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Os pastéis do cego. Ou o veneno que matou uma vítima gulosa, porque o alvo não gostava de doces

Uma encomenda chega a um asilo cegos de Gaia numa tarde de Março de 1948. Lá dentro estavam cincos pastéis. À hora do lanche os pastéis vêm à mesa. A morte também.

A tarde desse dia 10 de Março de 1948 vai passando tranquila no Asilo de Cegos Pereira de Lima, em Gaia. O asilo é novo: só tem dez anos e nasceu dos donativos efectuados pelo casal Manuel Pereira de Lima e Carmina Pinto Dias de Lima. Quer o edifício, uma casa abastada a que as cantarias em pedra acrescentavam um ar de confortável solidez, quer o terreno que o rodeava tinham sido deixados com um objectivo preciso: fazer-se ali um asilo para cegos. A vontade do casal Pereira de Lima foi concretizada e no prédio da que fora a sua casa, nasceu, no ano de 1938, o Asilo de Cegos Pereira de Lima.

Embora hoje a palavra asilo não tenha uma conotação positiva a verdade é que, tendo em conta as difíceis condições de sobrevivência dos cegos por essa época, aqueles que se encontravam no Asilo Pereira de Lima não teriam grandes razões de queixa em comparação com os demais. Antes pelo contrário.

Manuel Pereira de Lima determina no seu testamento "instituir na sua propriedade sita em Villa Nova de Gaya, rua do Castello numero um a seis, um asylo para cegos"

Assim, na sucessão de gestos que visavam assegurar cama, mesa e roupa lavada aos cegos ali asilados, nada parecia distinguir essa tarde de quarta-feira das muitas que a precederam e das que estavam para lhe suceder. O almoço já aconteceu. Está para chegar a hora da merenda. Ou lanche, como se dirá anos depois.

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Esta rotina é subitamente quebrada por um bizarro estertor. Um homem retorce-se e contorce-se como se estivesse possuído por uma legião de demónios. O alarido no Asilo cresce, quer entre os funcionários que não percebem o que vêem, quer entre os cegos que não vendo percebem muito bem que algo de muito grave está a acontecer.

Um homem retorce-se e contorce-se como se estivesse possuído por uma legião de demónios. O alarido no Asilo cresce, quer entre os funcionários que não percebem o que vêem, quer entre os cegos que não vendo percebem muito bem que algo de muito grave está a acontecer.

Tiago de Castro Neves, assim se chamava o homem que se retorcia no que parecia ser uma agonia sem fim, tem 46 anos. Aparte a cegueira era até àquele momento uma pessoa saudável. Mas fosse pelo que fosse o mal estar de Tiago Castro Neves não só não termina como se acentua. O seu estado agrava-se minuto a minuto.

A dado momento os responsáveis do asilo chamam os Bombeiros Voluntários de Coimbrões. Estes levam Tiago de Castro Neves para o Hospital de Santo António. Mas Tiago de Castro Neves nem sequer sobrevive ao tempo do percurso: é já cadáver quando dá entrada no hospital.

Cinco pastéis, cinco enigmas

No dia seguinte os jornais vão falar de um caso de morte súbita. “Foi acometido de morte súbita e faleceu a caminho do Hospital, Tiago de Castro Neves, de 46 anos, de Avintes e que presentemente se encontrava internado no Asilo de Cegos Pereira de Lima, da Rua do Castelo, 1. O cadáver deu entrada no Instituto de Medicina Legal” – informa no dia seguinte, 11 de Março, o Jornal de Notícias.

Até aqui nada de novo: as notícias sobre morte súbita eram frequentes e, a par das mortes provocadas pelas quedas de muros e árvores, acidentes de trabalho, queimaduras e ingestão acidental de produtos tóxicos, enchiam as chamadas colunas do dia a dia. Mas a justificação de “morte súbita” para explicar o que acontecera a Tiago de Castro Neves foi rapidamente descartada. Logo a 12 de Março, o mesmo Jornal de Notícias escreve na sua página 3: “A Polícia Judiciária vai proceder a averiguações sobre a morte do internado do Asilo de Cegos Pereira de Lima, de Gaia, Tiago de Castro Neves, de 46 anos, de Avintes, caso que ontem noticiámos.”

