Há nove anos que Stephen Walker se debruça sobre os bastidores do programa espacial soviético na época da Guerra Fria. Tudo começou com um convite da Working Title Films, uma grande produtora britânica, para desenvolver um filme com os materiais mantidos em segredo pela União Soviética sobre a corrida ao espaço. Aceitou e viajou para a Rússia três vezes: “Conheci muita gente, entrevistei pessoas muito interessantes, algumas das quais entretanto morreram, mas que eram testemunhas chave para a história”, descreve.
Mas havia um problema: as gravações em busca das quais andava não eram suficientes para serem transformadas num filme. Aquelas que encontrou eram “incríveis”, mas muitas estavam perdidas, outras tinham sido destruídas e algumas foram encontradas completamente roídas por ratos e ratazanas nos recônditos arquivos que o premiado realizador de documentários tinha explorado.
A ideia ficou arrumada na gaveta até ao fim de 2018 ou início de 2019, quando Stephen Walker reencontrou o material que tinha recolhido, incluindo entrevistas de quem viveu mais de perto a história da missão de Yuri Gagarin ao espaço, e decidiu transformá-lo em livro. “Queria que fosse um tipo de livro muito especial”, confessa ao Observador: “Não só porque seria um livro para marcar o aniversário em abril do primeiro humano no espaço, mas também porque quis fazer as coisas como no último livro que tinha feito”.
Antes de “Beyond — The Astonishing Story of the First Human to Leave Our Planet and Journey into Space”, que o realizador gostaria de ver publicado em português, Stephen Walker tinha escrito um livro sobre o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima. A narrativa começa três semanas antes e divide-se entre o Japão, o Pacífico, a América ou a Alemanha, sempre em contagem decrescente. “É uma não-ficção, mas lê-se um pouco como se fosse ficção”, resume.
Foi também assim que nasceu a mais recente obra do realizador britânico, vencedor de um Emmy e de um BAFTA e nomeado para outros três. “Esta não é uma biografia do Yuri Gagarin ou nada que se pareça”, garante, numa chamada por Zoom: “Não queria fazer isso. Esta é uma história que começa em dezembro de 1960 e termina em abril de 1961”. É por esses quatro meses que o realizador nos leva nesta entrevista e revela não só como Yuri Gagarin podia ter ficado em segundo plano na corrida espacial, como a ida a Lua podia tão facilmente nunca ter acontecido. Bastavam 500 milissegundos para a história ser diferente.
O que acontece em dezembro de 1960 que conduz à primeira viagem tripulada ao espaço em abril?
O livro começa de forma bastante dramática, penso eu, com uma equipa de busca e resgate na Sibéria a trabalhar no meio de uma tempestade de neve, no meio de um mau inverno. Estão a tentar encontrar uma nave espacial algures na Sibéria porque dentro dela estão dois cães que vêm do espaço. Tudo tinha corrido mal neste voo espacial e eles acabaram por se despenhar na parte mais remota da Sibéria que se possa imaginar, no meio do inverno, com temperaturas a rondar os -40ºC. Mais: dentro da nave está também uma bomba, que está programa para detonar ao fim de 60 horas. O motivo para haver esta bomba é que o KGB na Rússia incorporava bombas nas naves que transportavam animais, no caso de, por erro, elas acabarem na América. A bomba explodiria para os americanos não conseguirem utilizar a tecnologia e os resgatadores estão em desespero para encontrarem a nave antes que ela se auto-destrua.
Porquê começar com este episódio?
