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O homem do cão atacou na Cidade Universitária

1968. Um homem é agredido na Cidade Universitária. Morre. O criminoso é "o homem do cão". Prostituição homossexual? Talvez. Mas o que faz um PIDE no caso?

24 de Outubro de 1968. Quinta-feira, quatro e meia da tarde. Ouvem-se tiros. Onde? Na Cidade Universitária, em Lisboa. Mais precisamente nas traseiras da Faculdade de Direito.

Há apenas 10 anos que a Faculdade de Direito se mudara do Palácio dos Viscondes de Valmor, no Campo dos Mártires da Pátria, para o edifício desenhado por Pardal Monteiro, no que em 1968 se chama pomposamente Cidade Universitária mas que até há pouco era um extenso matagal que ia desde o Hipódromo a Entrecampos. No ar ainda se respira aquela atmosfera (misto de cheiro a novo e vazio dos espaços por preencher) característica das obras recém-inauguradas. Na enorme zona envolvente vários operários ocupam-se nas muitas actividades de finalização de obras que parecem nunca acabar, desmontagem de estaleiros e ajardinamento.

No ar ainda se respira aquela atmosfera (misto de cheiro a novo e vazio dos espaços por preencher) característica das obras recém-inauguradas

São precisamente uns operários da Câmara Municipal de Lisboa que ali trabalhavam quem ouve os disparos. Mais exactamente, dois disparos. Sem hesitar, correm de imediato para o local de onde lhes pareceu terem provindo os estampidos. Trata-se, segundo os jornais, de “uma zona de cerrados arbustos” junto da Faculdade de Direito.

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Quando lá chegam encontram um homem caído. Está muito mal. Tudo indica que foi alvejado na cabeça. Um agente da PSP que fazia o chamado giro na zona é chamado ao local. Vem também o 115. Com os cuidados inerentes ao seu estado o homem é colocado dentro da ambulância. A viagem é curta: a vítima é levada para o vizinho Hospital de Santa Maria, outra das grandes obras que tivera lugar naquela zona. Entretanto chegam ao local do que ninguém duvida ter sido um crime os agentes Matias e António Augusto, da Polícia Judiciária.

Rapidamente se traça o perfil da vítima, quem é, onde e com quem vive: chama-se Salvador, tem 44 anos. É ajudante de motorista e estava empregado numa das muitas empresas que por essa época trabalhavam nos edifícios da Cidade Universitária. Salvador era casado e vivia com a família de um cunhado, na Avenida 5 de Outubro.

E o agressor? O agressor é “o homem do cão”. Terá como apelido Belchior. E mais não se sabe. Ou não se diz. Ou não se escreve nos jornais.

O homem do cão

Quando os operários da CML chegaram junto de Salvador já o agressor tinha desaparecido. Mas há quem o tenha visto: os jardineiros que trabalhavam na zona e que pela natureza da sua actividade acompanhavam todos os movimentos por mais subtis que fossem na paisagem: um pássaro a construir o ninho, um ramo que cai, um automóvel que acelera… nada escapa ao olhar de quem leva horas avaliando a enxertia dos pés de roseira e arrancando meticulosamente as ervas daninhas que se obstinam em sabotar a geometria dos canteiros.

Aos operários que trabalhavam na Cidade Universitária, o "homem do cão" tornara-se uma personagem familiar

Naturalmente, aos jardineiros não podia escapar a luta entre os dois homens. Ou mais precisamente a agressão de que Salvador fora vítima. Os testemunhos dos jardineiros Francisco Amaro, Diamantino da Silva, Abel Soares e António Almeida não deixam margem para dúvidas: o agressor alvejou o “infeliz Salvador” quando este tropeçou nuns ramos de árvore, caindo ao chão. O jardineiro Diamantino da Silva descreverá ainda como viu o agressor a pontapear Salvador quando este, já ferido pela bala, está tombado no chão.

Mas os jardineiros viram mais. Ou, melhor dizendo, já tinham visto o agressor noutros dias. Até lhe tinham arranjado uma espécie de alcunha que, na falta do nome próprio, lhes permitia identificar aquele passeante habitual nos matagais contíguos à Cidade Universitária: chamam-lhe “o homem do cão” porque se fazia acompanhar por um cão corpulento.

Enquanto não se encontra o “homem do cão” vão-se reconstituindo as últimas horas de vida da vítima: Salvador almoçou com o cunhado na pastelaria que este explorava na Avenida 5 de Outubro. Depois atravessou a então Avenida 28 de Maio (hoje Avenida das Forças Armadas) e encaminhou-se para a Cidade Universitária, onde trabalhava ele e um seu irmão. O irmão de Salvador confirma que se encontraram e se demoraram a tratar de vários assuntos profissionais. Despediram-se em seguida. Pouco depois, Salvador era alvejado pelo “homem do cão”.

