A estratégia está bem definida: a saúde mental dos doentes surge no topo das prioridades no “Hospital Amigo dos + Velhos”, o nome do projeto desta unidade. Por norma, os pacientes chegam ao Hospital Arcebispo João Crisóstomo, em Cantanhede, depois de internamentos prolongados e com pouca autonomia, terrenos férteis para que a tristeza e a depressão se instalem. Depois o estado mental é avaliado, acompanhado, cuidado. Se não estão bem, não recuperam bem. E a família é chamada para reuniões, onde se ajustam expetativas e se reduzem níveis de ansiedade. Cuidar da saúde mental em toda a linha é um dos maiores propósitos.
“A perda de autonomia leva a estados depressivos e para trabalharem a parte física têm de estar bem a nível emocional”, diz Inês Gaspar, fisioterapeuta, atenta aos doentes que estão no ginásio. Por norma, pacientes com pouca mobilidade. Um doente desmotivado não tem resultados visíveis, garante. “Os fins de semana terapêuticos são muito importantes na parte física, confrontam-se com dificuldades que vão encontrar em casa, como entrar na banheira, levantar-se do sofá que é baixinho. São essas dificuldades que nos trazem, e que parece que não são nada, que nos vão ajudar a reajustar, se for preciso, os objetivos terapêuticos para aquela pessoa”. Cada um tem as suas expetativas. “Para muitos, não é importante ir ao café ou fazer uma corrida de cem metros, só se querem levantar para ir à casa de banho sozinhos. É importante perceber à entrada o que pretendem com este internamento, se é voltar à hidroginástica, se é ir à aula de pilates, ou só ver a horta.”
É segunda-feira e Maria Manuela Andrade chegou há pouco do fim de semana terapêutico que passou em casa, em Quiaios (Figueira da Foz). O marido e a sobrinha deixaram-na no Hospital de Cantanhede, onde recupera de um Acidente Vascular Cerebral, depois de 15 dias internada no Hospital da Figueira da Foz. Não foi fácil. A tensão arterial começou a subir, chegou aos 17,3 a máxima, aos 13,5 a mínima, as duas quase coladas, não queria acreditar. “Fiquei mais do que assustada”, admite. Sentiu o braço esquerdo a perder força, ligou para o 112, respondeu ao que lhe perguntaram, a ambulância chegou, viu a vida andar para trás. Lado esquerdo do corpo afetado, o braço e a perna, a angústia a roer por dentro.
Maria Manuela tem 76 anos, está melhor, já levanta o braço quase até à altura do ombro, move-se de andarilho, espera ficar bem para voltar para casa. No quarto do rés-do-chão do hospital, na ala verde, número da cama do lado de fora com algarismos que se veem à distância, abacate na porta, vestida com a roupa de casa, agradece ter vindo parar a esta unidade de convalescença. “Tem sido muito bom em tudo, na comida, na assistência, na fisioterapia. Estou muito contente, agora sinto-me mais à vontade.” A colega de quarto é simpática, dão-se bem, almoçaram na mesma mesa, telefona às amigas quase todos os dias, no fim de semana desfez saudades do cão, Fadista, que não a largou. “A ganir à volta de mim, tinha muitas saudades minhas.” Os dias em casa dão-lhe fôlego para recuperar no hospital.
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Maria Afonso está há uma semana no Hospital de Cantanhede. Foi operada à perna esquerda, é o primeiro dia de ginásio, está deitada, pernas esticadas, levanta a esquerda, consegue, anda sozinha com apoio da bengala. “Não tenho dor deitada”, diz. Tem 87 anos, escorregou e caiu na casa de banho da casa da filha, com quem vive. “Já tinha partido a perna esquerda há muitos anos”, recorda. Outro problema é a cabeça, esquece-se muito das coisas. “Olhe, já não sei”, vai dizendo. Em tempos, o médico explicou o que lhe aconteceu. “Esqueço-me de tudo, esqueço-me de tudo, o doutor disse que há umas coisas que morreram no meu cérebro.”
No antigamente, há memórias, o marido que partiu demasiado cedo, os tempos em que andava atrás dos comboios, a abrir e fechar cancelas, a guardar ovelhas no campo. Agora é complicado. “A minha vizinha, que é da minha idade, tenho dois dias a mais do que ela, lembra-se de tudo. Eu já não me lembro do que estava a dizer, vou para casa, e já não me lembro do que me dizem. É assim a vida.” Lembra-se que chegou ali numa ambulância. “Têm-me tratado muito bem. Tomara eu voltar a andar, mas já não torno a andar como antigamente.”
