Foi um longo balanço do ano. O Presidente russo, Vladimir Putin, voltou a responder a várias perguntas de jornalistas num formato que combina uma conferência de imprensa com questões do público. Demografia, o estado da economia, o enterro de Lenine, o indulto ao filho de Biden, as migrações — o chefe de Estado teve tempo para falar (concretamente quatro horas e meia) sobre tudo. Mas o tema que dominou o evento mediático foi, como aconteceu nas últimas edições, a guerra na Ucrânia.
Sobre o conflito no país vizinho, Vladimir Putin voltou a justificar a necessidade de invadir a Ucrânia. Mais: o Presidente russo indicou que deveria ter decidido começar a guerra “mais cedo”, antes mesmo de 24 de fevereiro de 2022. Como vem sendo habitual, culpou o Ocidente pela atitude que tomou, assim como o “regime neonazi de Kiev”. Ao longo da conferência de imprensa, outro dos alvos de Putin foi o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, a quem não poupou críticas e que acusou de ser “ilegítimo”.
Militarmente, Vladimir Putin desmereceu as façanhas das Forças Armadas ucranianas, vendo-as como fracas e a atravessar vários problemas. O Presidente da Rússia chegou a dizer que os jovens ucranianos são “apanhados” como “cães vadios” e “atirados para o campo de batalha” sem preparação. Em contrapartida, deixou vários elogios às tropas que comanda, alegando que estão a avançar no terreno e a recuperar territórios.
Apesar do que diz ser os avanços no campo de batalha, o Presidente russo não se atreveu a fazer uma previsão sobre quando acabará a guerra na Ucrânia. Reconheceu que as “operações de combate são complexas”, por isso “é difícil e inútil pensar no futuro”. Em relação à possibilidade do fim do conflito ocorrer na mesa das negociações, Vladimir Putin frisou que Moscovo nunca recusou negociar e nem sequer tem pré-condições. “A arte da política é fazer compromissos”, deixou no ar.
Forças Armadas. Putin puxa dos galões, mas, no terreno, admite dificuldades e um “teste sério”
Um exército a “avançar” e a situação a “mudar dramaticamente” a favor da Rússia. Putin vê com bons olhos o atual momento da ofensiva: registam-se avanços a “um ritmo diário” e as capacidades das Forças Armadas russas estão a ser fortalecidas. Nessa senda, Vladimir Putin mencionou o que considera a jóia da coroa do seu armamento: os mísseis Oreshnik. “É uma arma nova”, vincou.
Elencando as suas vantagens, Vladimir Putin avisou que os mísseis Oreshnik podem atingir alvos a milhares de quilómetro de distância. E que são bastante difíceis de abater, não demonstrando preocupação quanto ao facto de os Estados Unidos da América instalarem o sistema de defesa aéreo THAAD — um dos mais sofisticados no mundo — na Ucrânia. Para provar o que diz, deixou mesmo um desafio ao Ocidente, a que chamou o “duelo tecnológico do século XXI”.
“Deixem o Ocidente e a Ucrânia determinar em que zona de Kiev querem concentrar todos os seus sistemas de defesa aérea. Atacaremos depois com Oreshnik e veremos o que acontece”, sugeriu. Quem se juntou a este duelo foi o líder da Chechénia, Razman Kadyrov que, no Telegram, perguntou se “podia escolher” para que local da capital ucraniana o míssil era lançado.
Devido às capacidades das Forças Armadas, o Presidente russo assegurou que o país que lidera tem “força e meios para restaurar todos os seus territórios históricos”, nomeadamente o Donbass (as províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk) e a Novorossiya, no sul da Ucrânia. Puxando ainda dos galões, assegurou que a “prontidão de combate do exército russo está a um nível máximo”, mesmo com “quase todos os países da NATO em guerra com a Rússia”.
Porém, a retórica de Vladimir Putin perde força quando o Presidente russo admite que não tem uma previsão para o fim da guerra. As “operações de combate são complexas”, sublinhou, destacando que “é difícil e inútil pensar no futuro”. Em relação a Kursk, a região russa em que a Ucrânia ainda leva a cabo uma ofensiva, a resposta foi no mesmo sentido. “O inimigo será definitivamente expulso”, assegurou inicialmente, para logo ressalvar que não avançará com qualquer data, de modo a “não pressionar os militares”.
Ao mesmo tempo, ao realçar que a “operação militar especial” devia ter sido lançada mesmo antes de fevereiro de 2022, Vladimir Putin admitiu que o país enfrenta um “teste sério” às suas capacidades. Adicionalmente, assumiu que as sanções aplicadas pelo Ocidente “criam problemas”, ainda que nunca serão capazes de derrubar o regime. “Eles causar-nos-ão alguns danos e prejuízos, mas é claro que sairemos desta situação.”
