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Primeiro ficou a saber-se que a Polícia Judiciária (PJ) teria pedido à Doyen que solicitasse ajuda às autoridades russas para descobrir a origem dos emails enviados por Rui Pinto. Mais tarde descobriu-se que a PJ teria enviado à Doyen um rascunho com uma proposta de requerimento que devia ser feito à Procuradora-Geral da República (PGR). Depois foi revelado que a PJ tinha indicado também à Doyen um jornalista que pudesse expor a versão da empresa dos factos. Estas revelações culminaram esta quinta-feira com os juízes responsáveis pelo julgamento do Football Leaks — em que está a ser julgado Rui Pinto e Aníbal Pinto, seu advogado à data dos alegados crimes — a extrair certidão para averiguar eventuais práticas criminosas ao longo de investigação.
Mais especificamente, investigar o inspetor-chefe Rogério Bravo, o alegado remetente de pelo menos dois desses emails. E também o destinatário: Pedro Henriques, o advogado que colaborava com a Doyen (a empresa que Rui Pinto terá tentado extorquir, exigindo dinheiro em troca da não divulgação de documentos que tinha na sua posse) e que foi esta quarta e quinta-feira ouvido como testemunha. Foi ele, aliás, quem fez algumas das revelações que acabaram por motivar a extração de certidão — revelações essas que mostram que o inspetor-chefe terá trocado informações com a Doyen acerca da investigação, através de Pedro Henriques, enquanto ela decorria e estava em segredo de justiça.
Na verdade, o MP já tinha investigado as alegadas ligações do inspetor-chefe (e também o inspetor José Amador) à Doyen, na sequência de uma queixa apresentada pela socialista Ana Gomes, em 2019. Questionada pelo Observador, a agora candidata à presidência da República explicou que entendia “não dever falar por estar em causa um agente da PJ”. Foi também por essa razão que nunca tornou pública a queixa e apenas se limitou “a pedir investigação a quem de direito”, garante. Numa entrevista ao Observador meses depois, em agosto, Ana Gomes tinha dito que “a justiça portuguesa” estava “ao serviço da Doyen” e que houve elementos da PJ que “andaram atrás de magistrados a tentar convencê-los a ir atrás da Doyen”. “Rui Pinto denunciou que houve elementos da PJ que instruíram a Doyen a fazer a queixa. Isto é muito estranho, é muito estranho”, afirmou.
Só que o processo que teve por base a queixa de Ana Gomes acabou arquivado em novembro deste ano, quando já decorria o julgamento de Rui Pinto. Agora, com a extração de certidão, o caso pode ser reaberto novamente para averiguar estes novos dados — basta que o MP decida avançar. Em causa estão suspeitas da prática dos crimes de falsidade de depoimento, corrupção, abuso de poder e denegação de justiça.
Os juízes tomaram esta decisão depois de o advogado de Aníbal Pinto, João Pereira dos Santos, ter feito um requerimento onde pedia que se fizesse um “apuramento cabal” dos “contornos obscuros e manobras de encobrimento” da atuação da polícia, que nunca pensou “ver em Portugal”. Logo de seguida, a Procuradora da República, Marta Viegas, apesar de lembrar que esta alegada ligação da PJ à Doyen já tinha sido investigada e arquivada, afirmou não ter “nada a opor” à extração de certidão “para que seja reaberto o processo”.
Contactada pelo Observador, a Polícia Judiciária não quis comentar.
O pedido de ajuda à Doyen para ter a colaboração da Rússia sobre a origem dos emails enviados por Rui Pinto
Logo na quarta sessão do julgamento, ainda em setembro, uma informação revelada em tribunal deixou os juízes algo confusos. O inspetor José Amador estava a ser ouvido quando contou que a PJ teria enviado a Pedro Henriques um documento relacionado com a investigação ao caso Football Leaks, enquanto ela decorria e numa altura em que procuravam descobrir quem era Rui Pinto. Esse documento tinha sido encontrado na correspondência de Pedro Henriques: tratava-se de um ofício em que as autoridades portuguesas pediam a colaboração da Rússia para descobrir a origem dos emails enviados por Rui Pinto — na altura, identificando-se como Artem Lobuzov — e nos quais pedia dinheiro em troca da não divulgação de documentos da Doyen que tinha em sua posse.
Mais precisamente, o que a PJ queria saber com este ofício era o endereço IP do email usado para a alegada extorsão e que estava alojado na Yandex, uma empresa sediada na Rússia. E porquê enviá-lo para Pedro Henriques, uma pessoa externa à investigação, à data em segredo de justiça, que nem sequer estava a representar a Doyen? Segundo explicou o inspetor José Amador, o objetivo era o advogado “agilizar a chegada [do ofício] aos russos”. Ainda assim, apressou-se a explicar que não foi ele que fez “a entrega de nada”. “Essa situação é melhor ser delegada para a minha chefia imediata: Rogério Bravo”, afirmou.
“Mas isso não era um pedido entre polícias?”, questionou a juíza Margarida Alves. Também a juíza-adjunta, Ana Paula Conceição, interveio para saber como é que esse ofício tinha sido enviado a Pedro Henriques. E o inspetor não conseguiu dar respostas claras. “A solicitação [a Pedro Henriques] foi feita sabendo das dificuldades de chegar aos russos“, disse, lembrando ao tribunal o quão difícil é conseguir uma resposta das autoridades russas — o que levou a juíza-adjunta a concordar com a cabeça. Ana Paula Conceição perguntou ainda se PJ “costuma” partilhar documentos da investigação com os advogados. “Não é hábito“, garantiu o inspetor.
