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Carlos Manuel Martins / Global Imagens

Carlos Manuel Martins / Global Imagens

O plano de um colecionador, as contas nos tribunais e um futuro por definir: para onde vai o Museu Berardo?

Mudou o panorama museológico português, deixa de existir a 1 de janeiro e não há data de reabertura confirmada. Contamos a história e as polémicas e ouvimos especialistas sobre o que pode acontecer.

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, decretou o fim do protocolo do Estado com o empresário José Berardo em maio e o consequente encerramento do Museu Coleção Berardo no fim do ano. A extinção da Fundação foi aprovada nesta última semana de 2022, ainda que a legalidade da decisão tenha sido contestada. Trata-se da coleção de arte moderna e contemporânea mais vista do país, 10.655.452 visitantes desde a data da sua inauguração, em 25 de junho de 2007, a 30 de novembro de 2022. O museu deixa de existir a 1 de janeiro de 2023 e as portas fecham-se sem qualquer data prevista de reabertura do Módulo 3 do Centro Cultural de Belém e poucas certezas quanto ao seu futuro conteúdo expositivo.

“Neste momento é prematuro situar uma data para a reabertura ao público, na medida em que essa decisão está inevitavelmente relacionada com o teor da decisão judicial que venha a ser tomada relativamente à coleção Berardo”, diz ao Observador o Ministério da Cultura (MC) em resposta oficial. “Caso o arresto da coleção não seja alterado, e se mantenham os termos vigentes – obras à guarda do presidente da Fundação CCB e disponíveis à fruição pública – o Ministério da Cultura continuará a garantir a conservação e a segurança de todas as peças, incluindo o pagamento dos seguros associados, no valor anual de cerca de meio milhão de euros”, continua o MC, mas caso isso não aconteça não há qualquer ideia em cima da mesa. Ou seja: “No dia 3 de janeiro poderá haver condições para abrir portas ao público, disponibilizando à fruição pública somente a Coleção Berardo”. Um cenário que “só se verificará se até lá se mantiverem os termos do arresto, ou seja, se até lá não houver uma decisão judicial que eventualmente altere o cenário vigente”, como explica detalhadamente o MC ao Observador.

A reabertura do Módulo 3 do CCB, como foi anunciado em maio sob a designação de Museu de Arte Contemporânea de Belém, e com novas obras em exposição, provenientes da Coleção de Arte Contemporânea dos Estado (CACE) e da Coleção Ellipse — que entretanto passou a ser propriedade do Estado português – acontecerá algures “durante o ano de 2023”, afirma ainda o MC, que adianta que qualquer questão ligada com a programação daquele espaço “por enquanto não se coloca, na medida em que o CCB integra no seu Conselho de Administração Delfim Sardo, reconhecido curador”, que chegou a ser diretor do Centro de Exposições do CCB entre 2003 e 2006, ou seja, será ele quem virá a definir o que o público poderá passar a ver no novo museu. No que respeita ao futuro dos 26 trabalhadores do Museu Berardo, garante o MC, que “as atuais relações laborais não serão postas em causa”, mas em que moldes serão definidas não foi esclarecido nem aos próprios.

Sabe-se apenas que a porta de entrada do antigo Centro de Exposições será deslocada para a zona das bilheteiras e que a remoção do nome de Berardo se iniciará de imediato

Entretanto, fecharam também todas as exposições temporárias do antigo museu e foram devolvidas todas as peças que aí se encontravam emprestadas, pois a instituição que juridicamente as albergava deixou de existir. No Módulo 3 do CCB as obras começarão na próxima semana. No segredo dos deuses, sabe-se apenas que a porta de entrada do antigo Centro de Exposições será deslocada para a zona das bilheteiras e que a remoção do nome de Berardo se iniciará de imediato.

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15 anos depois, qual a reflexão que o Estado português vai fazer sobre a criação de um museu de arte moderna e contemporânea e qual a atuação política que se seguirá?

À procura de um Portugal contemporâneo

Na génese do Centro Cultural de Belém, recorde-se, a criação desse museu que viria suprir a escandalosa lacuna do meio artístico nacional não foi tida em conta. Nessa altura, a intelligentzia política optou primeiro pela construção de um vago Museu das Descobertas. As salas de teto baixo do CCB existem, contava à época Manuel Salgado, um dos arquitetos do Centro Cultural de Belém, para pôr mesas com mapas dos Descobrimentos portugueses. A ideia foi por água abaixo, e ainda bem, uma narrativa neocolonial no limiar do século XXI não teria sido a melhor opção nacional em termos culturais. Mas a estrutura arquitetónica não mudou. Ali, no último módulo construído, depois dos gabinetes administrativos e dos auditórios, abriu então, em 1993, um Centro de Exposições temporárias. José Teixeira foi gerindo o espaço como pôde, albergando mostras entre arquitetura, arte, arte contemporânea, arte antiga, tecnologias…

