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O Estatuto do Estudante-Atleta chegou finalmente: em que é que vai ser útil e que falta fazia?

Os alunos universitários que sejam atletas vão gozar de regalias para facilitar a conciliação das duas atividades. Nilson e Telma Pereira, jogadores de futsal, explicam a falta que o estatuto fazia.

Há cerca de um ano, em janeiro de 2018, Morgan Reid escreveu um texto para o site The Players’ Tribune. Norte-americana, com 23 anos, é defesa central do North Carolina Courage e joga na principal liga de futebol feminino dos Estados Unidos. O texto, escrito em permanente flashback, tinha como título: “Anatomia de uma estudante-atleta”. Além de explicar as dificuldades que teve no último ano da licenciatura para conseguir conciliar os estudos com o facto de pertencer à equipa de futebol feminino da Duke University, Reid fala abundantemente sobre o momento em que se tornou “viral”, principalmente devido ao aspeto do próprio corpo. Mas a dada altura, num dos parágrafos iniciais, a atleta descreve em poucas frases o que é competir numa qualquer modalidade enquanto se completa um grau universitário.

“Além de estar a atravessar um semestre desportivo muito ocupado, tinha ainda cinco cadeiras – mais uma do que a maioria dos estudantes – para completar os meus requisitos pré-estabelecidos. Mesmo antes da pausa de inverno, tinha acabado os meus exames finais e estava à espera das notas. E, além disso tudo, o draft para a National Women’s Soccer League começava no dia 18 de janeiro, o que significava que eu tinha passado os últimos dias a filtrar vídeos para enviar aos treinadores”, escreveu Morgan Reid. A descrição, ainda que totalmente refém daquela que é a realidade do desporto nos Estados Unidos, mostra em larga escala o que é ser atleta e estudante. E o que é tentar ser bem sucedido nos dois prismas.

Em Portugal, a gestão das duas vertentes é ainda mais difícil. A ausência de um estatuto discutido, elaborado e reconhecido que defendesse os estudantes-atletas complicava e muito o organizar das agendas de forma a não faltar a aulas para não faltar a treinos ou vice-versa. De uma forma ou de outra, algo acabava por ficar por trás. Milhares de atletas com potencial olímpico ter-se-ão perdido devido às dificuldades impostas pela rigidez de horários, pela rigidez das datas dos exames, pela rigidez dos prazos de entrega de trabalhos – tal como milhares de atletas não completaram as respetivas licenciaturas por terem colocado a evolução desportiva à frente de tudo o resto quando, num mundo ideal, as duas estradas podiam ser paralelas e não perpendiculares.

A aprovação do estatuto permite, então, a uniformização a nível nacional das condições dadas aos estudantes-atletas a partir do ano letivo de 2019/2020 -- algo que não acontecia até agora, com cada instituição de ensino a aplicar as próprias regras.

Durante o passado mês de janeiro, o Estatuto do Estudante-Atleta foi aprovado pelo Conselho de Ministros. O documento, uma das reivindicações mais antigas do desporto universitário português, terá impactos óbvios e diretos na vida daqueles que aliam o ensino superior à prática de um desporto – para além de ir, com toda a certeza, aumentar os índices de prática desportiva na população mais jovem. Entre os direitos de todos aqueles que sejam abrangidos pelo estatuto estão, claro, a elevação de faltas, o adiamento da entrega e apresentação de trabalhos, a realização de momentos de avaliação que coincidam com competições ou torneios, a possibilidade da escolha de turmas e horários mais adequados à conciliação dos dois lados e ainda a hipótese de realização de dois exames adicionais em época especial de exames.

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Enquanto deveres dos estudantes-atletas, o estatuto prevê apenas um: “Desenvolver a prática desportiva de forma exemplar, cumprindo as regras desportivas e éticas de cada modalidade e dentro dos princípios do fair play, defender e respeitar o nome do estabelecimento de ensino que representam e ter aproveitamento escolar”. O documento, elaborado com a participação da Federação Académica do Desporto Universitário (FADU) no grupo de trabalho que redigiu o diploma (e que integrou a Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto), passou ainda pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos antes de ser promulgado em Conselho de Ministros. A aprovação do estatuto permite, então, a uniformização a nível nacional das condições dadas aos estudantes-atletas a partir do ano letivo de 2019/2020 – algo que não acontecia até agora, com cada instituição de ensino a aplicar as próprias regras e com os casos mais inflexíveis a serem registados, curiosamente, nas faculdades ligadas ao desporto. Basta olhar para o caso de Telma Monteiro.

