Taxa de desemprego em mínimos históricos, uma moeda (o rublo) que já recuperou das fortes perdas e, até, uma taxa de inflação que baixou para níveis perto de zero – contrastando com a escalada dos preços no Ocidente. Estes são alguns indicadores que estão a ser utilizados pelo Kremlin para tentar passar uma imagem de resiliência na economia russa, apesar de todas as sanções que lhe foram impostas e mesmo perdendo o contributo das largas centenas de empresas que estão a sair do país. A realidade, porém, é bem mais negra do que Putin a pinta: por detrás dos dados económicos escolhidos a dedo (e de validade questionável, em alguns casos) está uma queda do PIB que pode superar os 15% e um retrocesso económico de 15 anos – que só as vendas de petróleo e gás, incluindo à Europa, permitem continuar a mascarar.
A informação não foi passada publicamente, em conferência de imprensa, mas acabou por chegar às agências noticiosas russas. Num conselho de ministros em Moscovo, na última terça-feira, o Presidente russo terá enumerado um conjunto de “sucessos na frente económica” incluindo uma taxa de desemprego que, tanto em abril como em maio, se manteve num valor historicamente baixo – 4%. “O número de desempregados não só não aumentou como, até, baixou ligeiramente“, terá dito Vladimir Putin, com base em dados publicados pelo gabinete oficial de estatísticas, o Rosstat.
Como é possível? Alguma alegada manipulação das estatísticas, o recurso ao emprego estatal e a pressão sobre as empresas (para não despedirem) podem ajudar a explicar boa parte das razões por que a taxa de desemprego (oficial) não está a subir. Hassan Malik, analista da consultora de investimentos Loomis Sayles, em Boston, atribui “a persistência de níveis de desemprego relativamente baixos a algum açambarcamento de postos de trabalho”, ou seja, empresas públicas ou empresas “influenciáveis” pelo Estado que estão sob pressão para manter os trabalhadores nas suas fileiras ou, até, a contratar novos – mesmo que as necessidades de pessoal não sejam tantas quanto dantes.
À Business Insider, Hassan Malik explica que há muitos anos que são bem conhecidas as táticas de “pressão implícita” que o regime de Putin emprega para persuadir as companhias a não mandarem para casa grandes números de trabalhadores. Este analista, com experiência em investimentos na Rússia, sublinha que “a importância que Putin atribui ao nível da taxa de desemprego leva-me a crer que existe uma estratégia de manter uma pressão informal, sobre os empregadores, para que não despeçam”.
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Em algumas situações, essa preocupação com a taxa de desemprego manifesta-se de forma mais transparente. A recente venda das operações da McDonald’s na Rússia, que resultou no relançamento da cadeia, que pelo seu simbolismo reuniu grande atenção mediática, envolveu um compromisso, assumido pelo empresário que comprou as operações, de que irá manter todos os postos de trabalho intactos por um período mínimo de dois anos, após esta aquisição. Esta foi uma preocupação que também houve em vários outros processos de desinvestimento empresarial, entre os mais de 1.000 casos de empresas que saíram do mercado russo – incluindo algumas empresas que apenas saíram por questões morais, sem que houvesse qualquer tipo de sanção a obrigá-las a deixar o país.
“Obviamente que o governo russo tem um incentivo para tentar esconder o impacto económico das sanções. Portanto qualquer forma que tenham de retratar o mercado de trabalho de forma criativa, tentando mascarar o verdadeiro impacto, estou convencido que eles irão recorrer a esses expedientes – faz todo o sentido que o tentem fazer”, corrobora outro especialista, Andrew Lohsen, do think tank Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington DC.
Outro dos “sucessos” citados por Vladimir Putin terá sido uma aparente estabilização da inflação, deixando para trás a forte subida dos preços que marcou as primeiras semanas após o início da guerra. “Temos uma inflação de zero, agora“, afirmou o Presidente russo, na reunião do conselho de ministros cuja ata foi noticiada pela imprensa russa.
Logo após a invasão da Ucrânia, à medida que o rublo derrapava, o índice de preços no consumidor em maio atingiu os 17,1% em termos homólogos e 7,6% em comparação com o mês anterior. Mas Putin garantiu que se conseguiu “agarrar” a inflação: “a partir da segunda metade de maio, o crescimento dos preços parou completamente – agora temos uma inflação de zero“, afirmou.