Em parte porque é bastante dramático e é uma história que ninguém conhece realmente e eu tive testemunhos de pessoas que faziam parte destas equipas que tentaram salvar os cães. Mas também porque este foi um momento mesmo fulcral na decisão de enviar um ser humano ao espaço: estes voos com cães aconteceram para abrir caminho aos voos tripulados por humanos. E os soviéticos, nesse período de três ou quatro meses, decidiram assumir um risco enorme — porque era muito importante para eles serem os primeiros do mundo, serem os primeiros antes dos Estados Unidos, que também estavam a tentar colocar um ser humano no espaço. É por isto que, mesmo com as coisas a correrem mal, como aconteceu com estes cães — não lhe vou dizer como a história terminou! — eles decidem avançar. A corrida estava no seu pico: os americanos estavam desesperados para provar que eles eram a nação de topo, que eram os mais poderosos, os mais ricos e os mais bem sucedidos, que na Guerra Fria eles são o caminho para o futuro. E os soviéticos estão desesperadamente a tentar provar exatamente o oposto. Ou seja, em ambos os casos, chegar primeiro ao espaço não é só um triunfo tecnológico, não é apenas um triunfo científico. Nem sequer é apenas um triunfo ideológico. É literalmente sobre como o mundo vai mudar: ou vai para o lado da União Soviética comunista ou vai para o lado da América democrática. É só esta escolha que se faz em 1961. Ou seja, isto é sobre o futuro, o destino do planeta, ponto final. E é tão importante que os soviéticos começam a assumir riscos, riscos muito grandes. Na altura que lançam o Yuri Gagarin, a 12 de abril de 1961, havia uma possibilidade inferior a 50% de ele sobreviver.
Ele sabia dessa percentagem?
Sabia qualquer coisa, mas não sabia tudo. Isto é que é interessante: os astronautas americanos, chamamos-lhes os “Mercury Seven” [em tradução literal, “Os Sete da Missão Mercury”], eram sete astronautas escolhidos entre muitas centenas para serem os primeiros americanos a chegarem ao espaço. Estavam na casa dos 30 anos, eram pilotos de teste muito experientes e já tinham voado nos jatos mais novos, entusiasmantes e perigosos daquele tempo. Os cosmonautas soviéticos eram mais novos — estavam na casa dos 20 anos — e tinham muito menos experiência de voo. Eles estavam na Força Aérea, eram militares treinados para obedecer, enquanto a NASA era uma organização civil. Os cosmonautas eram pilotos inexperientes a quem não foi dito tudo sobre as naves que pilotavam. E, na verdade, nem sequer isso faziam porque o trabalho deles eram sentarem-se e aguentarem o que acontecesse. Ninguém sabia exatamente o que ia acontecer.
Porque é que os soviéticos preferiram esta abordagem de secretismo e porque é que os americanos não optaram pela mesma estratégia? Afinal, havia tanto em jogo…
São diferenças culturais e políticas. Tinha havido alguns debates sobre manter os lançamento secretos na América, mas isso era impossível. E o próprio Kennedy, que tinha chegado à presidência há muito pouco tempo, tinha sido empossado em janeiro de 1961, insistia muito que tudo devia ser aberto, até mesmo os erros, porque era o sinal que se mandava ao mundo: aquele era um mundo livre, era uma democracia com imprensa livre. O problema disso era que, se tudo corresse mal com um humano a bordo, tudo corria mal à frente de 80 milhões de telespectadores americanos que assistiam a tudo em direto. O verdadeiro perigo era que isto podia explodir com um americano lá dentro e isso seria uma tragédia colossal, não só para o homem a bordo, como para o programa espacial e para os Estados Unidos como um todo. Era por isso que havia esta pressão tremenda para tentar e assegurar que tudo estavam o mais próximo que podia estar de funcionar, mesmo nunca se tendo a certeza absoluta porque tudo era terrivelmente perigoso. Isto significa que os americanos jogaram pelo seguro, um pouco. Mas só um pouco, só o suficiente, porque em fevereiro e março de 1961, os americanos começaram a falhar e estavam hesitantes em pôr um homem no espaço — algo que originalmente devia ter acontecido em março. Estavam hesitantes.
O que aconteceu?
