Mao Zedong recebeu Richard Nixon na sua luxuosa casa de Zhongnanhai – a parte da antiga cidade proibida que ficou reservada para os escritórios e as habitações dos mais altos membros do Politburo do Partido Comunista Chinês – em 24 de fevereiro de 1972. As fotografias mostram um Mao Zedong sorridente de dentes escurecidos (e, não se vê nas fotografias, mas diz-se também que de higiene descuidada). Foi o culminar das negociações diplomáticas entre Kissinger e o premier chinês, Zhou Enlai, num processo que variou entre a grande diplomacia das votações da ONU (para substituir Taiwan) e a ‘diplomacia do ping-pong’: os campeões americanos da modalidade que foram à China jogar com as vedetas nacionais, no regresso de uma viagem do Japão.
A China estava no meio da revolução cultural. O país havia ficado (quase) hermeticamente encerrado a estrangeiros desde o cisma com a União Soviética em 1960. Os impactos daquele momento (na China e no resto do mundo) só se começariam a sentir em velocidade de cruzeiro duas décadas depois, com Mao morto (enquanto que hoje está meio ressuscitado) e Deng Xiaoping fazendo uma viagem ao sul do país em 1992 e proclamando o compromisso com a abertura e a reforma económica da China (a reforma política ficara incinerada em Tian’anmen em 1989). Mas o caos da Revolução Cultural não era razão para Mao não fazer um brilharete na política interna. A aproximação aos Estados Unidos era do agrado da velha guarda dos altos militantes do Partido Comunista Chinês. E, para a população em geral, fez-se uso da sempre útil realidade que é quase sinónimo da China maoista: a propaganda. Apesar de os tempos feudais serem oficialmente execrados pelo regime comunista, estender glória de calibre imperial sobre Mao nunca foi malvisto. Foram buscar-se os tempos do comércio tributário, que perpassou as dinastias Ming e Qing, quando os diplomatas dos estados vassalos do Filho do Céu (também conhecido como imperador chinês) vinham até ao seu suserano fazer o kowtow e oferecer tributos. Assim, a mensagem interna rezou da seguinte forma: Richard Nixon, em vez do homem mais poderoso do mundo que oferecia a uma China delapidada a oportunidade de regressar ao convívio honesto com o resto dos países, foi representado como o vassalo indo a Beijing oferecer o tributo ao imperador Mao.
Mais propaganda, desta feita internacional, se seguiria. Nesse ano de 1972, Michelangelo Antonioni foi convidado por Zhou Enlai para ir à China fazer um documentário sobre os desenvolvimentos que o comunismo trouxe. O filme é muito curioso de ver – começa com uma dolorosa visão de uma cesariana com anestesia por acumpuntura, de seguida dá-nos imagens alegadamente espontâneas da capital e de zonas rurais. Mas a China que foi dada a ver a Antonioni (ou que o realizador filmou) é uma China limpa, organizada, coreografada e encenada – o contrário do que por lá viu qualquer visitante do país mesmo décadas mais tarde. Porém, o documentário que deveria servir para mostrar o glorioso comunismo chinês ao mundo terminou numa luta de fações interna. O grupo de radicais que incluía Jiang Qing, a mulher de Mao, usou a obra como arma de ataque ao premier Zhou, que recrutara Antonioni, argumentando que o filme não representava devidamente os avanços comunistas. O documentário terminou banido da China por quarenta anos – embora no resto do mundo ganhasse estatuto de obra icónica (e única) da vida na China durante a Revolução Cultural.