Tendo em conta que a inflação se transformou na preocupação número 1 em quase todo o Ocidente, a aparente inexistência de uma rápida subida dos preços está a ser usado pela propaganda do Kremlin para levar o público a acreditar que as sanções aplicadas pelos EUA e pela Europa são um feitiço que está a virar-se contra o feiticeiro – e na Rússia, em contraste, a subida dos preços está controlada.
Mas há outra forma de olhar para os dados, mesmo assumindo que refletem fielmente a realidade: “O que os comentários de Putin querem dizer, na verdade, é que a economia está a ficar em maus lençóis“, disse ao The Moscow Times o analista Nick Trickett, ligado ao Foreign Policy Research Institute, de Filadélfia. Mais de que inflação zero, o que os dados mostram é que houve semanas de descida nos preços – o que pode ser o primeiro sinal de que a economia russa pode estar a enfrentar o problema inverso: a deflação, o que por definição traduz um quadro de pessimismo, quebra na atividade económica e pressão sobre os postos de trabalho.
“Ele está apenas a tentar vender aos cidadãos a ideia de que os tecnocratas do seu governo estão a fazer coisas para impedir o aumento dos custos de produtos básicos, incluindo os bens alimentares”, acrescenta Nick Trickett. Este é um ponto de vista partilhado por Olga Belenkaya, analista de macroeconomia citada pelo mesmo The Moscow Times. “Globalmente falando, uma deflação sustentada ou uma inflação mais baixa do que os 4% idealizados pelo banco central podem ser um sinal de procura económica em retração, o que pode acelerar o declínio económico“, diz a especialista, que lidera o departamento de pesquisa económica da consultora russa FG (Finam).
Intimamente ligada à evolução dos preços está a cotação do rublo, a divisa russa cuja recuperação também foi citada por Vladimir Putin como um sinal de “sucesso” na frente económica. Na verdade, o rublo já fez muito mais do que apenas recuperar das fortes perdas que se seguiram à invasão da Ucrânia – mas também há algo por detrás disto.
É sobretudo graças a controlos de capitais de vária ordem que se está a sustentar o valor do rublo nos mercados cambiais. Um exemplo é a obrigação que todas as empresas (exportadoras) tiveram de converter pelo menos 80% das suas reservas de moeda estrangeira em rublos. Por outro lado, os residentes na Rússia (russos ou não) foram proibidos de contrair créditos em moeda estrangeira e, também, passaram a ter grandes limitações nas transferências de dinheiro para o exterior.
O outro “ás de trunfo” de Putin para sustentar o valor da moeda foi a decisão de exigir pagamento em rublos aos estrangeiros que compram o gás e o petróleo da Rússia. Se essa decisão levou a uma disputa com os países aliados – que querem continuar a pagar em dólares ou euros, como sempre fizeram – a realidade é que outros países menos envolvidos no conflito têm aproveitado os descontos e, de bom grado, aceitado a exigência de Putin. É o caso da China e da Índia, entre outros.
Perante o alcance limitado das sanções até agora impostas na exportação de energia russa, a Rússia deverá receber o equivalente a 285 mil milhões de dólares em receitas de petróleo e gás natural – um valor que sobe mais de 20% em relação a 2021, segundo um cálculo recente feito pela Bloomberg e que reflete a subida dos preços destas matérias-primas, além de uma procura muito pouco afetada pelas sanções.
Essas receitas adicionais têm permitido ao banco central russo acumular moeda que permite fazer intervenções diretas nos mercados cambiais, usando outras divisas para comprar rublos e, assim, sustentando o valor da moeda da Rússia. O rublo foi suportado nas últimas semanas, até, por um “coelho tirado da cartola” que foi uma indexação (temporária) do rublo ao ouro, maior símbolo de estabilidade e credibilidade nos mercados financeiros.