“Em circunstâncias estranhas”

Desde que a 25 de Outubro de 1968 começaram a ser publicadas notícias sobre a violentíssima agressão de que o ajudante de motorista Salvador fora alvo na véspera, que se aludia às “circunstâncias estranhas” deste caso. Qualquer leitor regular de jornais ou residente em Lisboa sabia que o local onde Salvador foi agredido – os matagais contíguos aos terrenos onde estava a ser construída a Cidade Universitária – eram locais de prostituição masculina. Aliás, não estavam completamente esquecidos alguns crimes graves envolvendo homossexuais que ali tinham acontecido anos antes.

Durante anos, a zona da Cidade Universitária vai ser um imenso estaleiro e também um dos locais mal afamados de Lisboa

Mas essa é apenas uma circunstância estranha deste caso. Outras existem. E não são menos embaraçosas: o “homem do cão” é nada mais nada menos que um funcionário da PIDE, mais uma “circunstância estranha” deste caso que os jornais não referem directamente mas que os leitores dos jornais – habituados a interpretar as entrelinhas das notícias – terão depreendido à medida que se vai conhecendo melhor “o homem do cão”. Logo no dia seguinte ao do crime, 25 de Outubro, sabe-se o seu nome próprio: “o agressor seria um indivíduo de nome Belchior, muito conhecido nas imediações da Cidade Universitária, por onde passeia habitualmente com um cão” – escreve O Século.

Até aqui nada de estranho. Ou seja, estamos apenas perante a “circunstância estranha” de uma agressão muito violenta numa zona de prostituição masculina. O facto de Salvador, a vítima, ser casado, pai de filhos e descrito pelos jornais como “homem de existência pacata e modesta, que viera há oito anos para Lisboa, após um passado ao que parece sem história” na sua terra, são detalhes com que os jornalistas procuravam responder às dúvidas e boatos que inevitavelmente surgiam associados a um caso que pelo local e pelas características do crime – grande violência entre dois homens – remetia para outros crimes acontecidos nos meios homossexuais.

Mas eis que a 26, sob o título “Quem é o homem do cão que passeava na Cidade Universitária quando foi alvejado o ajudante de motorista?”, O Século, além de informar que Salvador se mantém em estado de coma, que os agentes da PJ interrogaram os jardineiros Francisco Amaro, Diamantino da Silva, Abel Soares e António Almeida, a par de outras pessoas que aludem ao “passeante habitual da mata acompanhado de um corpulento cão”, escreve estas linhas que parecem mais um recado cifrado do que uma notícia: “Desde que este suspeito não se apresente voluntariamente às autoridades a esclarecer a sua situação, as suspeitas sobre ele agravam-se cada vez mais. A polícia, conhecedora dos sinais do indivíduo em foco, procedeu a investigações no sentido de o localizar dentro de horas.”

Ou seja, a Polícia Judiciária já sabe que Belchior, o “homem do cão”, é funcionário da PIDE. Mais precisamente, que é ajudante de motorista naquela polícia. E está a avisar o funcionário da PIDE, Belchior, que em matéria de investigação criminal quem manda é a PJ e não a PIDE. Logo, ou Belchior se entrega à PJ ou a PJ o prende.

O “homem do cão” percebeu o recado

Ainda no dia 26, Belchior entrega-se à PJ. É um homem jovem, tem 35 anos, menos nove que Salvador, e tal como Salvador viera há algum tempo para Lisboa. Vivia com a mulher e a filha, ali para Campo de Ourique. Quando se apresenta aos investigadores policiais, Belchior traz consigo a arma com que baleou Salvador – arma de guerra, escreverão os jornais — e também a sua versão dos acontecimentos.

Começa por declarar não ser sua intenção matar a vítima e confirma que costumava, nas suas horas livres, ir passear para as redondezas da Cidade Universitária acompanhado de um cão. E explica que nessa tarde de 24 de Outubro, “andando, como era frequente, no referido parque foi surpreender o homem (Salvador) entre uns arbustos junto da Faculdade de Direito, em postura censurável, manifestamente de ultraje ao pudor público. Indignado com o que observara, verberou-lhe o estranho procedimento. Contra o esperado, o homem atacou-o com fúria, agredindo-o com uma cabeçada e um pontapé que lhe atingiu a coxa, e fugiu. Perseguiu-o na disposição de o entregar à polícia, e veio alcançá-lo quando ele tropeçou num tronco caído. Segundo afirma, o homem, levantando-se imediatamente, pretendeu lançar-lhe as mãos ao pescoço para o estrangular. Para se defender – diz – sacou da pistola que tinha, na disposição de bater com ela na cabeça do outro. Não sabe explicar como a pistola se disparou, admitindo que houvesse premido, inadvertidamente, o gatilho. A sua fuga, imediatamente após prostrar a vítima, foi consequente – diz – do pavor que dele se apoderou ao ver a gravidade da situação em que se colocara e não na mira de fugir às responsabilidades”.