Saltando quase cinquenta anos, propaganda é o que a China usa por estes dias, todos eles, relatando a sua versão dos protestos de Hong Kong. Quem vá ao twitter da agência de notícia chinesa Xinhua ou da televisão estatal CCTV, tem um relato divertido do que se passa em Hong Kong. Lá lemos que bandos de contestatários encapuçados espancam habitantes avulsos da região autónoma. E que há vis e violentos ataques dos insurgentes aos ordeiros polícias. Carrie Lam, a responsável política cimeira de Hong Kong, é um exemplo de humildade e de tentativa de trazer para o caminho do bem os ingratos que protestam – contra a lei que permitia a extradição para a China de habitantes de Hong Kong que desagradassem às autoridades chinesas (para recordar a medida questionável que deu origem aos protestos). Por outro lado, inúmeros e pacíficos residentes na antiga colónia britânica dedicam-se, informam-nos estas agências estatais chinesas, incansavelmente a exibir bandeiras gigantes da China em montanhas, centros comerciais, enfim, quase acreditamos que em todas as milhas quadradas de Hong Kong, Kowloon e dos Novos Territórios. Oferecem-nos a canção comemorativa que um jovem de franja alegadamente de Hong Kong (só se vê interiores confinados) compôs para festejar setenta anos da República Popular da China. Deparamo-nos com as inevitáveis contas falsas de twitter atacando os que protestam e que ajudam na tentativa de criar a ideia de que apenas uns escassos malfeitores contestam as autoridades enquanto a benevolente população na generalidade apoia Carrie Lam e a China.
Bem precisada de propaganda está a China com a corrente insurgência de Hong Kong. A 1 de outubro contam-se os setenta anos do dia em que Mao Zedong, em Beijing, proclamou a República Popular da China. Ora, em 1949, segundo a propaganda do PCC, terminou o que na China se chama ‘o século de humilhações’. Século que se começou a contar em 1842, quando a China perdeu a primeira Guerra do Ópio com a Grã-Bretanha e foi arrastada para a assinatura do Tratado de Nanjing, que obrigava à abertura de cinco portos chineses ao comércio com os europeus, garantia a imunidade extraterritorial aos diplomatas britânicos e – pois – cedia a ilha de Hong Kong ao império da Rainha Vitória.
As agruras da China não terminaram por aqui. Seguiu-se nova Guerra do Ópio poucos anos depois, envolvendo novamente britânicos mas também americanos, franceses e lateralmente mais uns tantos países. A fraqueza da China depois da Convenção de Pequim, em 1860, permitiu que várias potências coloniais se estabelecessem, quase com naturalidade, em pedaços da China de tamanho variável. Desde os britânicos no sul aos alemães na região de Qingdao (onde ensinaram os autóctones a fabricar cerveja). Com o tratado de Versalhes, mais colonizadores da China se juntaram: o nortenho Shandong (anteriormente sob governação alemã) foi cedido aos japoneses, o que gerou os protestos de intelectuais e universitários, que ficaram conhecidos como o Movimento 4 de Maio. No início dos anos 1930 o Japão invade a Manchúria, cria lá um estado fantoche chefiado por Pu Yi, o último imperador Qing, e em 1937 alarga-se para outras zonas chinesas. Só saíram depois da derrota da Segunda Guerra Mundial em 1945, não sem antes praticarem atrocidades que ainda hoje criam conflitos na relação sino-japonesa: o massacre de Nanjing (também conhecido pelo nome gráfico de violação de Nanjing) e o uso de mulheres chinesas como escravas sexuais, que ficaram conhecidas pelo nome de ‘mulheres de conforto’ (porventura o maior eufemismo de sempre de toda a história universal).
A república popular não ocorreu logo. Depois de 1945, comunistas e nacionalistas engalfinharam-se numa guerra civil. Até aí haviam sido aliados involuntários contra a potência ocupante japonesa, e ocasionalmente aliados voluntários quando Moscovo ordenava alianças temporárias entre o PCC e o Kuomintang, o partido de Chiang Kai-shek. O Exército Vermelho, dos comunistas chefiados por Mao Zedong, aproveitando a vantagem de se terem adiantado a ocuparem os ricos terrenos do Norte desocupados pelos japoneses, e fazendo uso da simpatia que os camponeses lhes devotavam – nunca esquecer que a revolução comunista chinesa nunca teve o proletariado como a classe de eleição, mas sim o campesinato – terminaram expulsando os nacionalistas de Chiang Kai-shek para a ilha de Taiwan (onde permanecem).