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Todas estas intervenções – que só são possíveis em parte porque a Europa continua a contribuir com as suas compras de energia – estão a permitir que Vladimir Putin mantenha uma aparência de normalidade económica. Mas o impacto será cada vez mais difícil de disfarçar, comentou Sergei Guriev, economista-chefe do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, num artigo de análise publicado pela Reuters onde este economista no exílio diz que os russos podem, no geral, estar a sentir pouca “dor” económica agora mas “as perspetivas a longo prazo são cada vez mais negras”.
Alguns indicadores mostram, porém, que as fendas já começaram a abrir-se na economia russa. De acordo com o jornal Kommersant, a receita de IVA na Rússia afundou 54% em abril, na comparação homóloga. Por outro lado, as vendas de carros afundaram 83% em maio, na comparação com o mês anterior – em maio de 2021 venderam-se 150 mil carros na Rússia, agora o ritmo baixou para uma fração disso. Outros indicadores apontam para um cenário menos negativo – como o consumo energético, que apenas está a baixar ligeiramente em relação ao pré-guerra e ao período homólogo.
O ministro da Economia, Maxim Reshetnikov, já veio admitir que a economia russa está a braços com uma “crise de procura“. A última estimativa da OCDE é que o Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia pode cair 10% em 2022 e mais 4% em 2023 – valores altíssimos para qualquer padrão histórico mas não é difícil encontrar projeções ainda mais negativas. O governo britânico tem uma estimativa de quebra no PIB de 15%, o mesmo que prevê o Instituto Internacional de Finanças (IIF), uma organização do setor financeiro que, há poucas semanas, teve o seu economista-chefe a apontar para uma contração bem pior numa economia que estava “em implosão”: 30%.
Russia's economy is imploding. We forecast a GDP collapse of -30% by end-2022. Russia has stopped publishing data, but our tracking of exports from 20 countries to Russia give a clue. Those exports are down over -50% in April 2022 from a year ago (blue). With @JonathanPingle pic.twitter.com/4intbaNc0O
— Robin Brooks (@robin_j_brooks) May 22, 2022
Quando a guerra começou, a Rússia deixou de publicar vários indicadores estatísticos, incluindo no campo do comércio externo, pelo que não é possível avaliar, por aí, se a estimativa do economista-chefe do IIF será exagerada. Porém, oficialmente, o IIF prevê uma recessão de 15% para a Rússia, mais 3% no próximo ano, fruto das sanções às importações de produtos tecnológicos essenciais e à “fuga de cérebros” que a guerra já estará a provocar no país.
São 15 anos de progresso económico que vão por água abaixo, diz o organismo, num relatório publicado a 8 de junho. Com a invasão da Ucrânia, abriu-se caminho a uma “desintegração de 30 anos de investimento”, afirmou Elina Ribakova, economista-chefe adjunta do IIF, na apresentação de um relatório que tentou quantificar o impacto da guerra na economia russa: “Como é que se calcula um número desses quando se está a estoirar com 15 anos de criação de cadeias de valor?”, perguntou a especialista, citada pela Reuters.
Para Vladimir Putin e para a economia russa os danos passarão a ser exponenciais se os países do Ocidente, sobretudo a Europa, eliminarem mesmo a dependência da energia russa ao longo dos próximos anos. “No horizonte podem estar a tomada de medidas adicionais [isto é, sanções], incluindo aquelas relacionadas com o sistema financeiro e/ou com importantes produtos de importação ou exportação russa”, afirmou o IIF, acrescentando que, a confirmarem-se, “levarão a consequências dramáticas para a economia russa, bem como para a capacidade de continuar com o esforço de guerra“.
Mesmo que o conflito e as sanções não “escalem” (expressão usada pelo IIF) já nada evitará que os danos económicos a prazo sejam de um alcance histórico. O que deixará Putin ainda mais longe do objetivo que fixou em 2000, quando subiu à Presidência da Rússia: na altura, escreveu que até ao final dos seus dois mandatos como Presidente a Rússia ultrapassaria o nível de PIB per capita de Portugal – na altura o país mais pobre da União Europeia – ou seja, o volume de produção de riqueza anual dividido pelo número de habitantes.
A Rússia fracassou nesse objetivo, na altura visto como potencialmente exequível, como recorda o think tank Atlantic Council: mesmo com o impacto da crise das dívidas soberanas (2011-2015), o PIB per capita de Portugal era no final de 2021 praticamente o dobro do russo.