Se voltarmos atrás um pouco, e isto também está no meu livro, para janeiro de 1961, duas semanas depois de Kennedy se ter tornado presidente, houve um voo experimental projetado na América e que deveria ser uma réplica precisa, um ensaio geral, do primeiro voo tripulado americano. Lá dentro, em vez de um homem, puseram um chimpanzé. E o chimpanzé foi lançado num foguete em janeiro de 1961. Embora o voo tenha sido apresentado essencialmente como um sucesso, não foi assim tão bem sucedido: o combustível esgotou mesmo, mesmo, mesmo antes do que era suposto. Isso fez com que o foguete fosse demasiado rápido, em direção ao espaço, e voltasse demasiado rápido. Para quem estava lá dentro, foi uma viagem terrível, foi assustadora. Acabou muito longe do trajeto inicial, no meio do Oceano Atlântico. A cápsula começa a afundar com o chimpanzé lá dentro e só no último momento em que os navios americanos conseguiram alcançá-lo e recuperá-lo. Deram-lhe uma maçã e o chimpanzé saiu com um grande sorriso no rosto. Mas uma das maiores especialistas em primatas do mundo, a Jane Goodall, descreveu aquele sorriso como a coisa mais extremamente aterradora que ela alguma vez viu num chimpanzé. Aquela viagem não tinha corrido bem, tanto que, quando o tiraram para fotos e os fotógrafos queriam tirar fotografias para os artigos, o chimpanzé bateu-lhes. Estava muito perturbado, muito stressado. Então, pronto, foi preciso tomar uma decisão. Alan Shepard, que foi o astronauta que mais tarde foi enviado para a Lua na missão Apollo 14, estava desesperado por voar. Estava preocupado e ansioso por causa dos russos, os soviéticos estavam a aproximar-se. Ele só dizia: “Vamos fazer isto, eu estou pronto, vamos”. Mas havia vozes dentro da NASA, e disseram isto ao próprio Kennedy, que diziam que, se alguma coisa corresse mal, isto seria — e aqui estou mesmo a citar — “o funeral público mais dispendioso da História”. É um pouco puxado pensar nisto, mas, se o combustível se tivesse esgotado meio segundo mais tarde, não haveria missão abortada e o Alan Shepard seria o primeiro, Yuri Gagarin seria o segundo e, assim, dificilmente Kennedy aceitaria gastar o que lhe disseram para gastar — 40 mil milhões de dólares naqueles dias — para pôr um homem na Lua. Tenho a certeza: não haveria razão nenhuma para isso porque os soviéticos não queriam ir à Lua. Não existiria Neil Armstrong, nem nenhum “grande passo para a humanidade”.
Os soviéticos aperceberam-se desse nervosismo dos americanos?
Estes atrasos estavam todos a ser apanhados pelos soviéticos, que estavam a espreitar em segredo atrás da Cortina de Ferro. Mas os americanos decidiram mesmo adiar e, em vez do voo do Alan Shepard, enviaram um voo com um robô a bordo só para ver se o foguete funcionava. E os soviéticos viram aquilo e pensaram: “Este é o nosso momento. Temos umas três semanas antes de os americanos lançarem um humano, temos de fazer isto”. Num espaço de três semanas, fizeram dois voos de ensaio e a seguir enviaram o Yuri Gagarin. Foi incrível: lançaram-no apesar de muitos dos sistemas a bordo da nave Vostok não terem sido testadas, literalmente. Mas voltando ao que o Gagarin sabia e não sabia: ele sabia algumas destas coisas, mas não sabia, por exemplo, que se aterrasse no mar por engano — porque era suposto ele aterrar em terra firme, como o Soyuz hoje em dia — não havia hipótese nenhuma de ser resgatado pela Rússia. Não haveria ninguém para o ir buscar. Além disso, o bote que ele tinha iria afundar: não era estável, tinha falhas, não funcionava como deve ser. Ele sabia que, se houvesse um problema com os foguetos retropropulsores e ele não pudesse voltar, a forma alternativa de chegar a casa era deixar que a órbita baixasse lentamente ao longo de 10 dias, iria orbitar em torno do planeta até entrar gradualmente na atmosfera. Mas não sabia que havia um sistema, o sistema ambiental no interior da cápsula, que o iria envenenar ao longo desse tempo e que ele iria morrer. Ou seja, ele não teria possibilidade nenhuma de votar, mas achava que sim. Ou seja, se um destes retropropulsores com um botão, que se ligava automaticamente, não funcionasse, era um homem morto. Mas tinham de o enviar, porque os americanos já falavam de enviar o primeiro americano a 25 de abril.
