Depois de vários minutos de uma autêntica aula sobre internet, endereços IP, servidores e operadoras — temas que a juiz-presidente admite não dominar muito —, o inspetor da Polícia Judiciária (PJ) José Amador acabaria por fazer uma revelação que deixou o tribunal algo confuso: a PJ teria enviado um documento relacionado com a investigação ao caso Football Leaks, enquanto ela decorria e numa altura em que procuravam descobrir quem era Rui Pinto, a Pedro Henriques, advogado da Doyen — a empresa que o alegado hacker terá tentado extorquir e que fez uma das queixas que deu origem precisamente a esta investigação. Tratava-se de um ofício em que as autoridades portuguesas pediam a colaboração da Rússia para descobrir a origem dos e-mails enviados por Rui Pinto — na altura, Artem Lobuzov — e nos quais pedia dinheiro em troca da não divulgação de documentos da Doyen que tinha em sua posse.

Mais precisamente, a PJ queria saber de quem era o endereço IP do e-mail usado para a alegada extorsão e que estava alojado na Yandex, uma empresa sediada na Rússia. Segundo explicou o inspetor, ouvido esta quinta-feira naquela que é a quarta sessão do julgamento do Football Leaks, o objetivo era Pedro Henriques “agilizar a chegada [do ofício] aos russos”. “Mas isso não era um pedido entre polícias?”, questionou a juíza Margarida Alves.

Aqui, o depoimento, que tinha sido tão esclarecedor quando o tema era computadores tornou-se confuso. Especialmente porque a juíza-adjunta, Ana Paula Conceição, também quis saber quase ao mesmo tempo como é que esse ofício tinha sido enviado a Pedro Henriques. E o inspetor não conseguiu dar respostas claras. A própria advogada que representa agora a Doyen, Sofia Branco Ribeiro, ia abanando a cabeça e franzindo o sobrolho. “A solicitação [a Pedro Henriques] foi feita sabendo as dificuldades de chegar aos russos“, disse, lembrando ao tribunal o quão difícil é conseguir uma resposta das autoridades russas — o que levou a juíza-adjunta a concordar com a cabeça. Mas apressou-se a perguntar se a PJ “costuma” partilhar documentos da investigação com os advogados. “Não é hábito“, confessou o inspetor.

Rui Pinto está acusado de 90 crimes no âmbito do processo Football Leaks

José Amador não conseguiu esclarecer se na altura Pedro Henriques já estava a representar a Doyen, nem quem é que, da PJ, enviou o ofício ao advogado: “Não tenho conhecimento”. Aliás, antes, já não tinha conseguido dizer se, quando Nélio Lucas, antigo administrador da Doyen, fez a queixa à PJ, foi acompanhado ou não de Pedro Henriques. A informação acabou por não ficar esclarecida, já que a juíza-presidente fez o habitual intervalo da tarde e quando a sessão retomou este assunto não foi mais abordado.

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Será muito provavelmente abordado em futuras sessões, a julgar pela visível revolta do arguido Aníbal Pinto. Lá dentro, enquanto ouvia o depoimento, ia abanando a cabeça, inquieto. Cá fora, em declarações aos jornalistas, disse estar “chocado” e acusou mesmo a polícia “de trabalhar para a Doyen”. “Para mim é inacreditável, a PJ estar ao serviço da Doyen”, apontou, acrescentando que não percebe “como é que a PJ dá elementos de pedidos de informação internacional a pessoas interessadas no processo”. Já os advogados de Rui Pinto preferiram não comentar, como aliás, sempre têm feito.

Jovem de 20 e muitos anos. A aparência de Rui Pinto que o denunciou e fez-se “luz” no inspetor

José Amador não era um dos inspetores que estavam a vigiar a reunião entre Aníbal Pinto, então advogado de Rui Pinto, e os representantes da Doyen numa estação de serviço da A5, em Oeiras, em 2015 — um encontro que serviu, aos olhos do Ministério Público para afinar negociações relacionadas com a tentativa de extorsão. Por isso mesmo, a juíza, depois de alertada pelo advogado de Aníbal Pinto, não permitiu que o inspetor falasse sobre o que aconteceu nessa reunião com base naquilo que outros inspetores lhe disseram.

