Uma legislatura “complexa” com negociações a acontecer “diariamente”. Após um “trabalho” que Pedro Sánchez definiu como “duro” ao longo destes meses para conseguir ser reeleito chefe do governo espanhol, o secretário-geral do PSOE não vai ter, a partir desta quinta-feira, data da sua investidura, uma tarefa fácil. Muito pelo contrário. Num contexto internacional incerto, o socialista vai de ter conjugar interesses muito distintos para conseguir gerir a megacoligação de oito partidos, alguns independentistas.
No quartel-general socialista, apesar de tudo, espera-se que esta legislatura seja estável e que dure quatro anos. O PSOE acredita que será possível manter a unidade entre os oito partidos, apostando no argumento de que não há alternativa: ou apoia-se um governo liderado por Pedro Sánchez, ou convocam-se novas eleições, que poderão dar a vitória ao Partido Popular (PP), que, por sua vez, se aliará ao VOX.
Com esta estratégia — de colocar os parceiros governativos entre a espada e a parede — Pedro Sánchez espera continuar a convencer os parceiros da sua megacoligação. Contudo, nem todos os seus aliados se importam com o que o PSOE define como a “direita reacionária”. Alguns querem apenas fazer avançar a sua agenda própria, nomeadamente os partidos independentistas catalães e bascos, que desejam livrar-se do jugo da coroa espanhola.
Atenta a tudo o que acontece entre os partidos da coligação, a direita espanhola promete continuar nas ruas e manifestar-se contra a lei da amnistia e um possível referendo na Catalunha, mantendo uma réstia de esperança de que os parceiros de Pedro Sánchez se desentendam e que isso origine a convocação de novas eleições. Mostrando-se até ao momento unidos contra o governo liderado pelos socialistas, o PP e o VOX vão lutar não só nos tribunais, como também na Europa.
Os desafios internos — e dois referendos na calha
Indo desde a direita independentista catalã até à extrema-esquerda, a megacoligação de Pedro Sánchez abarca uma série de diferentes ideologias. Na intervenção que fez esta quinta-feira no Senado, o socialista disse que a prioridade económica e social passa por “reduzir as desigualdades”, um princípio orientador que praticamente os oito partidos apoiam. Porém, esse está longe de ser o principal desafio desta legislatura.
A vontade independentista das forças bascas e das forças catalãs será um dos principais desafios internos de Pedro Sánchez. Após ter ameaçado obstaculizar a investidura do socialista, o Junts per Catalunya acabou por dar luz verde à reeleição do chefe do governo espanhol, mas deixou vários recados. Em entrevista esta quinta-feira à RAC, uma rádio catalã, a porta-voz do partido de Puigdemont, Miriam Nogueras, assinalou que as negociações serão “diárias” e advertiu: “Com cada acordo que se cumpra, a Catalunha tem de estar mais perto da independência.”
Para debaterem os próximos passos de como será o governo, a primeira reunião entre o PSOE e o Junts terá já lugar este mês. Na agenda, confirmou esta quinta-feira Miriam Nogueras, estará o referendo e o pacto fiscal da Catalunha. A Esquerda Republicana Catalã fará exigências semelhantes a Sánchez.
Dentro do horizonte temporal da próxima legislatura, estão ainda as eleições regionais catalãs, que ocorrerão em 2025. Antagónicos dentro da Generalitat, os dois partidos alimentam uma rivalidade não só entre si, como também com os socialistas, para futuros ganhos eleitorais locais, como nota o diário 20 minutos. Além disso, o Partido Socialista da Catalunha, homólogo do PSOE na região, tornar-se-á igualmente um alvo a abater — e a instabilidade no governo espanhol poderá ser uma forma de garantir votos daqui a dois anos.
Em igual clima de competição eleitoral, com eleições em meados de 2024, está o País Basco. Na coligação do socialista estão dois partidos regionais distintos: o Partido Nacionalista Basco (PNV), mais de centro, e a coligação Eh Bildu, de esquerda. Rivais no governo basco, as duas forças partidárias poderão tentar obter ganhos eleitorais junto a Pedro Sánchez. Porém, há um risco menor quando comparado com a Catalunha, uma vez que, no último ato eleitoral regional, os dois partidos já apoiavam os socialistas.
Ainda que de forma mais discreta, os dois partidos também defendem a independência do País Basco. Ainda no debate desta quinta-feira, a porta-voz parlamentar da Eh Bildu, Mertxe Aizpurúa, frisou que o voto a favor na investidura não é um “cheque em branco”, pedindo “coerência” ao socialista. A deputada sublinhou que este futuro governo abrirá um “compromisso histórico plurinacional de carácter progressista”, que terá de gerar um debate que aborde o “reconhecimento dos povos”.
