Entrou na sala de comissões do Parlamento prometendo não comentar “sentimentos nem opiniões” e relatar apenas factos. Mas quando se levantou, no final de uma audição de mais de três horas marcada pelo clima de tensão com André Ventura, no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso das gémeas, Maria João Ruela — assessora para os Assuntos Sociais da Casa Civil da Presidência da República — tinha deixado claras as suas opiniões sobre o pedido do filho de Presidente. E, se é verdade que relatou factos, também deixou falhas de memória e pontas soltas a pairar no ar.
Durante a audição, a assessora de Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de esclarecer a sua intervenção no processo, garantindo que agiu como em qualquer outro caso e que voltaria a fazer os mesmos contactos — no caso, com o Hospital Dona Estefânia, como acabou por assumir, apesar de não existirem registos dessas conversas e de a própria Presidência da República ter chegado, por “lapso”, a transmitir uma informação errada sobre o assunto. Também não se encontrou registo da primeira ordem (email? conversa por telefone?, questionaram os deputados) que deu origem à sua intervenção no caso, o que acabou por levar a uma das acesas discussões com André Ventura e até a um ofício enviado em tempo real por Belém, para esclarecer que não houve email nenhum — o primeiro pedido que Ruela recebeu para tratar do caso terá sido feito em papel.
No final, ficou a ideia de que Ruela considera que as “queixas” que Nuno Rebelo de Sousa chegou a fazer sobre a sua suposta “inação” no caso são “medalhas”. O filho do Presidente acabou por obter a ajuda que queria? “Terá que fazer essa pergunta ao Dr. Nuno.”
Os contactos com o hospital e o “lapso” transmitido a Marcelo
Um dos pontos mais problemáticos para Maria João Ruela era antecipável: tendo a assessora para os Assuntos Sociais sido o elemento da Casa Civil que ficou responsável por ver “do que se tratava” (Marcelo dixit) o caso das gémeas, o que fez foi pedir mais informação sobre o caso a Nuno Rebelo de Sousa, por um lado, e perceber como é que este tipo de casos (em que os doentes estão fora de Portugal) são seguidos e tratados, por outro. A questão prendeu-se sempre com perceber, afinal, quem é que Maria João Ruela tinha contactado e que informações tinha acabado por obter — e é aí que aparece a primeira falha de memória da assessora.
Ou seja, Ruela não tem memória, como começou por dizer, de falar com ninguém em particular, nem tem contactos guardados na sequência desse processo. Para mais, como também acrescentou, não tem por hábito tomar notas dos telefonemas que faz no âmbito do seu trabalho, pelo que qualquer registo de uma conversa que não tenha acontecido por escrito estará perdido.
Ainda assim, no decorrer da audição a assessora de Belém foi-se lembrando, ou pelo menos admitindo a verosimilhança, de mais alguns detalhes. Acabou assim por assumir que, a ter havido algum contacto com algum hospital, terá sido com o Dona Estefânia, uma vez que era esse o hospital mencionado na informação inicial que Nuno Rebelo de Sousa lhe tinha transmitido sobre o início do “processo das gémeas” e que só em novembro de 2023, com a primeira notícia da TVI sobre o caso, percebeu que as crianças tinham acabado por ser tratadas no Hospital de Santa Maria.
Isto acabou por levantar outro problema, num dos vários momentos de tensão entre a assessora de Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura: o deputado lembrou que no relatório da Inspeção Geral das Atividades de Saúde há menção de contactos de Ruela com o Hospital de Santa Maria, uma informação que é atribuída a um “comunicado” da Presidência da República. Na verdade, corrigiu Ruela, a informação não veio de um comunicado, mas antes da conferência de imprensa “de improviso” que o Presidente da República fez no final do ano passado e antes da qual, por “lapso”, lhe foi passada essa informação errada.
Com Ruela a dizer num primeiro momento que não conhecia o relatório da IGAS mas a refutar esta informação — esclareceria depois que, embora não tenha lido a totalidade do relatório, leu partes do seu conteúdo –, Ventura não demorou a acusar a assessora de “mentir na Comissão de Inquérito” e a pedir ao presidente da comissão (o deputado do Chega Rui Paulo Sousa) para alertar a depoente: “Não pode mentir na CPI”. “Não tenho por hábito mentir, muito menos numa CPI”, respondeu Ruela, já com os ânimos bem agitados na sala de comissões.