É certo que, até ao momento, ainda não foi esclarecido sobre quem, dentro da PJ, enviou este email: se, tal como nos restantes casos, foi Rogério Bravo ou se outro elemento. Ainda assim, esta troca de correspondência aponta para a alegada relação da PJ com a Doyen em relação à qual o tribunal extraiu agora certidão. Aliás, esta quinta-feira, antes de o fazer, uma das juízas lembrou exatamente a existência deste ofício.
O email do inspetor a sugerir um requerimento sobre Rui Pinto para enviar à Procuradora-Geral da República
Vários meses passaram com a audição de outras testemunhas — o julgamento chegou mesmo a ser suspenso devido a um caso de Covid-19 — e nunca mais se falou deste ofício. Mas, em dezembro, Pedro Henriques senta-se finalmente no banco das testemunhas. No dia 9, enquanto estava a ser inquirido, foi mencionado um email que o inspetor-chefe Rogério Bravo tinha enviado a Pedro Henriques. Nele, pedia que fizesse um requerimento à então Procuradora-Geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, relacionado com o processo Football Leaks.
“Isto não é normal”. Inspetor da PJ instruiu advogado a enviar requerimento sobre Rui Pinto à PGR
O email foi enviado do endereço de correio eletrónico pessoal do inspetor-chefe em novembro de 2015, numa altura em que a identidade de Rui Pinto ainda não era conhecida. Nele, Rogério Bravo trata Pedro Henriques por “tu” e pede-lhe que informe o “amigo N” acerca da sugestão de requerimento, mas “limpando” a “origem” do email, “para prevenir incidentes”.
Pedro Henriques garantiu que não era amigo de Rogério Bravo, nem sequer o conhecia antes deste processo e não conseguiu apresentar uma razão para o inspetor o tratar por tu — garante, no entanto, que sempre o tratou por “você” e que é “a forma de ele falar”. “Não tenho qualquer relação com ele, não o conhecia, não consigo ter qualquer explicação para me tratar assim. Tem de perguntar ao inspetor”, afirmou. Também não conseguiu explicar quem era o “amigo N”, embora a juíza Margarida Alves tenha sugerido que se tratasse de Nélio Lucas.
A esse email, Pedro Henriques respondeu apenas: “Obrigado. Assim farei. Abraço”. Num segundo email, o inspetor-chefe enviou mesmo uma espécie de rascunho com uma proposta do requerimento que devia ser enviado e pediu a Pedro Henriques que o enviasse à Procuradora-Geral da República “com urgência”. E adiantava que ia “falar com uma pessoa mesmo muito próxima da Sra. Procuradora-Geral e pedir deferimento”, escreveu Rogério Bravo, segundo os documentos apresentados em tribunal.
Nesse requerimento era dada a informação a Joana Marques Vidal de que tinha havido uma “escalada criminosa” e que o alegado hacker não só continuava a divulgar informação sobre a Doyen no site Football Leaks como agora tinha feito uma tentativa de extorsão. Também esta troca de correspondência gerou alguma inquietação entre os juízes. “No âmbito do crime, os requerimentos não são sugeridos pelo inspetor“, afirmou mesmo a juíza Margarida Alves.
A magistrada questionou ainda por que é que esse email tinha sido enviado para Pedro Henriques, quando não era ele que estava a representar Nélio Lucas. É que o ex-administrador da Doyen está a ser representado neste processo por advogados da sociedade Vieira de Almeida e Pedro Henriques era, segundo explicou em tribunal, apenas um amigo e assessor jurídico. Também para isto a testemunha não deu uma explicação e sugeriu aos juízes que questionassem o próprio inspetor.
A recomendação de um jornalista para a Doyen contar a sua versão dos factos
Um dia depois de se ter ficado a conhecer o email sobre o requerimento à PGR, uma nova troca de correspondência é conhecida — culminando então na extração de certidão para investigar as alegadas ligações do inspetor-chefe à Doyen. Nesse novo email, Rogério Bravo terá indicado o nome de um jornalista à Doyen para que a empresa pudesse expor a sua versão dos factos — na altura, os documentos da Doyen estavam a ser divulgados no site Football Leaks.
Questionado pela juíza Margarida Alves, Pedro Henriques começou por dizer que não se lembrava de quem tinha sido o inspetor a indicar o jornalista, nem sequer quem era esse jornalista, com quem, garantiu, nunca tinha falado. “Remeti esse email para o Nélio [Lucas] e departamento de comunicação da Doyen. Não me lembro do nome nem sei quem era. Terá de perguntar aos inspetores“, respondeu Henriques, levando a magistrada a afirmar: “Descanse que não ficará por perguntar”.
Só que, momentos depois, o advogado de Aníbal Pinto mostrou em tribunal um email trocado entre o jornalista e Pedro Henriques. Nele, o advogado pergunta, “na sequência do email do RB”, qual era a sua “disponibilidade para um encontro e fornecimento de dados” que pretendia “apresentar”. “Afinal trocou emails com ele?”, perguntou logo o juiz-adjunto Pedro Lucas. “Troquei esse email a dar indicação. Não me posso lembrar exatamente de tudo. Foi em 2015, estamos em 2020”, afirmou Pedro Henriques.
A juíza-presidente do coletivo acabou mesmo por admitir que havia “interferência ou sugestão de determinado inspetor nestas questões, que extravasam o normal andamento deste processo”. Momentos depois, acabaria por extrair certidão do processo.