“O País Basco quer decidir o que quer ser”, insistiu a deputada basca, sem falar abertamente num referendo, argumentando que “quando se fala de acordos e liberdades, ninguém perde, ainda que sejamos conscientes das dificuldades e dos obstáculos”. Seguindo o mesmo raciocínio, o PNV apelou à “autodeterminação” do País Basco. “Vamos defender o nosso autogoverno com unhas e dentes, ainda que fiquemos sozinhos”, assinalou o porta-voz do partido basco, Aitor Esteban.
Perante o independentismo dos partidos catalães e bascos que fazem parte da sua coligação, Pedro Sánchez terá de caminhar sobre gelo fino na gestão das dinâmicas com — e entre — aquelas quatro forças, que poderão igualmente entrar em competição entre si.
A tensão entre Sumar e Unidas Podemos
Desde que Yolanda Díaz assumiu o leme da esquerda à esquerda do PSOE, ocupando o papel do antigo líder Pablo Iglesias, o Sumar e o Unidas Podemos tiveram uma relação tensa. Contudo, depois do desaire eleitoral que a esquerda sofreu nas eleições regionais de 28 de maio, o Unidas Podemos aceitou, mais que não seja temporariamente, o domínio de Yolanda Díaz, amparada pelos bons números que o Sumar foi obtendo nas sondagens.
Com uma figura mais polida e menos radical do que Pablo Iglesias, Yolanda Díaz foi conquistando um espaço à esquerda, tornando-se a número dois do governo espanhol e muito próxima dos socialistas. Tendo igualmente participado nas negociações com os partidos independentistas, a líder do Sumar quer agora recolher os louros — e chamar para perto de si pessoas da sua confiança, de que não fazem parte membros do Unidas Podemos.
A investidura de Pedro Sánchez foi um assunto que reuniu algum consenso, mas os problemas entre as duas forças de esquerda podem começar agora. Num editorial no jornal diario red, Pablo Iglesias deixou, esta quinta-feira, um aviso claro: se o Unidas Podemos não fizer parte do governo, é “óbvio” que o partido passa a ter uma “completa autonomia política e parlamentar”, isto é, passa a ser um grupo parlamentar próprio, separando-se do Sumar.
“Se se consumar o veto [de não estar no governo], Pedro Sánchez e Yolanda Díaz estão a assumir que os morados [designação de Unidas Podemos] vão seguir uma trajetória independente do novo governo PSOE-Sumar com todas as consequências políticas que isso acarrete”, ameaçou Pablo Iglesias, que também acusou a antiga aliada de estar demasiado próxima dos socialistas. Aliás, o antigo dirigente partidário chega mesmo a dizer que o novo governo deixará o Podemos com uma “larga avenida de esquerda para percorrer”, tentando assumir uma postura mais contestatária do que o Sumar.
Por sua vez, o Sumar tem tentado desvalorizar e atirado o assunto para debaixo do tapete. “Estamos convencidas de que o conjunto do grupo plurinacional Sumar, com todas as suas forças políticas, vai apoiar todos os acordos programáticas com o PSOE”, sublinhou Marta Lois, porta-voz do grupo parlamentar da coligação liderada por Yolanda Díaz.
Pablo Iglesias não parece, no entanto, tão confiante de que isso vá suceder, lembrando que esta nova maioria não será completamente “progressista e de esquerda”, já que requer o voto a favor de PNV e Junts, “dois partidos de direita no [âmbito] económico”. “Muitas das medidas que prometeu Sánchez no debate de investidura nem sequer poderão concretizar-se, pela falta de apoios. Diante dessa incapacidade para levar para a frente reformas económicas de esquerda, Yolanda Díaz terá de acompanhar discursivamente Sánchez, mas o Podemos não terá obrigação de fazê-lo”, atirou o antigo dirigente do partido.
Se esse cenário se tornasse realidade, e o Unidas Podemos formasse um grupo parlamentar autónomo, tornar-se-ia mais uma força com que Pedro Sánchez estaria obrigado a negociar. Tendo elegido cinco deputados, o partido é fundamental nas contas do socialista. Como tal, uma tentativa do Unidas Podemos de se distinguir da força do Sumar poderia abalar a unidade da megacoligação liderada pelo secretário-geral do PSOE — e colocar a legislatura em risco.