O que levara a morte súbita de Tiago de Castro Neves a passar a caso de polícia? A forma como aconteceu. Mais precisamente a rigidez muscular, os espasmos e convulsões, a incapacidade de respirar e muito particularmente as contorções que pareciam ter transformado Tiago de Castro Neves numa marioneta alucinada remetiam para uma palavra: veneno.

O que levara a morte súbita de Tiago de Castro Neves a passar a caso de polícia? A forma como aconteceu. Mais precisamente a rigidez muscular, os espasmos e convulsões, a incapacidade de respirar e muito particularmente as contorções que pareciam ter transformado Tiago de Castro Neves numa marioneta alucinada remetiam para uma palavra: veneno.

Para alguns dos que tinham presenciado a sua agonia a 11 de Março era evidente que Tiago de Castro Neves fora envenenado. Esta suspeita torna-se certeza quando chega o resultado da autópsia.

13924 é o número da autópsia realizada ao cadáver de Tiago de Castro Neves no Instituto de Medicina Legal. A autópsia não só confirma a natureza criminosa da sua morte – sem qualquer sombra de dúvida Tiago Castro Neves morrera envenenado – como, não menos importante, dá um nome ao veneno que o matou: estricnina. Presente à época no veneno para ratos, a estricnina gera nas suas vítimas a agonia que tanto impressionara aqueles que tinham estado naquela tarde de 10 de Março de 1948 no Asilo de Cegos Pereira de Lima.

É na antiga casa de Manuel Pereira de Lima e Carmina Pinto Dias de Lima que em 1948 funcionava o asilo onde se acolhiam cegos. Tiago de Castro Neves era um deles.

Tiago de Castro Neves, o cego do Asilo Pereira de Lima, de Gaia, fora envenenado. Mas por quem? Como? E sobretudo quem quereria fazer mal a um homem cego que vivia num asilo? Antes do quem e do porquê, vai perceber-se o como. Mais precisamente suspeita-se do papel desempenhado naquela morte pela pequena encomenda que chegara naquela mesma quarta-feira, 10 de Março de 1948, ao Asilo de Cegos Pereira de Lima. Tratava-se de um daqueles embrulhos em que dobras meticulosas de papel envoltas em fio protegiam as encomendas dos sobressaltos e safanões da viagem. Mesmo no caso das encomendas mais melindrosas, como era aquela que nesse mesmo dia chegara ao asilo: cinco belos pastéis, cinco tentações de açúcar e ovos laboriosamente transformados numa delícia gastronómica graças ao equilíbrio entre pontos de estrada, cabelo, fio e pérola.

Tiago de Castro Neves adorava aqueles pastéis (e quiçá todos os outros desde que fossem doces!) e comeu logo três. Pouco depois de os ter comido começou a sentir-se muitíssimo mal… O resto já sabemos.

Mas note-se que os pastéis eram cinco. Logo sobraram dois. E esses foram comidos por outros cegos do asilo que não apresentam qualquer queixa. Estaria o veneno nos pastéis? Pelo menos nos dois comidos pelos outros cegos não estava. Estaria em todos os três comidos sofregamente por Tiago de Castro Neves? Talvez sim. Talvez não.

Mas note-se que os pastéis eram cinco. Logo sobraram dois. E esses foram comidos por outros cegos do asilo que não apresentam qualquer queixa. Estaria o veneno nos pastéis? Pelo menos nos dois comidos pelos outros cegos não estava. Estaria em todos os três comidos sofregamente por Tiago de Castro Neves? Talvez sim. Talvez não.

Mas essa é a primeira e a parte mais fácil deste enigma: alguns dos pastéis tinham veneno. Outros não. Mas continua sem se saber porque quisera alguém matar Tiago de Castro Neves.

O que diz o embrulho?