A proclamação da República Popular da China (Zhonghua Renmin Gongheguo) a 1 de outubro de 1949, por Mao Zedong, pretendia, assim, não só iniciar a experiência comunista chinesa sob o Partido Comunista Chinês, como também pôr fim ao tal século de humilhações que países mais fortes lhes haviam infligido. O comunismo chinês, forjado na guerra contra o invasor japonês, tem e sempre teve grande travo patriótico.
Ora um dos pilares da legitimidade do poder do PCC é ter sido o autor da jiefang, a ‘libertação’ da China – libertação dos invasores, libertação da humilhação infligida pelas potências estrangeiras, libertação dos tempos feudais que o Kuomintang pretendia continuar. (A legitimidade simbólica, claro, que a efetiva está a cargo do controle do partido sobre o exército – que, de resto, se chama ainda hoje jiefang jun, Exército de Libertação.) E é para reforçar, relembrar, reatar esta aliança entre os chineses e o PCC, o seu libertador, que os aniversários da cerimónia fundacional de 1 de outubro de 1949 são particularmente celebrados.
Em 1959, nos dez anos da Libertação, a praça Tiananmen foi ampliada e ganhou o estilo arquitetónico estalinista atual. Nos cinquenta anos, em 1999 (e tentando que a memória da terrível data de junho de 1989 se esboroasse), houve lugar a grandes renovações urbanísticas em Beijing. Jiang Zemin, então o presidente, chefiou um grande desfile onde até foram avistados os soldados de terracota. Em 2009, nos sessenta anos, Hu Jintao ofereceu uma grande parada militar, uma celebração nacionalista com reminiscências da guerra patriótica contra os japoneses, fazendo-se acompanhar de líderes anteriores como Jiang Zemin, Li Peng, Zhu Rongji. Dois milhões de bandeiras chinesas estiveram em Tiananmen, viu-se fogo de artifício e toda a parafernália que a imaginação humana consegue criar para o merchandising: de moedas comemorativas a edições de músicas patrióticas. A operação de media foi equivalente à encenação política e militar. Produziu-se um filme com todo o estrelato chinês e de Hong Kong para contar a história (de um certo ponto de vista, nem é preciso frisar) da dita Libertação: The Founding of a Republic.
Na linha do mesmo objetivo – estreitar os laços entre a população e o Partido Comunista Chinês – em 2011 festejaram-se também os noventa anos da fundação do PCC. (Em 2021 prepara-se nova fanfarra para as celebrações do centenário do PCC.) Também teve direito a filme – The Founding of a Party, Beginning of the Great Revival – que é, sobretudo, um filme romântico contando a história de amor entre Mao Zedong e Yang Kaihui, a sua primeira mulher (se não contarmos o casamento arranjado a que os pais o obrigaram na adolescência). Uma evolução curiosa da arte propagandística, uma vez que nos tempos maoistas o amor romântico era considerado um costume burguês e, consequentemente, inexistia nos espetáculos modelo produzidos pelo Estado (que eram todos).
Antes disto, em 2008, num outro momento alto de projeção do governo comunista chinês, a abertura dos Jogos Olímpicos em 2008, o tom foi diferente. Quiçá pela audiência internacional, foi excluída do programa qualquer reminiscência vermelha da história recente chinesa. A estética da cerimónia ficou a cargo de Zhang Yimou, realizador de mão cheia com uma seita de adoradores internacionais (incluindo esta vossa amiga que vos escreve), um mago absoluto no uso da cor como efeito cinematográfico – mas que se dedica sobretudo a histórias da China dos tempos imperiais (incluindo o icónico “Herói”, à volta da famosa tentativa de assassinato do primeiro imperador Qin Shi Huangdi) e dos inícios do século XX (os maravilhosos “Raise the Red Lantern” e “Ju Dou”, por exemplo). O mais crítico que Zhang Yimou conseguiu do regime comunista foi a adaptação de “Viver”, de Yu Hua, ainda assim com as partes mais horríveis do livro atenuadas – não devemos, no entanto, ser moralistas com o realizador, que censura oficial oblige. Zhang Yimou entrou, mas o desfile com os soldados de terracota foi cancelado, porque se queria anular a vertente militarista da efeméride.