A direita contestatária
Queimando todas as pontes com a megacoligação, a direita vai tentar explorar todas as suas vulnerabilidades. E, usando o argumento de que a amnistia equivale a “traição” e à “venda” da soberania espanhola, Partido Popular e VOX vão empenhar-se igualmente em impedir que aquela lei seja aprovada, ainda que o panorama se revele muito difícil.
Há dois caminhos para a ação da direita. O primeiro passa pela contestação nas ruas, que já começou há cerca de uma semana, quando o PSOE chegou a acordo com os partidos catalães. À semelhança do que aconteceu no último domingo, Alberto Núñez Feijóo estará presente, no sábado, em Madrid, noutra manifestação contra a amnistia. Por sua vez, várias organizações ligadas ao VOX têm organizado diariamente protestos junto ao Congresso dos Deputados e à sede do Partido Socialista em Madrid.
Não tendo nenhum efeito prático na lei da amnistia, o PP procura outra arena para tentar impedir que a lei avance: o Senado. Na câmara alta do parlamento espanhol, em que os populares têm maioria absoluta, Alberto Núñez Feijóo tem tentado encontrar formas de impedir que aquela legislação vá avante. Até ao momento, o Senado apenas conseguiu atrasar em algumas semanas a aprovação da lei pelo Congresso, mas estão a ser estudadas alterações às funções do órgão, que poderão colocar novos entraves.
Os desafios externos — e a Europa
O Partido Popular tem tentado explorar outra via. Expondo as contrariedades da lei da amnistia, defendendo que o diploma viola a constituição, Alberto Núñez Feijóo tem-se esforçado para expor as contrariedades da lei a Bruxelas. Até ao momento, a ofensiva não teve grande sucesso e também não deverá trazer frutos no futuro.
No contexto europeu, no entanto, há eleições em junho de 2024 — precisamente para eleger os deputados do Parlamento Europeu. E isso pode significar uma dor de cabeça para Pedro Sánchez ou, em alternativa, reforçar a coligação. Como indica o jornal La Vanguardia, as eleições europeias serão uma espécie de plebiscito ao novo governo espanhol, podendo reformular a correlação de forças na política espanhola.
Para já, ainda não é claro, por exemplo, se o Sumar e o Unidas Podemos vão participar juntos ou em separado. Mas um eventual desaire ou sucesso retumbante nas eleições europeias pode ganhar uma leitura nacional. Por um lado, se o PP e o VOX obtiverem um bom resultado, a coligação de Pedro Sánchez poderá tremer e, eventualmente, um dos seus parceiros poderá tirar-lhe o tapete. Por outro, caso o PSOE e a esquerda tenham êxito, a liderança de Alberto Núñez Feijóo poderá tremer, com Isabel Díaz Ayuso, presidente da comunidade de Madrid, sempre atenta aos desenvolvimento no seu partido.
No plano internacional, existem duas guerras a complicar a conjuntura internacional. Ciente do impacto desses conflitos — entre Israel e o Hamas, no Médio Oriente, e entre Rússia e Ucrânia, em território europeu —, Pedro Sánchez dedicou parte do seu discurso de quarta-feira a abordar os problemas que o mundo enfrenta. Colocando-se inequivocamente ao lado da Ucrânia “na guerra começada por Putin”, a questão do conflito no Médio Oriente é mais sensível. Condenando “as ações terroristas” do Hamas, o socialista pediu simultaneamente um “cessar-fogo” imediato.
Certos partidos da megacoligação são mais sensíveis ao apoio à causa palestiniana do que outros, menos vocais. Por exemplo, na sua declaração na sessão de investidura, a porta-voz da Eh Bildu começou o seu discurso denunciando o que diz ser um “genocídio” na Faixa de Gaza. Mais: Mertxe Aizpurúa pediu mesmo que Pedro Sánchez usasse a sua voz na Europa, para que o Estado da Palestina seja reconhecido internacionalmente.
Ainda assim, não estando plasmadas em nenhum acordo, as diretrizes da política externa não deverão ser motivo de discórdia neste futuro governo. Uma vez que não são questões ideológicas que unem os oito partidos, o importante é que certos interesses, a maioria com um forte pendor regional, sejam tidos em conta. Prova disso é o facto de a Coligação Canária, um partido com apenas uma deputada no Congresso, ter votado a favor da investidura de Alberto Núñez Feijóo e agora também a favor da de Pedro Sánchez. Porquê? Porque ambos se comprometeram, segundo o partido, a cumprir com a “agenda canária”, transferindo mais fundos para a região e dando-lhe mais autonomia.
Cabe agora a Pedro Sánchez tentar moderar alguns dos desejos dos oito partidos ou satisfazê-los — e é desse frágil equilíbrio que dependerá o futuro da sua legislatura.