Mais uma vez a resposta estava no pequeno embrulho. Desde o princípio, ele lá estava com as suas voltas de papel a fazer os cantos, o cordel a passar por cima, por baixo e pelos lados num enredo de nós rematado por uma laçada. Mas não só. Lendo o destinatário da encomenda constata-se que ninguém quisera matar Tiago de Castro Neves mas sim António Monteiro, um outro cego que vivia no Asilo Pereira de Lima.

Que pastéis iam dentro da encomenda? Não se sabe. Mas opções não faltavam nas confeitarias do Porto: São Gonçalos, Jesuítas, Fatias do Freixo, Clarinhas, Biscoito da Teixeira...

Era a António Monteiro que a encomenda dos pastéis era dirigida. E este até a recebeu. Só que António Monteiro não comeu pastel algum. Aliás nem sequer os guardou para um momento em que lhe chegasse o apetite ou mais propriamente a gulodice. Ofereceu-os de imediato aos colegas. E assim os cinco pastéis enviados a António Monteiro acabaram a ser partilhados entre os outros cegos. Na verdade, partilhados é um modo de expressão, pois só Tiago comeu três. Os outros dois pastéis foram divididos e repartidos por vários dos cegos. Entre os que couberam a Tiago estava o veneno.

A solução está no destinatário ou no remetente?

Mas toda esta explicação não resolve a questão-base: quem quereria fazer mal a um homem cego que para mais vivia num asilo? Tanto dava que ele se chamasse ele Tiago ou António…

Outra vez o embrulho desvendava e acrescentava o enigma: a encomenda tinha um destinatário – António Monteiro – mas também tinha um remetente: Joaquim Moreira. Morada: Asilo-Colégio do Sagrado Coração de Jesus, Rua de São Dinis, Porto.

Décadas antes este colégio andara nas bocas do mundo e na barra dos tribunais (chegou ao Tribunal de Haia) por causa da contenda entre as religiosas que nele trabalhavam e o Estado português que o confiscara após a implantação da República. Admitamos contudo que em 1948, no Asilo-Colégio do Sagrado Coração de Jesus já poucos se lembrariam da paixão com que anos antes se discutira, primeiro, o fim das ordens religiosas e, depois, o seu regresso. Mas do que ninguém se lembrava mesmo era do tal Joaquim Moreira. Entre os alunos, professores e demais pessoal do Asilo-Colégio do Sagrado Coração de Jesus não constava Joaquim Moreira algum. Logo a identidade do remetente da encomenda era falsa.

Restava apenas uma pista: o António Monteiro. Deixada a pergunta óbvia – Porque quereria alguém matá-lo? – passou-se para a bem mais rebuscada: havia quem beneficiasse com a morte daquele cego que vivia no Asilo de Cegos Pereira de Lima? Havia.

António Monteiro era cego, vivia num asilo mas nada disso impedia que herdasse em igualdade de circunstâncias com os seus outros parentes. E foi precisamente um destes parentes que inconformado com aquilo que considerava ser um "desperdício" da herança resolveu desembaraçar-se de António Monteiro.

António Monteiro era cego, vivia num asilo mas nada disso impedia que herdasse em igualdade de circunstâncias com os seus outros parentes.

E foi precisamente um destes parentes que inconformado com aquilo que considerava ser um “desperdício” da herança resolveu desembaraçar-se de António Monteiro.

Para tal concebeu um plano que lhe pareceu perfeito: comprou veneno para ratos. Numa confeitaria do Porto adquiriu cinco pastéis. Em seguida introduziu o veneno em alguns deles. Depois embrulhou-os meticulosamente de modo a que chegassem em condições a quem de direito.

Passo seguinte, no destinatário escreveu: António Monteiro, Asilo de Cegos Pereira de Lima, em Gaia. No remetente: Joaquim Moreira, Asilo-Colégio do Sagrado Coração de Jesus, Rua de São Dinis, Porto.

O plano parecia perfeito. Mas quem o urdiu desconhecia um dado essencial: o seu parente António Monteiro não gostava de pastéis.

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