Temos falado desta competição entre União Soviética e Estados Unidos, mas havia alguma competição entre os cosmonautas também?
Sim, muito. O que aconteceu é que 20 cosmonautas foram selecionados no início de 1960 — 20 em cerca de 1.500. E seis foram selecionados para serem os primeiros, porque havia um tempo limitado no simulador e precisavam de prioritizar de modo a baterem os americanos. E também soava bem, porque nos Estados Unidos tinham os Mercury Seven e ali tinham os Vanguard Six — a diferença é que os primeiros eram famosos e os segundos eram segredo. A certa altura, os Vanguard Six vão sendo reduzidos até só restarem dois: Yuri Gagarin e Gherman Titov. O que torna a história deles muito, muito poderosa para mim é a dimensão humana: estes dois homens eram amigos muito próximos, vizinhos de porta com porta nuns pequenos apartamentos soviéticos, até tinham uma varanda partilhada que atravessavam para um lado ou para o outro para beberem vodka. Então, o Gherman Titov e a mulher tiveram um filho, um menino de oito meses chamado Igor que morreu. O trauma foi tão grande que… na verdade, eu entrevistei o Gherman Titov e a mulher no ano passado em Moscovo e eles ainda não conseguiam falar sobre a morte do filho, um bebé. E os Gagarin eram muito próximos dos Titov e apoiaram-nos mesmo muito. Eles também tinham uma filha da mesma idade que o Igor. Tinham esta ligação incrível entre estas duas pessoas que são melhores amigas, mas têm esta tragédia no centro da relação… e ao mesmo tempo eram rivais.
Como é que o Titov reagiu quando soube que o Gagarin tinha sido escolhido, não ele?
O Titov ficou condenado a ser o número dois para o resto da vida, como o Buzz Aldrin. A decisão sobre quem seria o primeiro só foi tomada três dias antes do voo, a 9 de abril. É incrível quão tarde tomaram a decisão, andavam sempre indecisos entre um e outro. O que aconteceu no fim é que eles foram chamados a um escritório, do líder dos treinos de cosmonautas, e ele disse simplesmente: “Gagarin, tu vais primeiro. Titov, tu vais depois”. O Titov ficou devastado, ele achava mesmo que seria ele o primeiro. Saiu do escritório e apertou a mão ao Gagarin. Outro amigo dele, outro cosmonauta, aproximou-se dele e disse: “Ouve, não é assim tão mau ser o segundo homem no espaço. É ótimo! Vais a seguir”. E o Titov disse-lhe: “Quem foi o primeiro homem a descobrir a América?”. E este homem disse-lhe: “Cristóvão Colombo”. E ele disse: “E o segundo?”. “Não sei”, respondeu o cosmonauta. O Titov disse: “É essa a questão”.
Ficaria na sombra.
Sim. E, na verdade, devo dizer-lhe que, quando vi as filmagens que encontrei na Rússia — são imagens maravilhosas em bruto, sem edição, a cores do Titov —, a cara dele está… devastada. Ele olha para o horizonte, vê-se no rosto dele que o futuro inteiro dele mudou. Mas, até àquele último momento, ele esperava que o Gagarin ficasse em terra porque lhe tinha acontecido alguma coisa. Sei lá, que caísse ou tivesse um ataque de pânico. E era uma possibilidade real: na noite antes do voo, o Titov estava de prevenção e teve de partilhar com o Gagarin o quarto. Havia duas camas no quarto que ficava no complexo de lançamento de foguetes, a dois quilómetros da plataforma de lançamento. Debaixo das camas, debaixo de cada colchão, estavam uns sensores para medir o quanto eles se moviam durante a noite. Ou seja, ainda havia a possibilidade de, se o Gagarin se mexesse muito durante a noite e não dormisse bem o suficiente, o Titov ser escolhido para viajar em vez do Gagarin.