No final da audição, Ruela não chegou, assim, a fornecer provas ou registos de conversas com qualquer hospital, mas admitiu que deverá ter tido contacto com o Hospital de Dona Estefânia — sem falar com ninguém de quem se lembre em particular, admitiu a assessora, que contou que por vezes contacta as instituições diretamente através do número de telefone “geral” que encontra ao pesquisar no Google.
Mantém-se, no entanto, a dúvida sobre a informação que Frutuoso de Melo transmitiu na altura, erradamente, sobre as supostas listas de espera que haveria para tratar crianças nesta situação — apesar de, num dos e-mails trocados sobre o caso, o chefe da Casa Civil ter feito a ligação entre a chamada de Ruela para o hospital e a informação sobre a existência de listas de espera, esta semana o responsável de Belém responsabilizou-se por ter “deduzido” que essa lista existiria. E Ruela confirmou: a informação falsa sobre listas de espera terá saído da cabeça do próprio Frutuoso de Melo.
A discussão sobre as listas de espera e o procedimento de contactar hospitais para obter informação sobre casos concretos voltou a provocar tensão entre Ruela e Ventura, com o deputado do Chega a concluir que só neste caso é que a assessora fez questão de contactar diretamente um hospital — “não ponha na minha boca coisas que eu não digo”, atirou a antiga jornalista em resposta — e a levar o confronto ao seu ponto máximo: “Está a dizer que estou a mentir? Não me acuse de mentir, porque isso atinge a minha honra”, irritou-se a assessora.
No final, a deputada bloquista Joana Mortágua chegou a equacionar se este não teria sido um argumento arranjado à pressa para ‘despachar’ o processo para o Governo e acabar com as ligações potencialmente embaraçosas entre o pedido de Nuno Rebelo de Sousa e a Casa Civil da Presidência da República.
Um email perdido e um ofício enviado por Belém a meio da audição
Foi o momento mais tenso de toda a audição de Maria João Ruela na comissão de inquérito. Ainda na primeira ronda de perguntas, André Ventura — que já estava a protagonizar um clima de tensão com a assessora de Belém desde o início da sua intervenção — perguntou a Maria João Ruela porque é que não havia nos documentos da Comissão Parlamentar de Inquérito um email que envolvesse diretamente Ruela no caso.
Isto porque parece haver um elo perdido nesta história: Nuno Rebelo de Sousa envia um email ao pai, Marcelo Rebelo de Sousa, dando conta do caso. Marcelo reencaminha o email para o chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, com a indicação de que Maria João Ruela analise a situação. E, depois, os emails que se seguem na documentação da CPI já dão conta de Maria João Ruela envolvida no caso. Para Ventura, falta algo: falta saber qual foi o primeiro contacto de Ruela com este caso, para perceber o “enquadramento” que recebeu.
“Só posso presumir que tenha sido informada por email”, respondeu Maria João Ruela, justificando que, se tem o email, é porque este lhe foi reencaminhado. Se esse email de reencaminhamento não existe, “é porque entretanto foi apagado, em cinco anos”. Mas Ventura aproveitou a hesitação de Maria João Ruela para dramatizar. “Não sabemos quem é que a informou a si, quem lhe deu enquadramento sobre a situação”, disse. “Não me sabe responder como é que recebeu um pedido do Presidente da República sobre um caso?”
Saber como é que o pedido original chegou a Maria João Ruela (que, depois, realizou os contactos com o hospital) é “fundamental” — e a ausência de uma ordem direta seria “particularmente grave”. Maria João Ruela foi tentando defender-se, garantindo que procurou na caixa de correio e trouxe todos os emails que encontrou. Mas Ventura não deixou cair o tema e disse que a ausência daquele email levanta “as maiores suspeitas” ao Parlamento, porque existe “uma falha”.
“Esta comissão vai ter ou de pedir mais elementos ou pedir às autoridades que os recolham”, disse Ventura, que prosseguiu fazendo um requerimento para que a comissão notificasse Belém para enviar “todos os emails”, e não “quase todos”. Maria João Ruela lamentou que os deputados do Chega estivessem “à procura de pormenores para criar uma história” — ao que os parlamentares asseguraram que não são pormenores. O contacto, admitiu Ruela, poderá ter acontecido por telefone ou pessoalmente.