A judoca portuguesa e medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Brasil, em 2016, frequentava a Faculdade de Motricidade Humana e acabou por mudar de instituição de ensino. “Começa numa faculdade de desporto e teve de transitar para outra, tantas eram as dificuldades. Essa situação, lamentavelmente, acontece pese embora a legislação procure atender à conciliação entre estas duas realidades. Curiosamente, acontece onde não era para acontecer. Onde deveria haver uma sensibilidade, uma compreensão e um entendimento deste problema que, por ventura, não existiria em escolas onde a área do desporto não está presente. Oxalá faça parte do passado e não venha a suceder no futuro”, explicou, em declarações à TSF, José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal.

Telma Monteiro teve de mudar de universidade para prosseguir os estudos e manter a carreira no judo

LUSA

Entre os atletas que atualmente representam Portugal além fronteiras, em Campeonatos da Europa ou do Mundo, vários tiveram de interromper os estudos universitários para chegar ao patamar desportivo onde hoje se encontram – mas outros conseguiram conciliar os dois lados e vingar nas salas de aulas e nas pistas de atletismo, nas quadras de futsal ou no dojo. Basta olhar para a Seleção Nacional que em fevereiro de 2018 conquistou o Europeu de futsal pela primeira vez na história de Portugal: de entre os 14 convocados, sete concluíram o Ensino Superior. Além de André Sousa, Bebé, André Coelho, Tiago Brito, Pedro Cary e Tunha, Nilson foi um deles. O fixo do Sp. Braga, que cresceu em Lisboa e começou a jogar no Portela e no Sporting, concluiu o curso de Gestão de Recursos Humanos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e está atualmente a meio do mestrado em Gestão de Recursos Humanos, já na Universidade do Minho.

Dois mestrados, sete licenciaturas e vários anos de conhecimento: a história (e o segredo) dos 14 campeões europeus

Além dos estudos, Nilson acumula agora o futsal com o trabalho, já que começou a exercer funções nos Serviços de Ação Social da universidade minhota. O jogador de 26 anos assume que, em comparação com muitos colegas, não teve um percurso muito difícil e pôde usufruir da “sensibilidade de professores e diretores de clubes”. “Quando vim para Braga, faltava-me um semestre para acabar o curso. Escolhi fazer tudo por exame, porque não podia ir às aulas, mas sempre que tinha um exame ia a Lisboa e depois voltava. Faltei a treinos mas a direção do Sp. Braga, e mesmo a equipa técnica, foi sempre muito compreensiva comigo. Tive sorte. Não foi muito difícil”, explica o internacional português. Ainda assim, Nilson conta que conhece vários casos de atletas que tiveram mais dificuldades, “uns até com percursos académicos mais exigentes”: o novo Estatuto do Estudante-Atleta irá ajudar a “lidar com a pressão do lado estudantil e do lado desportivo”, garante, já que “não é fácil aguentar as duas coisas ao mesmo nível”.

Nilson (ao centro) a festejar com Pedro Cary e Bruno Coelho a conquista do Campeonato da Europa de futsal, em fevereiro de 2018

AFP/Getty Images

Para o internacional português, a existência de uma atividade alternativa ao futsal, um caminho secundário que se tornará primário assim que a carreira desportiva terminar, foi sempre essencial. “Ninguém fica rico a jogar futsal. As coisas podem correr bem durante um tempo mas, no fim, ninguém está rico. E é preciso ter coisas para fazer quando isto acabar”, diz Nilson, que acredita que os jovens atletas que ainda não ingressaram no ensino superior “têm cada vez mais noção” da importância dos estudos mas ainda “pensam muito no dia de hoje”. “Daqui a dez anos logo se vê, basicamente. Eu tive sorte porque a minha família sempre me disse que para jogar tinha de estudar. Quando acabei o 12.º ano, ir para a universidade pareceu-me o caminho natural. Mas alguns ainda acham que não é preciso. Mesmo aqueles que querem futebol, onde se ganha muito do que no futsal, acham que 500 euros, mil euros por mês está ótimo e pronto. Esquecem-se de que os estudos trazem mais do que dinheiro”, acrescenta o fixo do Sp. Braga.