Diplomacia. Putin admite que quer falar com Trump e até acena com um “compromisso”
Se no campo de batalha a situação não aparenta ser fácil, diplomaticamente o Presidente russo diz estar disposto a encetar negociações. Não há “pré-condições”, assegurou, mas há dois pontos de partida. O primeiro é o rascunho dos acordos de Istambul, discutidos pelas delegações russas e ucranianas no início da guerra, e outra é a “situação no terreno”.
O que está fora de questão para Vladimir Putin é um cessar-fogo temporário, dado que isso “fortaleceria” as posições ucranianas. “A Rússia não precisa de uma trégua com a Ucrânia, mas de uma paz sustentável através de garantias de segurança”, afirmou, acrescentando que a Rússia concordou pelo menos três vezes em encetar negociações de paz com a Ucrânia, sendo que, segundo diz, o “regime de Kiev recusou”.
Em relação ao cessar-fogo temporário durante a época festiva proposto pelo primeiro-ministro da Hungria, Vladimir Putin assumiu que Viktor Orbán realmente lhe propôs essa trégua. Porém, deixou bem claro que nunca a aceitou, apenas “concordou em pensar”, sendo que, como o “regime de Kiev” a rejeitou, decidiu ignorar o assunto.
Como potenciais intermediários, elogiou as propostas da África do Sul, do Brasil e da China para terminar o conflito. Vladimir Putin também se mostrou disponível para falar com o Presidente eleito norte-americano, Donald Trump, “a qualquer momento”, assegurando que já não fala com o magnata “há quatro anos”.
Numa rara confissão, Vladimir Putin deixou no ar que podia aceitar um “compromisso”. “A política é arte do compromisso”, disse, enfatizando que a Rússia esteve “sempre pronta para negociações”. Ainda assim, o Presidente russo lamentou que haja alguns líderes ocidentais que não desejem a paz — e colocou na mira o ex-primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, que descreveu, na conferência de imprensa, como um “homem com cabelo estranho”.
Zelensky como Presidente “ilegítimo” e as tropas fracas: Putin deixa várias à Ucrânia e ao Ocidente
Na conferência de imprensa, Vladimir Putin deixou várias críticas ao Ocidente e ao “regime de Kiev”, que voltou novamente a designar com “neonazi”. O Presidente russo nem sequer reconhece legitimidade ao seu homólogo ucraniano, fechando a porta a falar diretamente com ele. O argumento é que Volodymyr Zelensky já não tem legitimidade para exercer o cargo, dado que não se submeteu a eleições em maio de 2024, devido à imposição da lei marcial.
“De acordo com a constituição ucraniana, apenas o Parlamento é legítimo”, atirou Vladimir Putin, que insistiu que as funções que Volodymyr Zelenksy são “ilegítimas”. “Enquanto a Ucrânia mantiver um Presidente ilegítimo, todas as outras autoridades tornar-se-ão cúmplices dos seus crimes”, realçou.
No entender do líder russo, só com o apoio dos países ocidentais é que o “regime de Kiev pode existir”. “Não apenas lutar, apenas existir”, sublinhou, desmerecendo as capacidades militares das Forças Armadas ucranianas. “Não há tempo para se preparem. Os nossos homens notaram isso. A preparação não é a mesma. Não é uma escola soviética. Mesmo aqueles que são treinados numa tradição ocidental, não são tão bons.”
Por tudo isto, para Vladimir Putin, as tropas ucranianas estão “esgotadas”. Não só estão esgotadas, como também lhes falta “equipamento militar, munições e homens” — e, segundo o ponto de vista do líder russo, nunca conseguirão fazer frente às russas.
Questionado sobre se algum dia pensaria conceder asilo político a Volodymyr Zelensky, o Chefe de Estado russo assegurou que “não recusaria” essa possibilidade: “A Rússia não recusará ninguém”. Contudo, Vladimir Putin acredita que essa hipótese nunca se colocará, uma vez que, se o seu homólogo ucraniano decidir ir para o exterior, é muito provável que “seja acolhido por aquelas pessoas cujos interesses serve”.
O Ocidente foi outro dos alvos de Vladimir Putin que evidenciou mais uma vez a sua retórica hostil em relação aos países ocidentais, que apenas querem manter a Ucrânia como uma forma de roubar “soberania” à Rússia. As sanções aplicadas contra Moscovo são, para o Presidente, resultantes do “medo da concorrência da Rússia”. “Eles usam meios de luta política para concorrência desleal”, declarou.
Fim do regime de Bashar al-Assad não foi uma “derrota para a Rússia”, garante Putin (que deixa críticas a Israel)
A Síria foi outro tema que entrou nesta conferência de imprensa. O facto de Vladimir Putin ser aliado do regime de Bashar al-Assad levou a que um jornalista questionasse se se sentia “enfraquecido” por não ter sido capaz de proteger o aliado. O Presidente russo citou o escritor Mark Twain para negar essa ideia: “Essas notícias são manifestamente exageradas”.
