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Talvez tenha sido o “rosebud” dele. Ironicamente, e esticando ao limite o sentido, bem sabemos. Mas foi “Citizen Kane” o ponto de não-regresso, a maldição, o lugar a que Orson Welles tentaria regressar toda a vida. Não enquanto trenó, não como regaço materno ou feminino em geral, não como paraíso perdido, mas impossibilidade de voltar a ser tão feliz – e, portanto, impossibilidade de ser feliz, ponto. Aos 25 anos, tinha escrito, produzido, realizado e protagonizado “o maior filme alguma vez feito”. Como superar isso? À primeira, tinha conseguido o que a maioria não consegue uma vida inteira, uma obra-prima. Para onde é que se vai a seguir?
George Orson Welles, um metro e 87 de altura, génio oficialmente reconhecido, carregaria depois, toda a vida, o peso de ser esse génio, de ser essa lenda, dos mais de 180 quilos que chegou a pesar, do ego pelo menos tão gordo e, finalmente, da insuperável responsabilidade de, para ele mesmo, mostrar que podia sacudir o cinema e o mundo sempre que quisesse. Tentou-o filme, após filme, após filme, após filme.
“O Quarto Mandamento”, “A Dama de Xangai”, “A Sede do Mal”… Produção a produção, Welles acumulou um historial de desavenças com os estúdios e um ror de obras que a obsessão perfeccionista frequentemente não permitia acabar. Zangou-se com a América do showbiz, andou anos refugiado na Europa dos “autores”, acumulou casamentos e relações com belas mulheres – Rita Hayworth a pairar sobre as mortais. Tal como Charles Foster Kane, Welles teve tudo e, no entanto, qualquer coisa continuava a faltar.
“O Outro Lado do Vento” foi a derradeira, porventura a mais séria tentativa, de o encontrar. De voltar a provar que era o melhor de todos. Mas isso implicava, necessariamente, ter de ser melhor do que ele próprio.
História de um filme e do filme dentro dele
Há dois filmes em “O Outro Lado do Vento”. Num, um homem segue à distância uma bela mulher, cruzando espaços perfeitos e frios, sem texto e satirizando o cinema europeu de então, como se Welles quisesse mostrar como lhe seria fácil filmar assim, se quisesse, Antonioni à cabeça (não por acaso o “outro” filme é rodado em Los Angeles, numa casa idêntica e ao lado daquela que Antonioni mandara pelos ares em “Zabriskie Point”). Noutro, as câmaras de supostos jornalistas e documentaristas captam a festa dos 70 anos do realizador do primeiro filme, Jake Hannaford, na qual Jake projecta as imagens que já tem, na esperança de convencer possíveis investidores presentes a financiarem-lhe a conclusão da obra.
[o trailer de “O Outro Lado do Vento”:]
Saltamos entre cor e preto e branco, tipos e qualidades de película, planos fixos e móveis, formatos e estilos, numa montagem veloz que procura, deliberadamente, confundir entre o que é o filme dentro do filme, o filme e o real. Bonecas russas à moda de Welles. O infindo jogo de espelhos de “Citizen Kane” ou “A Dama de Xangai”. A modernidade e o “com a verdade me enganas” de “F de Fraude”.
No papel do realizador aclamado e mulherengo, não está o próprio Welles, mas o seu duplo: o grande amigo e genial director ele próprio John Huston. No papel de Brooks Otterlake, o jovem discípulo e grande promessa da realização, não está também o que Welles fora, mas o seu outro duplo: o grande amigo e de igual modo genial director Peter Bogdanovich. Na parte da sátira ao cinema de então, não faltam outros realizadores e estandartes da arte à época: Dennis Hopper em participação especial enquanto ele mesmo, representando a “nova” Hollywood; Claude Chabrol noutra participação especial também enquanto ele mesmo, garantindo a quota da nova vaga europeia (Paul Mazursky, também lá perdido, e um jovem Cameron Crowe, ainda desconhecedor do que o destino lhe traria). No papel de musa, o corpo, o olhar e a presença que não diz uma só palavra durante todo o filme, mas que é a imagem que persiste muito depois de ele terminar: Oja Kodar, a bela croata e namorada de Welles no último terço da vida, coautora do argumento e colaboradora dele em todas as obras finais.