Significava que estava demasiado ansioso.
Pois, mas não estava… Quer dizer, ele estava ansioso, claro! Escreveu uma carta linda à mulher, na qual dizia que, se não voltasse a casa, não queria que ela vivesse uma vida de luto. Queria que ela saísse e encontrasse um novo marido, que tivesse uma vida. “Não quero que me chores para o resto da vida”, disse exatamente isto, pedindo-lhe que olhasse pelas crianças e lhes dissesse o quanto ele as amava. Estava obviamente assustado, quem não estaria? É aterrador: estava sentado no cimo de um míssil nuclear, mas sem a bomba. Aquilo podia voar desde a União Soviética até Nova Iorque com uma bomba a bordo que seria 200 vezes mais poderosa que a que destruiu Hiroshima. É disto que estamos falar. Mas, em vez de uma bomba, estava lá o Gagarin à espera sabe Deus do quê.
Mas porque é que escolheram o Gagarin e não o Titov?
Acho que ele foi escolhido porque a biografia dele era melhor. Os dois eram muito eficientes, à sua maneira. Eram os dois pilotos muito calmos, muitos bons, cada um à sua maneira. Mas o Titov era o filho de um mestre-escola, o que soa um pouco burguês. O pai dele era obcecado com o Pushkin e o Titov também era, costumava citá-lo a toda a hora. O Gagarin veio de Smolensk, uma cidade tradicionalmente russa na Sibéria. E o Titov tinha um filho morto, enquanto o Gagarin tinha duas filhas vivas.
O Gagarin tinha o modelo de família soviética perfeita, é isso?
Exatamente. O pai do Gagarin era um carpinteiro, um camponês. E o próprio Gagarin, antes de se tornar um piloto de voo e de ter treinado na Força Aérea Soviética, tinha aprendido o trabalho de metalúrgico, fazia coisas em ferro com uma formação numa escola industrial. Isto é puramente comunista. Além de que tinha um sorriso bonito, tinha maior facilidade em lidar com pessoas. O Titov não era tão fácil, era mais frágil e não gostava tanto de estar rodeado de pessoas. Gostava mais de estar na dele, até demais, sabe? Por isso, quem estivesse a olhar para as qualidades deles enquanto cosmonautas, eram as mesmas. Mas quem olhasse para as qualidades enquanto pessoas que seriam vendidas à União Soviética, ao mundo, o Gagarin era o escolhido. O próprio Titov compreendeu isso e disse: “O Gagarin tem qualidades que eu não tenho, consigo ver isso”.
E o Titov, alguma vez chegou a ir ao espaço?
Sim, foi em agosto de 1961 e deu 17 voltas à Terra. Sentiu-se mal, teve enjoos espaciais. Foi a primeira pessoa a tê-los.
Sempre foi o primeiro em alguma coisa.
Sim, isso é ótimo! Sou capaz de publicar isso no meu Twitter, gostei dessa perspetiva. Ele ficou muito, muito doente e isso foi mantido em segredo durante muito, muito tempo pelos soviéticos. Chegaram mesmo a ponderar trazê-lo de volta mais cedo porque ficou tão doente que não conseguia trabalhar. Hoje em dia, os enjoos espaciais são uma coisa bem conhecida e fazem-se exercícios para os melhorar. Mas eles não sabiam disso na altura. O Titov também se tornou a primeira pessoa a filmar a Terra do espaço. Eles não deram uma câmara ao Gagarin porque eram demasiadas funções, estavam preocupados que tudo o resto corresse mal. Não queriam que ele se sentisse mais pressionado para filmar o que estava a ver. Além disso, com o Gagarin foi só uma órbita, com o Titov foram 17, por isso ele tinha tempo. Ou seja, também se tornou o primeiro de sempre a captar imagens da Terra a partir do espaço. Eu vi essas imagens.
Como é que as descreveria?