Salvador é levado para o Hospital de Santa Maria. Nunca sairá do estado de coma. Morre a 26 de Outubro de 1968

Não será certamente grande especulação acrescentar que toda esta explicação não terá convencido muitos dos leitores do Diário Popular, Século e Diário de Notícias que, com pequenas variantes estilísticas, publicam a notícia da entrega de Belchior à PJ e a versão que este apresenta àquela polícia sobre os acontecimentos de 24 de Outubro, na Cidade Universitária. Quem sem qualquer sombra de especulação não ficou convencida foi a PJ, que mantém Belchior preso. Mas outra notícia vai marcar ainda esse dia 26 de Outubro de 1968: no Hospital de Santa Maria, Salvador morre.

A “organização policial à qual pertencia como ajudante de motorista o réu”

Um ano e dois meses depois de ter acontecido, o crime da Cidade Universitária volta ser notícia: Belchior vai ser julgado, em Tribunal Militar, instância em que eram julgados os agentes policiais.

Muita coisa mudou nesses catorze meses que medeiam entre o momento em que a 24 de Outubro de 1968, na Cidade Universitária, Belchior baleou Salvador e este Janeiro de 1970 em que, no Campo de Santa Clara, Belchior vai ser julgado: o homem já chegara à Lua; a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) mudara de nome, chama-se agora DGS (Direção-Geral de Segurança); e Marcelo Caetano explicava na televisão em “Conversas em Família” os assuntos do Governo. Mas o que interessa à muita gente que em meados de Janeiro de 1970 enche a sala do Tribunal Militar Territorial não é o girar da grande roda do mundo mas precisamente o microcosmos que o crime da Cidade Universitária permite entrever. Qual? Recorrendo a um título que a censura não permite aos jornais escrever mas não consegue impedir as pessoas de repetir: no Tribunal de Santa Clara vai ser julgado o PIDE que matou um homem no matagal da Cidade Universitária.

A 24 de novembro de 1969, a PIDE passa a ser denominada Direção-Geral de Segurança. Uma mudança burocrática que não correspondeu a uma alteração de funções

Para todos os envolvidos, e não apenas para o réu, este julgamento é o espaço para fazerem prova do que não se é ou não se fez. Em primeiro lugar temos Belchior, o réu, procurando provar que nunca quis matar Salvador. Na prática, a defesa de Belchior é dificílima, pois à evidência dos factos juntam-se em tribunal os peritos da Medicina Legal que, baseados na autópsia efectuada à vítima, afirmam “categoricamente” ter o réu intenção de matar Salvador “depois de o molestar severamente”. E não só. Há também testemunhos poderosos, como o do jardineiro Diamantino, que mais uma vez “declarou não ter visto Salvador tentar agredir Belchior, mas sim levantar as mãos para evitar ser alvejado. Acrescentou ainda que, no momento em que o falecido caiu, antes do segundo disparo, o réu atingiu a vítima a pontapé”. O mais que a defesa consegue é apresentar testemunhas que declaram que ouviram dizer que Belchior se dizia ameaçado por Salvador, “que frequentava a mata para fins contra a moral pública”·

Mas Belchior não é o único nessa tentativa de afirmação pela negativa. A viúva de Salvador vai tornar-se uma personagem crucial no julgamento, que para ela não serve apenas para condenar Belchior mas também para defender a imagem do seu marido. Todas as suas palavras visam desfazer os equívocos gerados pelo facto de o pai dos seus filhos ter sido assassinado com grande violência e sem qualquer justificação num lugar então frequentado por homens que procuravam contactos homossexuais. Perante o juiz, ela dá conta de vinte anos de casamento com um homem que define como “sem qualquer aberração, amigo da sua esposa”, “julgando-o incapaz de frequentar as matas da Cidade Universitária, para os fins que se pretende fazer acreditar.”

A Belchior, que quer provar a sua inocência, e à viúva, que quer provar ter sido casada com um “exemplar chefe de família, normal nos seus costumes”, junta-se a PIDE, sempre referida como “organização policial à qual pertencia como ajudante de motorista o réu”, que pretende deixar claro que aquela polícia nada teve a ver com a actuação de Belchior.

Deixado cair pela PIDE, Belchior, de quem em Outubro de 1968, quando se entregou à PJ, se dizia ter licença de porte de arma, vai em Novembro de 1970 ouvir o tribunal acrescentar três meses por porte ilegal de arma à pena de prisão a que foi condenado: dezasseis anos.

Belchior regressava à prisão depois de anunciar ir recorrer da sentença. A “organização policial à qual pertencia como ajudante de motorista o réu” não só conseguira que o seu nome não fosse pronunciado no tribunal nem escrito nos jornais como obtivera esta declaração da acusação: “O crime não teve qualquer relação com os serviços da organização policial à qual o réu pertencia como ajudante de motorista”. Os populares que nesse 15 de Janeiro de 1970 encheram a sala do 2.º Tribunal Militar Territorial regressaram a casa. O crime da Cidade Universitária chegava ao fim. O mundo que ele deixou entrever, esse, continuaria a ser apenas notícia quando uma morte em circunstâncias estranhas o tirava da invisibilidade.

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