Peter Bogdanovich diz que a ideia nasceu de uma conversa entre ele e Welles, quando este se lamentava de ninguém lhe escrever uma biografia. Já o próprio Welles deixou entender que a inspiração seria, na verdade, Ernest Hemingway, que se matara, como o pai de Welles, e que o filme compara explicitamente a Hannaford.
“O Outro Lado do Vento” é, obviamente, um filme sobre cinema. E é também um filme sobre amizade e traição. Mas é claro que é um filme sobre Welles. A própria Oja ofereceu, a este propósito, uma chave de leitura: quando conheceu Welles, conta, ele intimidava-a na sua enorme figura de chapéu e capa – parecia a Oja o próprio vento. Mas, aos poucos, ela aproximou-se e ele revelou-se-lhe; ela conhecia “o outro lado do vento”, ele, também o homem casado, que com ela levaria uma vida dupla até ao fim dos dias. E assim chegámos a este título que Nicholas Sparks não desdenharia. O filme maldito de Orson Welles é sobre ele, mas sobre o outro lado dele, porventura sobre ela. Mas nunca foi acabado e nunca saberemos o que queria exactamente dizer, o que em si mesmo diz quase tudo o que precisamos de saber sobre Welles.
História do filme que se passou fora do filme
Os problemas começaram muito cedo. Ao longo da carreira, Orson Welles foi-se aproximando de um cinema cada vez mais insatisfeito com a escrita e mais sequioso do imprevisto e do real. De acordo com o próprio, o que de mais incrível podia acontecer num filme era um acidente; um realizador era “aquele que presidia aos acidentes”.
Tal como Welles sugere muito visivelmente acerca de Jake Hannaford n’ “O Outro Lado do Vento”, também ele estava a filmar sem plano; ia decidindo à medida que avançava – e não era a primeira vez que o fazia. Aos actores, pedia que improvisassem, enquanto, em torno, filmava com um ror de câmaras que faria o terror de qualquer editor na hora da mesa de montagem. As três semanas previstas para a rodagem das cenas de Rich Little foram facilmente pulverizadas e o imitador de profissão teve de ir embora para assumir outros compromissos, obrigando a equipa a filmar de novo todas as cenas de Otterlake, a segunda personagem mais importante do filme, agora encarnada por Peter Bogdanovich. Quando John Huston chegou ao set para rodar as suas primeiras cenas, descobriu em conversa que a equipa estava a trabalhar no filme há já três anos. Três anos. Sem protagonista.
Volta e meia, as filmagens eram interrompidas porque alguém tinha de ir fazer outro trabalho com que se comprometera; o próprio Welles e o incansável director de fotografia, Gary Graver, ausentaram-se em determinados períodos para irem ganhar dinheiro a fazer qualquer rentável que lhes permitisse, depois, regressar ao projecto. Acumulavam-se os problemas financeiros e logísticos. A rodagem, que tinha começado em 1970, só acabaria em 1976. E, mesmo assim, ainda estávamos muito longe de existir um filme.
O ayatollah, os herdeiros e o coração que falhou
Nos raides em busca de quem ainda lhe aceitasse financiar as obras de arte fabulosamente cara, Welles tinha descoberto o ouro junto de Medhi Bushehri, nada mais nada menos do que o cunhado do último Xá, Mohammad Reza Pahlavi, conseguindo assim a proeza de reunir, na mesma produção, França, Estados Unidos da América e Irão. O problema foi o que aconteceu depois.
Em 1979, a revolução iraniana derrubou a monarquia e instaurou o regime republicano islâmico dos ayatollahs que dura até hoje. Pouco sensível aos discursos de Welles sobre arte e autoria e mais preocupado em proteger os interesses do Irão, Ruhollah Khomeini mandou confiscar o filme, isto é, todas as 96 horas de película que dele existiam. Iniciou-se, então, um longo diferendo jurídico pela posse de “O Outro Lado do Vento”, que, entretanto, aguardava em bruto, nas profundezas de um cofre qualquer em Paris.