São lindas! Eles todos aprenderam a filmar, fizeram exercícios e treinos com câmaras de cinema. A cor está bastante desmaiada. Mas vi-as num museu, um arquivo em Moscovo, quando andava à procura de material. De repente, aquilo aparece-me à frente — puxei um barril e lá estavam elas! Os materiais estão arrumados de um modo caótico, há coisas que nos podem escapar. Mas aquilo eu encontrei: as primeiras imagens da Terra gravadas do espaço.
Como é que os soviéticos abordaram a questão de como as viagens espaciais afetavam a saúde psicológica dos cosmonautas?
Eles estavam muito preocupados com uma coisa que se chamava “horror espacial”. Era uma expressão que existia mesmo e que significava o perigo de ficar louco quando se está sozinho no espaço, quando se está separado ou divorciado do mundo. A primeira coisa que os soviéticos fizeram foi treinar os cosmonautas numa câmara de isolamento, chamavam-lhe Câmara do Silêncio. Era uma câmara pressurizada, como são pressurizados os interiores das cápsulas. Eles entravam e eram fechados lá dentro por um número indeterminado de dias, chegava às duas semanas seguidas e os cosmonautas não sabiam. Tinham era de estar neste lugar sem enlouquecerem, nem entrarem em pânico. Às vezes, para tornar as coisas interessantes, os observadores que os acompanhavam através de óculos e de um circuito fechado de televisão davam-lhes puzzles, ligavam alarmes que apitavam de tempos a tempos, punham música muito alta, acordavam-nos enquanto dormiam — fosse dia ou noite, não importava. Era mesmo horrível. Eu visitei essa sala e é mesmo horrível, fica na terra natal do Gagarin. É mesmo pequenina e um espaço muito claustrofóbico. O que a torna ainda mais é assustadora é que um cosmonauta morreu lá dentro. Era o mais novo de todos e morreu queimado. O nome dele era Valentin Bondarenko. Estava lá há dez dias e teve de mudar os sensores que tinha na pele e que mediam o ritmo cardíaco e os elétrodos. E tinha um pedaço de algodão que estava ensopado em álcool para limpar a pele, mas atirou-o para trás dele. O algodão aterrou num fio elétrico e aquilo incendiou a sala. Como estava pressurizada, não conseguiram parar o fogo, nem conseguiram trazer o cosmonauta cá para fora. Não conseguiam abrir a porta.
Foi como aconteceu com a missão Apollo 1.
Exatamente como a missão Apollo 1. A diferença é que os soviéticos mantiveram este acidente em segredo durante 30 anos. Se tivessem dito ao mundo, é possível que o acidente da missão Apollo 1 nunca tivesse acontecido, aqueles homens não tinham de morrer. A outra coisa que eles faziam por precaução era bloquear os controlos manuais da cápsula. Fizeram com que fosse quase impossível para os cosmonautas tocarem em alguma coisa para controlar a nave. Mas havia uma reserva, havia uma forma de libertar os controlos manuais, só que eles estavam tão preocupados que o cosmonauta pudesse enlouquecer e fazer alguma coisa parva, como destruir a cápsula ou voar para a América, que fizeram o seguinte: bloquearam os controlos com um código com três dígitos, como o quarto de um hotel. O código era “1-2-5”, mas os cosmonautas não sabiam disso: os números foram postos num pedaço de papel, colocado dentro de um envelope selado e que foi colado ao revestimento no interior da nave. É uma loucura! A ideia era que se um cosmonauta, como o Yuri Gagarin, estivesse numa emergência, era capaz de chegar ao envelope, abri-lo, olhar para os números e colocá-los corretamente no sistema, mas só se não estivesse maluco. Era assim que eles achavam que iam parar uma pessoa louca de tomar controlo do computador. Era uma coisa muito soviética, uma loucura! Foi incrível escrever essa parte porque me pus a pensar: “Meu Deus, já imaginaste como seria se fosse assim na missão Apollo 11? Se, com aqueles controlos todos, os americanos colassem envelopes com códigos por toda a parte?”.
Qual era o estado de espírito do Gagarin nos momentos anteriores ao voo?