Raúl Cupido, de 94 anos, também está no ginásio, na cadeira de rodas. Ouve mal, muito mal. É de Mira (Coimbra), vive com a irmã de 97 anos. Daqui a pouco vai começar mais uma sessão de fisioterapia no espaço com espelhos ao fundo, equipamentos ao dispor. Há senhoras que fazem exercícios de mobilidade. O senhor Raúl, como é tratado, espera pela sua vez. “Caí no quarto de banho.” Fraturou a anca, já tinha alguma dificuldade de mobilidade, foi operado, esteve internado em Ortopedia em Coimbra, veio convalescer para Cantanhede. “Isto vai devagar, com exercício, com comprimidos quando está a doer mais.”
A análise do estado emocional é um dos níveis do projeto “Hospital Amigo dos + Velhos” do Hospital de Cantanhede, formalizado em abril de 2021, que dá continuidade a um trabalho de boas práticas que já vinha a ser feito. Todos os pacientes são sujeitos a uma avaliação da situação emocional para prevenir, diagnosticar e tratar doenças como a depressão, estados confusionais, demências. Os cuidados adaptados aos mais velhos baseiam-se na metodologia 4M, do Institute for Healthcare Improvement, que adota métodos de melhoria no que diz respeito à saúde mental.
Há pormenores que fazem diferença. As alas têm linhas verdes e vermelhas no chão, as portas dos quartos têm frutos, há relógios para melhor orientação. As janelas opacas foram substituídas por películas que permitem ver de dentro para fora e não de fora para dentro. Estimula-se o uso da roupa de casa para não andar de pijama o dia todo e não deixar passatempos como ler e fazer renda ou croché. Permitem-se passeios no espaço exterior e visitas de animais de estimação. Nesta altura, moldam-se e cortam-se enfeites de Natal. Há atividades de estimulação cognitiva e exercícios de mobilidade fora quando o tempo permite. Há tablets de última geração para comunicações à distância. O Hospital de Cantanhede, garantem os responsáveis, é a primeira instituição pública portuguesa e a segunda na Europa, depois de uma unidade hospitalar na Irlanda, a ser incluída na lista de práticas de saúde amigas do idoso do Institute for Healthcare Improvement.
A metodologia assenta numa intervenção a partir de quatro elementos: a motivação, a medicação, a mobilidade, o estado mental. A equipa reúne-se à terça-feira para avaliar a condição e evolução dos doentes internados. Enfermeiro, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, uma pessoa do ginásio, psicólogas, pessoal médico, assistente social, farmacêutica. Todos conversam. Este ano, no rastreio cognitivo, 35,5% dos doentes foram considerados elegíveis para aplicação do MoCA, sistema de avaliação cognitiva, e todos eles, cem por cento, apresentaram pontuação que sugere a presença de défice cognitivo. Dos 51,9% em que se aplicou a escala geriátrica de depressão, verificou-se diagnóstico da doença em 60% dos homens e 33,4% das mulheres. Nos últimos três anos, a média de idades dos doentes do hospital é de 79 anos.
“Muitos já têm diagnóstico de demência e aí vamos intervir em termos de terapia ocupacional, estimulação cognitiva, quer pela terapeuta ocupacional, quer pelas psicólogas”, diz Teresa Vaio, diretora clínica do hospital. A equipa conta com o apoio de um psiquiatra do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra. “A avaliação do estado mental é feita de forma multidisciplinar”, garante. O doente chega, olha-se para a tabela terapêutica, ajusta-se a prescrição de fármacos. “Muitas vezes, a medicação é excessiva”, refere Teresa Vaio que recorda a doente que quase não reagia, com vários medicamentos, entre os quais benzodiazepinas (ansiolíticos e hipnóticos), que chegou completamente desidratada e a quem foi retirada a medicação. E melhorou.
Diana Vilela Breda, presidente do conselho diretivo do hospital, recorda outro caso. “O nosso ‘recordista mundial’ é o senhor António, a quem retirámos dez medicamentos. Obviamente uma pessoa sobremedicada, nomeadamente quando entramos nas benzodiazepinas e ansiolíticos, não tem grande performance em termos físicos, em termos cognitivos e intelectuais.” A responsável realça o tratamento personalizado e a adaptação da intervenção não só física como mental. Está tudo interligado. A motivação, a hidratação, a medicação, a recuperação. “A saúde mental é uma das componentes que medimos porque é importante e para provar o impacto nas pessoas”, garante.