E se Nilson, mais do que com a vida académica, aponta agora os esforços diários à conciliação do futsal com o trabalho, Telma Pereira ainda agora começou a balançar a vida desportiva com os estudos universitários. A capitã da Seleção Nacional de sub-19 que no passado mês de outubro conquistou a medalha de ouro de futsal feminino nos Jogos Olímpicos da Juventude tem apenas 18 anos e entrou este ano letivo no curso de Engenharia Mecânica da Universidade do Minho. A jogadora do Nun’Álvares, clube de Fafe, pesou os prós e os contras de iniciar um percurso universitário numa altura em que a carreira no futsal está a crescer mas rapidamente percebeu que ter um plano B era bem mais importante do que as horas sem dormir e o malabarismo que terá de exercer nos próximos cinco anos. “Claro que há receio. Tenho sempre pouco tempo para estudar — ou, pelo menos, menos tempo do que a maioria dos meus colegas. Mas é uma questão de organização. Acabo sempre por ter tempo para os treinos, para estudar, para os amigos e para a praxe. E foi sempre isto que quis e foi sempre este o meu objetivo: tirar um bom curso para ter um bom emprego”, revela Telma, que também já representou o Vermoim.

Telma Pereira (a primeira da fila de baixo a contar da direita) foi a capitã da equipa de futsal feminino que conquistou o ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude de 2018

E “tirar um bom curso para ter um bom emprego” é particularmente relevante no caso do futsal feminino, explica a internacional sub-19 portuguesa, que explica que, para uma mulher em Portugal, “o futsal não é um futuro certo”. “Pode acontecer mas é muito difícil. A maioria das raparigas que jogam tem noção disso, que é muito difícil. Há muitas que estudam, outras que não porque acham que o futsal vai mesmo dar, mas a maioria tem essa noção. Não chega para pagar as contas e para nos sustentar”, acrescenta Telma Pereira, recordando ainda que, “mesmo que tudo corra bem”, a carreira desportiva “acaba cedo”. “Por muito que queiramos, não vamos jogar para sempre ao mesmo nível. E quando tudo acaba ainda há 30, 40, 50 anos em que é preciso trabalhar e ganhar dinheiro”, afirma a pivô portuguesa.

Seleção sub-19 feminina de futsal ganha ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude

Sobre o Estatuto Estudante-Atleta, do qual Telma, tal como todos os outros estudantes-atletas, só vai usufruir no próximo ano letivo, a jogadora explica que vai ser muito útil para conciliar “faltas, estágios e treinos”, já que “muitos professores acabam por marcar faltas nas aulas práticas”. “O ano passado [ano letivo 2017/18], ainda estava eu no 12.º ano, entre treinos, estágios, jogos, saídas e tudo mais, eu devo ter perdido dois meses de aulas. Não é fácil. Posso estudar em casa mas não é igual. Os outros têm tempo para tudo. Nos estágios dão-nos sempre um tempinho para estudar mas não é a mesma coisa”, explica Telma Pereira, que acredita que o novo estatuto vai permitir uma maior flexibilidade de horários e incentivar a organização pessoal de cada um.

O futuro no futsal "pode acontecer mas é muito difícil". "A maioria das raparigas que jogam tem noção disso, que é muito difícil. Há muitas que estudam, outras que não porque acham que o futsal vai mesmo dar, mas a maioria tem essa noção. Não chega para pagar as contas e para nos sustentar".
Telma Pereira, capitã da Seleção Nacional sub-19 de futsal feminino

24 anos depois, Portugal terá um representante numa Universíada de Inverno, já que Ricardo Brancal, estudante de Engenharia Biológica, vai participar nas provas de slalom e slalom gigante de esqui alpino. Telma Monteiro foi obrigada a mudar de universidade, Nilson foi um caso raro e Telma Pereira será uma das primeiras estudantes a usufruir do Estatuto do Estudante-Atleta. A partir do próximo ano, todas as faculdades, universidades e institutos politécnicos do país irão obedecer às mesmas regras que têm como objetivo proteger os interesses de todos aqueles que querem concluir uma licenciatura e praticar modalidades de alta competição. Mais do que isso, o objetivo é apenas um: que tal como Nilson e Telma, todos os jovens atletas tenham a possibilidade de apostar e investir num plano B que seja uma alternativa viável a uma carreira de desgaste rápido.

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