Eu acho que ele não devia estar bem por dentro, mas certamente parecia bem por fora. Houve um momento muito dramático, uma hora antes do lançamento, quando ele já estava sentado na cápsula, em que os engenheiros estavam a tentar arranjar a escotilha. O problema não foi consertado como deve ser, mas eles não percebiam se era um problema elétrico — só uma luz que indicava um problema, mas não havia problema nenhum — ou se havia mesmo alguma coisa errada que abrisse a escotilha no espaço e o Gagarin morria. Enquanto se tomavam estas decisões, os soviéticos reajustaram toda a escotilha… que é uma coisa maravilhosa, uma coisa tão russa e tão soviética, que máximo! Quer dizer, eles tiraram a escotilha, os engenheiros a trabalhar o mais depressa possível para voltar a montá-la, toda a gente a suar no bunker de lançamento, toda a gente nervosa: “Meu Deus, será que vamos fazer o lançamento a tempo?”. É que eles não queriam correr o risco de o foguete não aterrar dentro da União Soviética. Enquanto isto acontecia, o Yuri Gagarin começou a cantar uma coisa chamada “A Pátria Ouve”, que era uma música russa famosa daquela altura. Depois, diz assim no rádio: “Enquanto espero, alguém tem alguma música que eu possa ouvir?”. E, incrivelmente, encontraram uma música na sala de controlo, que era basicamente um bunker para ataques de míssil, e puseram-na a tocar. E o Gagarin ouvia e cantava — e isto tudo ouve-se nas gravações. É incrível. Quando o lançamento começou — lembre-se de que ele está em cima do foguete mais poderoso do mundo, é inacreditável —, os batimentos cardíacos dele dispararam para 158 batimentos por minuto. E é neste momento que ele diz aqueles famosas palavras que soam lindamente em russo: “Poyekhali!”, que significa: “Cá vamos nós!”. E lá foi ele. Ou seja, ele estava bem. Quer dizer, claro que estava nervoso, como ele mesmo confirmou mais tarde, mas não o iria demonstrar. Havia sempre a possibilidade de alguém dizer: “Vá, Titov, é melhor ires tu”. E a história seria diferentr, o Gagarin perderia esta oportunidade de ser imortal. Mas tudo isto aconteceu em segredo. As notícias foram reveladas na rádio em Moscovo quando o Yuri Gagarin estava em órbita. Foi a primeira vez que a mulher dele soube que o marido estava no espaço.
Ela não sabia de nada? A família deles não sabia?
Quando os cosmonautas foram escolhidos, não deviam dizer a ninguém aquilo que faziam, nem mesmo às suas mulheres. Ao fim de seis meses, tornou-se impossível e todos disseram às mulheres o que se passava, mas o Yuri Gagarin era muito leal, um bom soldado, e só lhe disse quando obteve permissão para lhe contar. Isso aconteceu em agosto de 1960. Por isso, quando chegou ao voo propriamente dito e eles foram para o cosmódromo no Cazaquistão, a 5 de abril, antes de a escolha final ter sido feita, ele disse à mulher: “Eu não sei se vou ser eu”. Ela soube assim que haveria um lançamento. Ele também lhe mentiu sobre a data, disse-lhe que seria a 14 de abril, porque lhe disseram para dizer isso. Porque não queriam que as mulheres estivessem preocupadas no dia verdadeiro. Mesmo assim, além das mulheres, o resto da família não sabia de nada, mesmo nada. No dia da viagem, o pai do Yuri Gagarin, Alexei, estava a atravessar a pé um terreno lamacento na periferia da cidade para ir arranjar um telhado numa vila — era carpinteiro. O terreno estava especialmente lamacento naquele dia, demorou tanto tempo a andar aqueles 10 quilómetros quanto o filho demorou a dar uma volta ao planeta. Então, enquanto atravessava o terreno e passava pela vila, a notícia começa a ser transmitida pela rádio. E um dos vizinhos sai de casa e diz: “Alexei, o teu filho está no espaço. Está em órbita!”. Ele respondeu: “Isso é ridículo, ele não está no espaço, está em Moscovo”. “Não, não, não, acabei de ouvir no rádio. Eles anunciaram que era o major Yuri Gagarin”. Como o Gagarin até ali era tenente, não major, o pai disse: “Ah, não, o meu filho é tenente, deve ser outro Yuri Gagarin”. Na verdade, era o Yuri Gagarin dele, só que ele já tinha sido promovido enquanto estava em órbita. À medida que passava pela vila, os vizinhos diziam-lhe: “O teu filho está no espaço!”. E ele só respondia: “Não é o meu filho, é outro Yuri Gagarin”.