Como se não bastasse o ayatollah, havia ainda a lei da vida. Orson Welles morreu na manhã de 10 de Outubro de 1985, não surpreendentemente de ataque cardíaco. Tinha 70 anos, como o seu alter-ego Jake Hannaford no filme. Gary Graver, que passara quase todos os dias dos últimos 15 anos às ordens de Welles, ficou tão órfão que, durante ano e meio, andou com as cinzas da lenda agora morta na mala do carro. E foi assim que, à disputa com o Irão, se somou uma guerra com Beatrice Welles, a filha, que se reclamava herdeira de toda a produção do pai, e outra com Oja Kodar, a companheira, a quem Welles legara em testamento a totalidade da obra inédita.
[imagens dos bastidores do filme:]
Anos de guerra jurídica levaram a sucessivos anúncios de Peter Bogdanovich – alegadamente investido pelo próprio Welles de garantir que “O Outro Lado do Vento” veria, alguma vez, a luz do dia – de que estava para breve uma solução para o impasse. Mas nunca estava. Ou porque a montagem feita por Graver a partir de uma cópia não era suficiente para entusiasmar investidores. Ou porque a Showtime, que chegou a ter a chave na mão, recuava à última da hora. Ou porque Oja roía a corda e pedia um acordo melhor, também traumatizada pelo resultado de outro projecto inacabado de Welles, entretanto finalizado por terceiros: “Don Quixote”. Bogdanovich, Noah Baumbach, Wes Anderson, JJ Abrams e Clint Eastwood, são alguns dos grandes nomes do cinema que, ao longo dos anos, se envolveram em campanhas de angariação de fundos para a conclusão do filme que nunca resultaram (Eastwood, aliás, tal como Oliver Stone, acabariam acusados por Oja Kodar de plagiarem personagens, frases e até o estilo de montagem de “O Outro Lado do Vento”, de que conheciam trechos e apontamentos).
Orson Welles começara a carreira com “Citizen Kane”, entronizado como “o melhor filme alguma vez feito”; terminava com “O Outro Lado do Vento”, “o melhor filme que nunca chegou a ser feito”. O alfa e o ómega. Dois gémeos, perfeitos e falsos, como tanta coisa em Welles – haveria carreira mais perfeita?
If you can’t fix it, netflix it
Até que, em Abril de 2016, saía a notícia: a Netflix, grande casa de streamings e outras maravilhas modernas, tinha assinado um contrato de 5 milhões de dólares para a conclusão de “O Outro Lado do Vento”, mais a feitura de um documentário para o acompanhar. Em Março seguinte, chegaram a Los Angeles caixas e caixas com as 45 horas de negativos originais da parte da festa e as 51 do filme dentro do filme, mais “dailies” e outras filmagens, todas as anotações do realizador e ainda os 40 a 45 minutos que chegaram a ser editados pelo próprio Welles. Todo o tesouro, uma espécie de santo graal da história do cinema, entregue nas mãos de Bob Murawsky, editor de três “Homem-Aranha” e oscarizado a meias com a mulher, Chris Innis, pelo magnífico trabalho em “Estado de Guerra”.
Já em 2018, era revelado o brilhante trailer e pressentida a bela banda sonora de Michel Legrand. Por fim, o filme nunca feito agora feito estreava mundialmente a 31 de Agosto, no Festival de Veneza, e agora, a 2 de Novembro, em qualquer computador, smartphone ou afim perto de si, desde que ligado à Netflix. Em complemento, é só não clicar em nada no fim e deixar seguir automaticamente para “Amar-me-ão Quando Eu Morrer”, frase apócrifa atribuída a Welles e título do documentário de Morgan Neville. Apresentado e narrado por Alan Cumming, ajuda a fazer luz sobre toda a história do filme e os pequenos segredos nele implicados, regressando a uma reveladora conversa de Welles com um grupo de jornalistas em 1966.
Sinta-se bem, sinta-se Welles
E agora, que há filme, que dizer?