Entretanto, em 2012, a liderança chinesa passou para Xi Jinping, que apesar de mais novo que os anteriores presidentes (ou por isso mesmo), tem um entendimento da condução do país mais na linha de Mao Zedong. Incluindo uma certa benevolência com o culto do líder, que de alguma forma ressuscitou, e a vontade de exercer o poder até à velhice.
É, portanto, curiosa a conjuntura em que a China vai celebrar os setenta anos da fundação da República Popular. Há o crescimento económico que, apesar de provavelmente à volta dos 6%, desacelerou (ainda que a já referida Xinhua faça propaganda alegremente da mesma forma com esses valores). Note-se que o crescimento económico e a prosperidade que os chineses avidamente aproveitaram no seguimento das reformas capitalistas de Deng Xiaoping – e daquele dia em que Mao e Nixon se encontraram a primeira vez, selando o regresso da China às relações comerciais com os países capitalistas – é outro pilar da legitimidade do governo pelo PCC. Fez-se um trade off oficioso: o PCC ignora orgulhosamente os direitos humanos e obriga a que os seus súbditos vivam em privação de liberdades políticas e sociais, mas é mãos largas na economia, que tem crescido em abundância. Falhando o mimo económico que as autoridades dão aos chineses, não se sabe como tolerarão as restantes privações.
Por outro lado, a guerra comercial com os Estados Unidos pressiona para baixo as exportações e as taxas de crescimento da economia, e traz incerteza e vexames na política internacional. Para culminar, repito, em Hong Kong protesta-se ferozmente contra medidas feitas a pedido do governo de Beijing. Como se a ousadia de protestar não fosse suficiente, vertendo mais sal nas feridas, os contestatários usam aqui e ali bandeiras americanas e britânicas nos protestos. Donde, renegam o significado orgulhoso e nacionalista da Libertação.
Dentro da mainland, da própria China, um mundo distópico continua a construir-se. Numa civilização que sempre apreciou que os indivíduos fossem vigiados detalhadamente – o legalista Xunzi, inspirador tanto do primeiro imperador como de Mao, advogava que as comunidades deviam vigiar os seus e ser punidas se os deixassem transviar-se do bom e obediente caminho – a omnipresença de vigilância estatal começa a incomodar até os resignados chineses. A tecnologia de reconhecimento facial que se tenta espalhar por literalmente todo o lado não permite qualquer privacidade quanto às movimentações de cada um nem, sequer, a fuga à análise dos sentimentos através das expressões faciais. A censura na criação artística sobre temas considerados problemáticos é inescapável, bem como na investigação académica. O policiamento da internet é por de mais conhecido. Inúmeros jornalistas estrangeiros (considerados atrevidotes e pouco amigáveis com a governança do PCC) foram expulsos da China ou tiveram os seus vistos não renovados. O movimento #metoo – com grande seguimento na China e muitas denúncias sobretudo em meios universitários – é visto como uma ameaça séria ao regime e várias ativistas feministas já estiveram presas.
Por muito impositiva que seja a liderança de Xi Jinping, a verdade mantém-se e já foi observada por umas tantas vezes na história chinesa – nos tempos da dinastia mongol do Yuan que furiosamente censuravam até os motivos que os artistas colocavam nas aguarelas, com os Qing e a sua paranoia em busca de conspirações, passando pelo paranoico-mor Mao Zedong (que iniciou várias campanhas com centenas de milhares de mortos e aprisionados por desconfianças etéreas de possíveis inimigos agindo contra si). A saber: quanto maior os dispositivos de vigilância e repressão, maior o medo dos governantes do que os governados lhe trarão.
Assim, não deixará de trazer leituras o tom das celebrações dos setenta anos da República Popular da China. Desde logo porque é uma regra inescapável: a forma como retratamos o passado conta mais do presente que do passado.