Os deputados que se seguiram voltaram a pegar no tema. Joana Cordeiro, da IL, concordou que seria necessário ter acesso ao email em falta nos contactos entre Marcelo Rebelo de Sousa, Fernando Frutuoso de Melo e Maria João Ruela. “Como eu tinha estes emails todos, presumi que me tivesse chegado este email”, respondeu a assessora. “O que é facto é que me foi reencaminhado este email, porque ele estava na minha posse”, acrescentou, voltando a lamentar que os deputados “queiram encontrar aqui um tema”.
Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, também tocou no tema, levando Maria João Ruela a repetir a resposta: “Não me recordo de como chegou a informação, estava convencida de que tinha sido por e-mail. Mas tenho o e-mail original.”
O tema voltou a gerar confusão depois do intervalo, durante a segunda ronda de perguntas, quando António Rodrigues, do PSD, pediu a palavra para revelar que a CPI tinha acabado de receber um ofício de Belém sobre a confusão — “momento dramático”, como disse o social-democrata — gerada em torno do email perdido. Nesse ofício, a Casa Civil da Presidência da República revela que não existe nos seus arquivos qualquer email de Frutuoso de Melo para Maria João Ruela a transmitir o pedido, o que leva à conclusão de que o email terá sido impresso e entregue em papel à assessora.
“Na audição desta tarde levantou-se a questão da ausência, no dossier em posse dessa CPI, de um eventual mail meu de 21 de outubro de 2019, transmitindo à Doutora Maria João Ruela o mail de Sua Excelência o Presidente da República solicitando informação sobre o dossier que lhe foi transmitido pelo Dr. Nuno Rebelo de Sousa”, começa por contextualizar Fernando Frutuoso de Melo no referido ofício, apurou o Observador, adiantando que “verificado o dossier, constata-se que, efetivamente, um tal mail não existe nem nos nossos dossiers, nem nos dossiers enviados à PGR e à CPI”.
Assim, conclui: “Tal só pode significar que o mail de Sua Excelência o Presidente da República terá sido enviado em papel por mim à Doutora Maria João Ruela”.
A revelação levou a uma onda de pedidos dos deputados para interpelações à mesa. Ventura quis expressar “estranheza” por haver um ofício enviado durante a reunião da comissão e acrescentou uma pergunta a Maria João Ruela: que conversa foi essa, então? Há registos? Inês de Sousa Real, do PAN, interveio para pedir a Ruela que lhe mostrasse a cópia do email que tem, uma vez que antes já tinha assinalado que o email tinha, no cabeçalho, o seu endereço. O Chega voltaria, pela voz de Cristina Rodrigues, a insistir no caso, perguntando a Maria João Ruela se tinha algum email ou papel com orientações concretas sobre o caso.
Na fase de respostas, Maria João Ruela voltou a reiterar que não tem qualquer email. Citando o ofício chegado de Belém durante a tarde, destacou que a informação “só pode ter sido” passada em papel e não por email — e registou que é normal que esse papel já tenha sido destruído, tendo em conta que passaram cinco anos.
Tal como Frutuoso, Ruela garante: caso foi tratado como tantos outros que chegam a Belém
Em toda a audição, houve uma pergunta repetida várias vezes: houve ou não favorecimento deste caso devido à intervenção do filho de Marcelo Rebelo de Sousa. Por múltiplas vezes, Maria João Ruela alinhou por completo com o que o seu chefe, Fernando Frutuoso de Melo, tinha vindo fazer ao Parlamento no dia anterior, garantindo que o caso foi tratado como outro qualquer e que não houve qualquer tratamento diferenciado.
Logo no início da audição, Maria João Ruela procurou justificar como a sua função exigia estabelecer contactos com outras entidades e instituições e como pelas suas mãos já passaram centenas de casos. Chegou mesmo a dizer que já chegaram mais de 32 mil mensagens, que incluem pedidos de ajuda, convites ou “simples desabafos”. Este das gémeas foi mais um deles, embora com especificidades concretas pelo facto de se tratarem de crianças a necessitar de um medicamento urgente, esclareceu.
O caso foi acompanhado de forma “idêntica a todos os outros”, destacou Maria João Ruela, que disse ter feito o seu trabalho — recolher informação sobre como são tratados casos destes, que envolvem crianças nas comunidades portuguesas a necessitar de tratamento em Portugal — e fechado o caso em poucos dias.
Maria João Ruela destacou também que a sua experiência profissional como jornalista poderá ter influência no modo como trabalha, contactando sem pruridos com qualquer tipo de instituição, embora sempre cumprindo as regras da Casa Civil. Por outro lado, o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ser um Presidente próximo das pessoas, sempre disponível para ouvir os problemas dos cidadãos, faz com que haja múltiplos casos a chegar à sua secretária.