Mas pôde dizer ao tribunal como é que esse encontro permitiu identificar Rui Pinto. Foi, na verdade, uma “coincidência”. “Fez-se luz para mim”, disse. Fez-se “luz” quando lhe contaram que Aníbal Pinto durante o encontro com a Doyen tinha descrito o seu cliente com um “jovem na casa dos 20 e muitos anos” que tinha estado envolvido num processo com um banco das ilhas Caimão, de onde o alegado hacker foi suspeito de ter desviado 264 mil euros — um inquérito que acabou arquivado porque o banco retirou a queixa.

O encontro secreto entre o ex-advogado de Rui Pinto e a Doyen — com a PJ na mesa ao lado

Esta “evidência foi corroborada por outros elementos”, adianta o inspetor. Havia também coincidências do ponto de vista técnico. Por exemplo, nas queixas feitas pela Doyen e pelo Sporting havia uma série de endereços IP “que remetiam à Hungria”. “Tivemos no outro inquérito [do banco das ilhas Caimão] a indicação de que Rui Pinto estaria em território húngaro. Por isso, seria uma coincidência estrondosa”, disse.

A cotovelada entre os arguidos e a guerra de tweets. “Eu não tenho redes sociais”, disse juíza

Aníbal Pinto apareceu — ele que não tinha vindo ao tribunal nem na sessão de quarta-feira, nem na manhã de quinta-feira. Apareceu só na sessão da tarde para qual estava marcada a inquirição de José Amador. Enquanto esperava que os juízes chegassem, circulava pela sala de audiências em conversa com os advogados. A caminho para o seu lugar — o banco dos arguidos — acabaria por, inevitavelmente, cruzar-se com Rui Pinto. “Então? Estás bem?”, perguntou-lhe para depois lhe dar uma cotovelada, em jeito de cumprimento. A conversa, curta e ao ouvido, terminou com Aníbal Pinto a desejar “boa sorte” ao alegado hacker.

Aníbal Pinto   na sessão desta quinta-feira, durante a tarde

Aníbal Pinto não esteve presente para ouvir o depoimento do advogado Rui Costa Pereira e parte das declarações da também advogada Inês Almeida Costa. Ambos falaram do impacto negativo que o ataque à sociedade PLMJ teve na sua vida profissional e pessoal. Rui Costa Pereira, questionado pelo próprio pai que o está a interrogar, o procurador jubilado Manuel Pereira, admitiu até que está a ser ameaçado depois de Rui Pinto ter republicado um tweet seu de fevereiro sobre o arguido.

Nesse tweet, o advogado lamentava que se continuasse a “glorificar este sociopata de mau gosto em termos de penteado”. Na terça-feira, dia em que estava marcada inicialmente a inquirição de Rui Costa Pereira, o alegado hacker partilhou o tweet: “É muito lamentável um ilustre advogado apresentar este tipo de linguagem“.

Perante as declarações, Rui Pinto riu-se, abanou a cabeça, encolheu os ombros e levantou os braços. A juíza acabou por pôr um ponto final na discussão, lembrando que não tem redes sociais e que a produção de prova seria feita no tribunal e não no Twitter. Rui Costa Pereira acabou por reconhecer que o tweet de Rui Pinto não era “nada de especial” — levando o arguido a levantar o braço em jeito de reconhecimento.

A juíza lembrou que Rui Pinto pode ter feito o tweet “não enquanto arguido, mas enquanto cidadão”, da mesma forma que ele teria feito a publicação, há sete meses, “não como assistente, mas como cidadão”. Afirmando não ver “relevância” no assunto, disse compreender “o desgaste que causa”. “Doutora, horas antes de eu cá vir! Foram centenas de ameaças que recebi”, insistiu, referindo-se às horas a que Rui Pinto fez o tweet.

Advogado da PLMJ contraria Rui Pinto: pasta de Isabel dos Santos “não foi acedida”

Ouvido de manhã, o advogado Rui Costa Pereira revelou em tribunal que a pasta que tinha no seu computador relativa à empresária angolana Isabel dos Santos “não foi acedida” por Rui Pinto. Neste sentido, o advogado defendeu que a justificação de Rui Pinto para aceder aos computador “não é muito consentânea”.

Isto porque o alegado hacker disse na sua contestação que não foi por causa do processo E-toupeira, da Operação Marquês ou do processo EDP que se interessou pela PLMJ, mas sim os negócios da empresária angolana Isabel dos Santos e da sua empresa, a Fidequity. Ora, Rui Costa Pereira tinha no seu computador uma pasta sobre esta mesma empresa que continha “elementos de uma peça processual” da empresária contra o jornalista angolano Rafael Marques que não foi acedida.

