vezes os nomes Joe Alwyn, Matty Healy e Travis Kelce e devo dizer que me surpreende a quantidade de seres humanos que parece capaz de fazer uma visita guiada à biologia genital de Taylor Swift com a precisão de um entomologista a retirar uma bala do cérebro de um cadáver (uma opinião baseada no meu nulo conhecimento dos requisitos técnicos necessários para a prática da entomologia, mormente para o ato de retirar uma bala do cérebro de um cadáver).

Ler o futuro de um ser humano na palma de uma mão ou nas borras de um chá não há-de ser muito diferente deste exercício de biografia automática mediada por letra de canção – nenhum de nós faz ideia o que Taylor Swift sente e, francamente, isso é irrelevante (exceto para ela e os que lhe são próximos e não, os fãs não são próximos, são só fãs): em última instância, isto é um conjunto de canções e é pelas notinhas na pauta que deve ser avaliado, independentemente das palavras concretas que são cantadas. Isto não significa que as letras das canções pop não sejam importantes – mas convém lembrar do que estamos a falar: em So High School (que está na versão alargada do disco e é uma boa canção pop) Swift canta:

“Truth, dare, spin bottles
You know how to ball
I know Aristotle
Brand new, full throttle
Touch me while your bros play Grand Theft Auto”

Isto não é Tolstoi.

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O problema de "Tortured Poets..." não é haver pouca poesia ou escassa tortura – é o baixo rácio de refrões monumentais por caso amoroso falhado

Getty Images

Tematicamente, The Tortured Poets Department apresenta uma sucessão de “tus” amorosos que, por esta ou aquela razão, estão ausentes – por vezes o tom é acusatório, por norma é sofrido. Nas canções de Taylor Swift (e este disco não é exceção) o sofrimento (não raro associado a um falhanço amoroso) é uma condição quase omnipresente; talvez por isso tanta gente se identifique com elas (ou isso ou o mundo está cheio de raparigas que leram Aristóteles e querem ser tocadas pelo namorado adolescente enquanto os amigos deste jogam Grand Theft Auto; não faço ideia, nunca fui uma rapariga adolescente e não estou a contar vir a ser tão cedo).

O álbum abre com Fortnight, uma faixa electro-pop mansa, um dos dois tipos de canção que ocupam Tortured Poets…: ou é electro-pop morninha ou é folk melancólica que não faz chama, o que reflete o facto de o álbum ter sido feito em colaboração com duas pessoas de sensibilidades diferentes: Jack Antonoff (que trata da electro-pop) e Aaron Dressner (o guitarrista dos National, com quem Swift tem colaborado nos últimos discos). Fortnight é uma boa canção bem comportada (bem escrita, bem produzida, bem interpretada, como um “filme de qualidade” europeu candidato aos Óscares); Florida!!!, que conta com a participação de Florence + The Machine não merece um dos três pontos de exclamação que apresenta – não obrigatoriamente por ser uma má canção (não há uma má canção nas 31 da versão alargada de Tortured Poets…), mas porque nunca explode, nunca parece chegar a nenhum lado em particular – a promessa de refrão que faz ao início nunca se concretiza, como um dia de verão que permanece nublado.

Talvez a fasquia esteja mais elevada com Taylor Siwft – o que esperamos de uma super-estrela não é obrigatoriamente um grande disco, mas pelo menos um par de grandes canções, de refrões que nos perseguem como um stalker psicopata com demasiado tempo livre. O problema de Tortured Poets… não é haver pouca poesia ou escassa tortura – é o baixo rácio de refrões monumentais por caso amoroso falhado. São 31 canções, seria de esperar que chegássemos ao fim e nos tivéssemos deparado com pelo menos umas cinco melodias memoráveis.

[o vídeo de “Fortnight”:]

Mas Tortured Poets… não chega a largar a velocidade de passeio de bote no rio em dia sem ondas, e nunca despeja artilharia pesada. O trajeto das super-estrelas costuma ser o de ascensão seguido de manutenção de um patamar de celebridade; tem-se êxito nos vintes e um dia os adolescentes que encheram a conta bancária das estrelas chegam aos 30 ou 35 (que é quando a maior parte das pessoas deixa de ligar a música) e outra geração já surgiu, com novas super-estrelas que conduzem a antiga super-estrela à porta das traseiras.

Taylor Swift irá continuar a esgotar digressões e a abrir telejornais durante uns anos – mas é claro que já atingimos o pico do fenómeno: há demasiada Taylor Swift neste mundo, demasiado debate sobre Taylor Swift neste mundo – e não há suficientes refrões gloriosos para manter esta conversa eternamente, não neste novo álbum. A verdadeira tortura é ter de ouvir 31 canções mornas vezes seguidas e poeta é O Indivíduo da Espécie Humana Pago Para Fazer Comentário Sobre a Cultura Pop que, no fim da mencionada maratona, consegue proferir duas frases inspiradas a respeito de um disco que simplesmente se recusa a arriscar, a suar, a esforçar-se para sair da sua modorra.

 
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