Antes de mais, que o cinema é um lugar estranho. Passaram 48 anos desde o começo da rodagem, muitos dos actores e técnicos morreram, incluindo Welles. E que irónico que é estarmos a testemunhar um dos mais aguardados momentos da história do cinema e ele acontecer… na Netflix. Sem direito a grande ecrã, a grandes plateias, cartazes, filas para o bilhete, salas lotadas, marcações na agenda, às melhores roupas, ao falatório no final. Não, a última obra-prima perseguida por um dos mais importantes cineastas da história chega-nos do tamanho do ecrã que tenhamos em casa, porventura em chinelos e pijama, enroscados no sofá comendo noodles e interrompendo para verificar as notificações do whatsapp. E, no entanto, não fosse a Netflix e nem haveria filme…
Que estranho, irónico, tragicómico é o cinema quando Gary Graves, o director de fotografia desta última obsessão de Orson Welles, o homem que foi as mãos e os olhos do génio criador durante os últimos 15 anos da vida daquele, se tornasse depois no premiado pornógrafo Akdov Telmig, aliás, Vodka Gimlet ao contrário (diz-se mesmo que Welles ainda o ajudou a editar uma dessas obras-primas sobre primas do mestre de obras: “3 A. M.”)?
Há cenas extraordinárias em “O Outro Lado do Vento”, a começar pela fabulosa cena de amor de Oja Kodar num automóvel que ninguém diria parado, sob a chuva e múltiplas luzes que a tornam por si só uma obra de arte autónoma e facilmente destacável e exibível em qualquer grande museu de arte contemporânea do mundo. Mas é igualmente verdade que, a partir de determinado momento, é difícil afastarmo-nos do ritmo repetitivo dos diálogos e da edição e da sensação de pescadinha de rabo na boca de tudo aquilo a que falta, porventura, uma saída, aquela que Welles não chegou a encontrar.
A determinado momento de “Amar-me-ão Quando Eu Morrer”, a viúva de Gary Graves afirma que qualquer pessoa que não estivesse na cabeça de Orson Welles não sabia sobre o que era o filme. Noutro momento, ficamos a saber que, depois de meses de edição em torno de uma só cena – a “orgia da casa de banho” – Welles confessou a Graves que o conceito do filme tinha começado a evoluir. Perante o choque do director de fotografia – como poderia o conceito do filme “começar a evoluir” agora, que estava já tudo filmado – Welles respondeu, sem pestanejar: “Está tudo na edição”.
E a edição é, justamente, tudo o que sobrou para a Netflix e para Bob Murawsky, que fez certamente um trabalho digno, mas que nunca será o filme que Welles faria pela simples razão de que ele não é Welles. Ninguém é. E nunca ninguém foi terminar um Picasso, ou pintar um Picasso a partir dos rascunhos de Picasso, e obter daí um Picasso…
Entre outras pérolas atiradas pelo charmant Welles a uma jornalista na referida conversa de 1966, está uma em que diz que queria um filme tão livre que talvez pudesse ser apenas as pessoas a falarem sobre o filme. Se o mestre estiver certo, então “O Outro Lado do Vento” não é o filme que estreou agora; é o filme que começou com o início da rodagem em 1970, ou mesmo antes, nessas conversas preliminares, e que agora, com a estreia desta montagem na Netflix, teve, simplesmente e por fim, a última cena. O filme inacabado de Welles… acabou.
“Quem sabe?”, pergunta Brooks Otterlake, em voice-over, no final de “O Outro Lado do Vento”. “Talvez observemos certas coisas com demasiada atenção. Sequemos-lhes a virtude, suguemos-lhes o suco vital.” E, depois, jogando com a duplicidade de “shoot” (filmar e disparar): “Filmamos os grandes lugares e as pessoas bonitas, todas essas raparigas e rapazes – e matamo-las” (“shoot ‘em dead”).
Como pôr a vida dentro de um filme sem a matar. Como se, de repente, o tempo do cinema não fosse já o que eterniza, mas o de Saturno, que mata. Talvez toda a carreira de Welles. O beco absurdo e sem saída de toda a sua angústia.