O advogado defendeu, por isso, que “a intrusão estava relacionada com o patrocínio do Benfica”. Até porque houve pastas suas, nomeadamente com ficheiros pessoais, que não foram publicadas, mas os serviços informáticos da PLMJ conseguiram perceber que, mesmo assim, foram acedidas. No caso da pasta de Isabel dos Santos, nem uma coisa nem outra.

Rui Pinto, que tem assistido ao julgamento com serenidade, apenas tirando algumas notas no caderno, acabou por passar esse mesmo caderno à sua advogada, Luísa Teixeira da Mota, quando o assistente falou sobre Isabel dos Santos. “Luísa, Luísa”, ouviu-se Rui Pinto a chamar. Luísa acabou por receber o caderno que depois leu, atentamente, com o advogado Francisco Teixeira da Mota.

Momentos de “absoluto caos e pânico”. “Dou como adquirido que a informação extraída é hoje utilizada pelo MP”, diz advogado

O advogado relatou que estava na sua casa, a celebrar o aniversário da sua mãe, com a família, quando foi avisado de que a PLMJ tinha sido atacada. Disse que os momentos que se seguiram foram de “absoluto caos e pânico” e que teve mesmo de “convidar” a família a sair. “Tive de ir à PLMJ desligar os cabos porque não sabíamos se o ataque ainda estava a acontecer”, explicou.

O link que permitiu o ataque, o telefonema da Roménia e o “sobressalto constante”. Rui Pinto começou a ouvir o relato das vítimas

Rui Costa Pereira diz que dá “como adquirido que a informação extraída é hoje utilizada pelo MP”. Deu como exemplo um processo, que não identificou, em que o MP contratou empresas de tradução “a fim de serem traduzidas decisões de tribunais alemães referentes a utilização de provas com origem duvidosa“.

Havia possibilidade de o MP querer usar documentos apreendidos a Rui Pinto. Fizemos um requerimento para que o MP clarificasse e alertar sobre a eventual prática de crime de prova proibida“, contou.

Num primeira fase, quando foi divulgado um guião de inquirição às testemunhas do processo E-toupeira, não havia a certeza qual dos computadores dos três advogados que estavam com o caso tinha sido hackeado uma vez que todos eles tinham acesso a esse documento. Só teve a “certeza absoluta” que o seu computador tinha sido um dos alvos quando foi publicada um pasta com documentos sobre Henrique Granadeiro. “Não só o número de ficheiros era igual como ordem [em que tinham sido publicados] era exatamente a mesma”, contou. O MP pediu até em tribunal que a pasta — uma das várias que foram divulgadas — fosse mostrada, mas Rui Costa Pereira não concordou.

— Não é a coisa mais adequada a fazer

— Há alguma pasta que se possa abrir? Só para termos a ideia do que é… — pediu a procuradora Marta Viegas.

— Não, pelos nomes não — respondeu o assistente.

O advogado contou depois que ele e os colegas pareciam “os leprosos no escritório” já que todos receavam que, se comunicassem com eles, os e-mails acabariam por ser divulgados. Também a advogada Inês Almeida Costa relatou a “tortura” que disse sentir na altura em que os seus documentos estavam a ser partilhados, especialmente porque o hacker costumava avisar um dia antes que ia publicar novos conteúdos. A advogada viu quatro das suas pastas publicada no site Mercado de Benfica, entre elas estavam assuntos relacionados com a Operação Marquês, o caso EDP, os vistos gold e documentos em segredo de estado.

Não sei, hoje em dia, quem está na posse dessa informação. Há pessoas que podem fazer o que quiserem para sempre”, lamentou.

A caixa de e-mails da advogada, apesar de não ter sido publicada, foi encontrada num dos discos apreendidos a Rui Pinto. O MP pediu que essa caixa de correio eletrónico, que se encontra no computador da PJ disponibilizado para o julgamento, seja mostrada em tribunal, mas o advogado da PLMJ lembrou que essa exibição iria trazer um “conflito com o direito ao segredo profissional”. O tribunal acabou por decidir que os e-mails irão ser mostrados, mas num computador ao qual apenas poderão aceder as pessoas relacionadas com o processo e de forma a que os jornalistas não o consigam ver

O julgamento retoma na próxima semana. Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

Rui Pinto. O rapaz do “cabelito espetado” que já entrava nos computadores da escola antes de ser o “John” do Football Leaks

O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.