Em concreto, Vladimir Putin assegurou que o fim do regime de Bashar al-Assad não é uma “derrota” para o país que lidera. O Presidente russo foi ainda longe e assegurou que Moscovo “atingiu os objetivos” a que se propôs: “A Rússia chegou à Síria para que não se formasse um enclave terrorista”. E disse que pondera ainda manter as bases militares russas na Síria dizendo que a Rússia retirou quatro mil combatentes iranianos da Síria.
Sobre Bashar al-Assad, Vladimir Putin não se alongou em comentários. Sinalizou que não se encontrou com o antigo Presidente sírio, desde que este chegou a Moscovo, a 8 de dezembro, após a queda do regime. Numa relação bastante ambígua com Israel, o Chefe de Estado da Rússia considerou que Telavive ” é o “maior beneficiário” do que se passa na Síria.
Num recado ao primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, Putin disse que condena que Israel ocupe qualquer território sírio, algo que, denunciou, já está em marcha. Sobre a Faixa de Gaza, as palavras de Vladimir Putin para Telavive também não foram propriamente amistosas. As ações israelitas no território são “dignas de condenação” e Moscovo continua a apoiar o estabelecimento de um Estado palestiniano.
Além disso, Vladimir Putin adiantou que falou recentemente sobre a situação no Médio Oriente com Recep Tayyip Erdoğan, estando em “constante contacto” com o Presidente turco. Nas boas relações com mantém com líderes estrangeiros, o líder russo não deixou de mencionar o seu homólogo chinês, Xi Jinping, que considera um “amigo”. “Muito aconteceu na história das relações da Rússia e da China, mas, nos últimos anos, o nível e a qualidade das relações estão como nunca”, enfatizou.
O enterro de Lenine, a demografia e a economia: os outros assuntos que marcaram a conferência de imprensa
Vladimir Putin comentou uma variedade de outros assuntos ao longo das mais de quatro horas de conferência de imprensa. O primeiro tópico que abordou foi o estado da economia, que muitos analistas assinalam que está a viver uma fase negativa. O Presidente russo negou esse cenário e garantiu que a situação económica russa é “estável” — “apesar de tudo”, ou seja, dos gastos na guerra.
Porém, reconheceu que existe um problema: o aumento da inflação. Mesmo que sublinhe que — em termos reais — os salários tenham aumentado 9%, Putin admitiu que a subida do custo de vida é “algo negativo” (deu até o exemplo da manteiga como um dos produtos alimentares cujo preço mais subiu), responsabilizando o “resultado das colheitas, os preços mundiais e a as sanções” aplicadas pelo Ocidente à Rússia.
Numa missão que vem assumindo nos últimos tempos, Vladimir Putin destacou igualmente que a demografia é um “assunto importante” e que o país “precisa de meninos e meninas”. Realçou que o governo está a tentar aumentar a taxa de natalidade, criando benefícios para o efeito.
A “soberania” e a “independência” da Rússia. Estes são os principais objetivos que o Presidente russo quer concretizar. Num retrospetiva ao seu legado — cumprindo 25 anos no cargo em 2025 —, Vladimir Putin disse acreditar que “salvou a Rússia”. “Acredito que nos afastamos do abismo”, afirmou, recordando que, depois da renúncia do ex-Presidente Boris Yeltsin, o país tinha perdido a soberania. “Sem soberania, a Rússia não podia existir como Estado independente.”
Sobre o seu trabalho enquanto Presidente, assinalou que “esteve sempre associado a servir a pátria”. Agradeceu também que os cidadãos da Rússia “tenham confiado nele” — e não apenas uma vez. “Fiz tudo para garantir que a Rússia fosse uma potência independente e soberana, capaz de tomar decisões”, declarou Vladimir Putin, que vê a Rússia “como a sua família”.
Ainda houve tempo para comentar o que acontecerá ao corpo de Lenine — o principal rosto da revolução russa de outubro de 1917 e cujo corpo ainda está num mausoléu embalsamado na Praça Vermelha. O tema terá de ser “discutido”, reconheceu Vladimir Putin, mas “ainda não chegou” este tempo. “Não devemos fazer nada que possa dividir a sociedade”, sustentou.
Ao fim de quatro horas e meia, o balanço que Vladimir Putin faz de 2024 é claramente positivo. A imagem que foi transmitida neste programa de televisão é a de que a Rússia está a conseguir garantir a sua “independência”, a “avançar” na Ucrânia e com boas perspetivas para negociações com Donald Trump. Mas a realidade está longe de ser tão cor de rosa como o chefe de Estado pintou na conferência de imprensa desta quinta-feira.