Perceber inquietações, gerir expetativas, preparar altas
Nessa segunda-feira de manhã, João Paulo Pereira, enfermeiro gestor da unidade da convalescença, especialista na área de saúde mental, e Maria Alves, psicóloga, estiveram com o filho de um doente que veio da psiquiatria de outro hospital, quase uma hora a preparar a alta, a falar de mecanismos de apoio na comunidade, como uma equipa de saúde mental de proximidade pode monitorizar e dar uma resposta perto de casa. Suportes que o filho desconhecia. “Estamos a falar de um projeto de vida. Todos partilhamos e tentamos fazer pontes para que este homem retome a vida laboral”, diz o enfermeiro que, há algum tempo, pediu a esse filho que trouxesse a prótese dentária do pai que não usava há algum tempo. “Uma coisa tão simples e que acaba por ser impactante.” Que mexe com a autoestima.
João Paulo recorda o caso da filha que pediu ao pai para apagar a luz e ele subiu a um escadote e tirou a lâmpada. A história da senhora que estava preocupada com a porca que tinha em casa, com medo que morresse à fome, quando os filhos desconheciam a existência do animal. “Muitos filhos não têm a perceção da saúde mental dos pais porque vivem longe, porque não se veem regularmente, apercebem-se de pequenas falhas, mas não associam a demência porque são idosos funcionais no seu espaço, têm uma série de rotinas.” Conversar é fundamental. “É importante trazer a família às reuniões e consciencializar que há uma alteração do ponto de vista cognitivo”, descreve o enfermeiro.
As reuniões familiares têm impacto na saúde mental. Na primeira semana, tenta-se ajustar expetativas, depois prepara-se a alta. “Muitas vezes, a dependência é também um turbilhão na vida dos filhos. A reunião familiar permite explicar que há estratégias na comunidade, apoio domiciliário, centro de dia, tranquilizar os filhos, baixar os níveis de ansiedade, encontrar respostas de futuro”, observa o enfermeiro João Paulo.
Artur Carvalhinho, enfermeiro diretor do hospital, destaca essa envolvência da família e do cuidador durante o internamento e mesmo depois disso. “Os familiares vêm cá, apresentam as suas dúvidas, fazemos os ensinos que são adequados à manutenção da prestação de cuidados, e fazemo-lo, inclusive, nas situações em que se aplica, o acompanhamento após alta. Fazemos visitas domiciliárias, verificamos se a casa do utente está adaptada, temos intervenção do serviço social que auxilia nestes esclarecimentos, o que são os serviços da comunidade, verificar se é preciso mais alguma coisa”. Tudo conta, tudo ajuda, mesmo que pareça pouco. “É fundamental para a saúde mental das pessoas sentirem esse acompanhamento e não estarem isoladas numa cama.”
Sara Silva, terapeuta ocupacional, escuta desabafos e vê corações apertados, lágrimas nos olhos. “Muitas vezes, têm uma vida e uma história familiar e social complexas. São pessoas envelhecidas, mas têm filhos ao seu cuidado, um marido que é o cuidador, tudo isso as preocupa”, adianta. E a tristeza dá de si num tempo de reabilitação, nesses dias longe de casa, de desassossego e inquietação perante uma realidade que, muitas vezes, deixou de ser a realidade de antes. “Às vezes, estão chorosos, ansiosos, muito preocupados com a vida lá fora que não conseguem controlar porque estão internados, porque têm a sua situação de dependência associada, e tudo isto é muito difícil de gerir e vai influenciar a sua reabilitação e sua participação”, diz a terapeuta. Por isso, o cuidado com o estado mental no processo de recuperação.
Maria Alves, psicóloga, não esquece a história de um senhor de 66 anos que ainda hoje bate à janela do hospital para visitar quem cuidou de si. Um homem autónomo, cognitivamente bem, caiu de uma árvore, politraumatismos, esteve muito tempo internado. Muita ansiedade, muita angústia, dizia que não conseguiria voltar a andar. Sentia falta dos passeios que, todos os dias, dava na praia. Maria Alves propôs-lhes um acordo. Quando voltasse a caminhar na praia, trazia-lhe areia. Um ano depois, ele voltou para pagar a promessa, não com areia, mas com um vídeo a caminhar na praia.