E os americanos, como é que reagiram a estas notícias?
Muito mal. As notícias chegaram de manhã muito cedo. O Presidente Kennedy não estava acordado e, quando soube, ficou horrorizado. Foi um desastre para ele. Fizeram uma conferência de imprensa a 12 de abril de 1961, até está no YouTube, e vê-se a cara dele em choque. Parece que lhe bateram na cabeça umas 50 vezes. Está um trapo e admite que os americanos ficaram para trás. Disse também que ninguém está mais irritado e aborrecido do que ele, mas que ficaram para trás e vai ser preciso algum tempo até deixarem de estar.
Dois dias mais tarde, quando estava a haver uma parada em Moscovo, Kennedy estava numa reunião na Casa Branca e a porta da sala estava aberta. Havia uns conselheiros e um jornalista da Time que estava a fazer uma reportagem sobre aquilo. Kennedy estava aterrorizado e dizia: “O que é que eu faço? O que é que eu faço? Como é que os batemos, como é que os ultrapassamos?”. Chegou mesmo a dizer: “Se o porteiro da Casa Branca souber o que fazer, eu quero ouvi-lo”. E, claro, foi assim que começaram a falar sobre a Lua.
Então pode dizer-se que a missão Apollo só existiu como a conhecemos por causa de Gagarin?
Sim, mas não nos podemos esquecer do que aconteceu a seguir. Esta reunião aconteceu a 14 de abril. No dia seguinte de manhã, 15 de abril, os americanos lançaram a invasão à Baía dos Porcos, em Cuba, com a CIA por trás disto. É incrível: no dia seguinte decidem começar a bombardear rebeldes cubanos, anti-Castro, com pilotos treinados da CIA. E dois dias mais tarde, a 17 de abril, uma brigada de lutadores treinados da CIA aterra na Baía dos Porcos e tudo corre terrivelmente mal. É um desastre tão grande que Nikita Khrushchov ameaça começar a Terceira Guerra Mundial, acabando por iniciar a crise dos mísseis no ano seguinte. Ele até diz que, se os americanos não pararem de pôr tropas e aviões nesta luta, ele vai começar a explorar a possibilidade de um ataque nuclear. Ou seja, de repente, no espaço de sete dias, Kennedy, tão novo no cargo de Presidente, tinha duas grandes crises para gerir: um russo no espaço antes de um americano e o desastre da Baía dos Porcos. Isto levou os americanos a perguntar: “Quem é este gajo? Ele é demasiado novo, não serve, é inútil. Vai ser o pior Presidente que já tivemos, isto é tão humilhante no meio da Guerra Fria”. E é imediatamente depois disto, literalmente no espaço de um dia ou dois, que começamos a ver as movimentações para ir à Lua. No espaço de três ou quatro semanas, torna-se oficial.
Kennedy já nutria algum interesse pelo espaço?
Não, até ali não tinha interesse nenhum na Lua porque achava tudo caro. Mas, de repente, diz ao mundo: “Vamos à Lua e vamos antes do final da década”. E claro, isto tudo remonta ao Yuri Gagarin. E, se quisermos ser mesmo provocadores, pode-se mesmo argumentar que, se o voo com o chimpanzé tivesse corrido bem, o Alan Shepard é que teria sido o primeiro a chegar ao espaço. E, nesse caso, talvez nem sequer existisse ida à Lua. Porque repare: na história do chimpanzé, o combustível esgotou-se meio segundo mais cedo. Foi esse meio segundo que mudou o mundo.