A assessora com a pasta dos assuntos sociais lembrou vários exemplos concretos, incluindo o de uma refugiada turca que abordou Marcelo Rebelo de Sousa numa esplanada para lhe apresentar o seu desespero perante um despejo iminente ou o de um par de empresários que quiseram contribuir para trazer refugiados da Ucrânia. Ambas as situações foram acompanhadas por Ruela: no primeiro caso, foram feitos contactos com o Governo e a autarquia respetiva; no segundo caso houve até o desenvolvimento de um projeto de acolhimento de ucranianos com feridas de guerra para receberem tratamento em Portugal. “Liguei para o chefe de gabinete do secretário de Estado que tinha a tutela, liguei para o representante em Portugal da OIM”, disse, explicando como estes exemplos mostram que as suas funções a levavam a contactar com as mais variadas entidades para resolver problemas apresentados a Belém.
Questionada pela deputada Joana Cordeiro (IL) sobre se não considera haver um “benefício” desproporcional para as pessoas que conseguem aceder à Presidência da República, Maria João Ruela lembrou que os contactos de Belém são públicos e que a Presidência acolhe todos os cidadãos que sintam necessidade de dirigir alguma mensagem ao chefe de Estado. “Se a Presidência é um órgão de soberania que está aberto à população, não podemos dizer que não damos resposta às pessoas”, sublinhou.
Foi também neste sentido a única pergunta feita por Alfredo Maia, do PCP, durante toda a audição: “O que é que neste caso ocorreu de forma distinta da rotina em casos idênticos?” Ruela garantiu que “não houve nada que fosse feito de forma diferente” em relação a outros casos de pedido de auxílio que chegaram a Belém.
João Paulo Correia, do PS, foi mais longe e quis que Maria João Ruela desse, pelo menos, um exemplo de outro caso que Belém tenha acompanhado da mesma forma. A assessora do Presidente garantiu que “com certeza” haverá “vários casos dessa natureza” em que Belém ajudou cidadãos, embora lembrando que cada caso é um caso. Em nenhum momento da audição Maria João Ruela considerou que o facto de este caso ter sido referenciado por Nuno Rebelo de Sousa o diferenciava de outras situações.
As críticas do filho do Presidente que acabaram por ser “medalhas”
Se esta terça-feira Frutuoso de Melo tinha começado logo por assumir o “desconforto” com o pedido de Nuno Rebelo de Sousa, esta quarta-feira Maria João Ruela recusou repetidamente comentar “sentimentos” ou “opiniões” — mas acabou por deixar os seus sentimentos e opiniões sobre as ações do filho do Presidente da República relativamente claros.
Logo de início, e colocando-se distante dos acontecimentos, Ruela constatou que no fio de e-mails associados ao processo consta uma mensagem enviada por Nuno Rebelo de Sousa a Frutuoso de Melo, queixando-se que nada acontecera depois de ter dado a conhecer o caso das gémeas à Casa Civil. Ora, seguindo este raciocínio, esse andamento teria de ter sido dado por Ruela — e é por essa razão que a assessora de Belém concluiu: “ [Nuno Rebelo de Sousa] lamentou-se ao meu chefe da minha percecionada inação”.
Para a assessora de Marcelo, a insatisfação do filho do Presidente é a prova de que, se este queria meter uma ‘cunha’, não viu essa vontade satisfeita, frisando sempre que não houve qualquer “excecionalidade” neste caso. E por isso, como chegou a rematar, vê agora, cinco anos depois, essa crítica de Nuno Rebelo de Sousa, como uma “medalha”. De resto, fez sempre questão de dizer que conheceu Nuno Rebelo de Sousa apenas a nível profissional e que se falou “uma ou duas vezes” com o filho do Presidente “foi muito”, não o considerando “um amigo” nem perto disso. Quanto às intenções e à ajuda que Nuno Rebelo de Sousa pretendia obter de Belém em concreto, disparou: “Terá que fazer essa pergunta ao Dr. Nuno.”
Se no Hospital de Santa Maria corriam rumores de que a ‘cunha’ teria funcionado e de que as gémeas estariam a ser tratadas graças a uma interferência de Belém, a assessora veio garantir que nunca soube que essa ideia estava a circular — só terá percebido isso após a notícia da TVI, em novembro do ano passado.