“As pessoas não são números de camas”
Da parte da tarde, Maria Manuela tem mais uma sessão de fisioterapia. Sente-me bem para recuperar e afasta a tristeza da situação para longe. Logo ela que antes do AVC fazia ginástica duas vezes por semana e semeava o quintal de alto a baixo com feijão, batatas, couves para o Natal. “Não me deixo muito ir abaixo, tenho medo de cair e perder a moral”, diz. Está bem-disposta, fala regularmente com o filho e a filha que estão no Luxemburgo, sempre a perguntar-lhe como está, para ter cuidado. “Quando conseguir andar sozinha, sem nada, talvez para abril já possa semear uns feijões e umas batatas.”
O senhor Raúl gosta de visitas e o sobrinho-neto, Miguel, cozinha bem. De vez em quando traz-lhe uma caldeirada de peixe de que tanto gosta. A possibilidade de saborear uma refeição trazida de casa é uma das possibilidades do Hospital de Cantanhede.
A fisioterapeuta Inês Gaspar lembra-se, entretanto, do homem que sofria de esquizofrenia, que se viu refletido no espelho do ginásio, sem saber que era ele. Primeiro, ficou muito agitado, depois mais calmo, ao perceber que aquele reflexo que fazia exatamente os mesmos movimentos era, afinal, ele. E contou que no hospital, onde tinha estado internado antes de Cantanhede, tinham-lhe cortado o cabelo e ainda não se tinha visto ao espelho e, por isso, não se tinha reconhecido. “As pessoas não são números de camas”, diz Inês Gaspar.
“Trabalhar a saúde mental neste hospital é transversal a todos os serviços”, diz Maria Alves. A intervenção não pode ficar pela rama, é preciso ir mais fundo, falar com o doente, com a família e cuidadores, a equipa à volta, auxiliares também. “A avaliação da saúde mental neste hospital começa pelo acolhimento, ter alguém que chega e que pergunta ‘como é que vocês estão?’ que os recebe, que lhes diz bem-vindos, que os trata pelo nome, que sabe quais as preocupações e as necessidades”, especifica a psicóloga. O facto de o hospital ser pequeno ajuda, são 30 camas de convalescença e 18 de paliativos. “É importante perguntar ao doente o que lhe está a fazer falta, o que o incomoda, o que quer no internamento, o que quer no futuro, qual é o objetivo, e trabalharmos todos nesse sentido, não só naquilo que queremos para o doente, mas naquilo que é importante para ele ou para ela, naquilo que são os objetivos deles”, sublinha.
Mariagiulia Galluzzo, psicóloga estagiária, aborda a intervenção feita e que abrange várias dimensões. Estimulação cognitiva, articulação com o ginásio, programas individualizados, técnicas de respiração que auxiliem episódios de ansiedade, gestão de quadros depressivos por várias razões, desde o estar afastado da família, aos custos de transporte que impossibilitam visitas. Um caso: um doente muito ansioso dependente de oxigénio, muito agitado, desabafa que precisava de oxigénio móvel para ir fazer as suas compras. Tão simples quanto isso. A situação foi resolvida. Se o doente gosta de ler ou fazer desenhos tem livros, lápis, marcadores e papéis.
Carolina Ferreirinha, também psicóloga, está nos cuidados paliativos, e fala de desafios diários. “Não é fácil dar notícias de que as coisas não estão bem e que podem não melhorar, trabalhamos essas expetativas com os utentes e com as famílias, tentamos trazer-lhe o conforto de casa”.
O projeto “Hospital Amigo dos + Velhos” abrange todas as valências da unidade hospitalar. Na avaliação da jornada emocional do doente, são identificados pontos fracos e oportunidades de melhoria. É um processo em constante evolução. O enfermeiro João Paulo alerta que é urgente encontrar respostas neste país de velhos não negligenciando a saúde mental.
Doentes motivados não só recuperam mais rápido, como ficam menos dias internados. “Estamos a matar moscas com uma bomba nuclear. As pessoas não precisam de grandes instituições com hiper tecnologia – precisam, mas são muito poucas as que precisam dessas coisas. A maior parte precisa de proximidade, de poder ir a um médico rapidamente, e de não sair de um hospital mais doente do que entra”, conclui Diana Vilela Breda, presidente do conselho diretivo do hospital que cuida da saúde mental dos mais velhos.
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