Quando em 1996, entra a primeira administração do CCB, chefiada por Fraústo da Silva, a ideia ainda era fazer um museu, mas nada aconteceu. O Centro de Exposições ficou a cargo de Margarida Veiga que contava com Pedro Lapa na equipa, aquele que viria a ser o segundo diretor artístico do Museu Coleção Berardo. “Quem foi dirigir o CCB, escolha ou não de Manuel Maria Carrilho, foi o Fraústo da Silva, que não tinha propriamente uma ideia muito favorável a um museu ali, tinha algumas ideias vagas. Detestava arte contemporânea. Na primeira exposição do nosso programa, uma mostra sobre a cena artística do Reino Unido em 1996, os administradores fugiram todos. A não ser o Miguel Lobo Antunes que ficou e sempre defendeu aquilo. O Fraústo da Silva foi lá ver a exposição em montagem e a seguir foi para o Brasil, a Adelaide Rocha não apareceu na inauguração. Percebemos logo com o que é que contávamos”, lembra Pedro Lapa em entrevista ao Observador.

A criação da Coleção Berardo surgiu então subitamente em 1992. E todo o meio artístico, critico, curatorial ficou extremamente entusiasmado. Isso coincidiu com a construção do CCB e rapidamente a ideia do destino da Coleção para esse espaço era visto como certo. Muito se insistiu nisso na altura e há reuniões realizadas entre os agentes culturais que vão nesse sentido.

Estava aparentemente esquecido o projeto ambicioso da criação de um museu de arte moderna e contemporânea no CCB. Apesar de ser óbvio para todo o meio cultural português a necessidade que o país tinha desse grande museu, tal como em Madrid existe o Reina Sofia, em Paris o Pompidou, ou em Londres a Tate. Portugal fechava novamente os olhos à arte como o fizera em 1911, altura em que a República criava o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, cujo espaço que lhe foi atribuído inviabilizava até hoje qualquer missão que um museu pudesse ter nesse sentido.

Mais de cem anos passados a questão em cima da mesa é exatamente a mesma. A prioridade continua a ser definir uma estrutura museológica com esse desígnio. A diferença é que agora existe a Coleção Berardo, a Coleção Ellipse e a Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), que foi pensada no quadro estritamente nacional, e que vem tentar suprir a carência do tal museu de arte moderna e contemporânea quando começa a ser desenvolvida. O que acontece exatamente na mesma linha da anterior Coleção de Arte da Secretaria de Estado da Cultura, que em 1976, era então David Mourão-Ferreira secretário de Estado, tinha em consideração que o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado estava encerrado e que era necessário continuar a acompanhar os desenvolvimentos artísticos pelo que o Estado não se poderia alhear e teria de proceder a aquisições dos seus artistas. Essa coleção foi sendo realizada até 1990, ano em que foi concluída porque se pensou então, ao contrário do que aconteceu, que se dava início ao projeto de Serralves e que esse projeto ia finalmente suprir essa necessidade. A CACE parece pois surgir com perspetivas muito semelhantes, e o que a motiva é tão triste quanto o que motivou a outra em 1976, que é o alheamento do Estado da organização museológica relativa a este domínio.

A criação da Coleção Berardo surgiu então subitamente em 1992. Isso coincidiu com a construção do CCB

“A Lei Quadro dos Museus define que não existem coleções fora de museus e que são os museus que devem fazer as coleções. São os museus que têm os instrumentos físicos para a manutenção correta das coleções, os recursos humanos especializados para a sua manutenção e gestão, apresentação, estudo e investigação. Pelo que tenho todas as reservas em relação a uma coleção que não pertence a uma instituição. Mas foi assim que esta coleção foi criada e terá uma missão que essencialmente parece ser itinerante. Parece-me que é uma parte que se pode juntar a um todo que tem que ser previamente definido. E que, volto a insistir, é a instituição de um museu de arte moderna e contemporânea”, afirma Pedro Lapa.

A arte das negociações

Passado pois todo o século XX, Portugal continuava sem nenhuma grande coleção de arte moderna e contemporânea internacional, tornando-se num dos poucos países na Europa onde isso aconteceu. A criação da Coleção Berardo surgiu então subitamente em 1992. E, recorda o historiador de arte, todo o meio artístico, critico, curatorial ficou extremamente entusiasmado. Isso coincidiu com a construção do CCB e rapidamente a ideia do destino da Coleção para esse espaço era visto como certo. Muito se insistiu nisso na altura. Há reuniões realizadas entre os agentes culturais que vão nesse sentido, a reflexão era conhecida de todos, e a coleção já tinha sido apresentada numa primeira mostra em 1993, na Galeria EMI – Valentim de Carvalho. Até a revista americana ARTNews tinha publicado, em 1995, “Portugal’s Mystery Man”. Mas Cavaco Silva, então primeiro-ministro, recusou fazê-lo.

José Berardo encontrou então, em 1996, outra solução que envolveu a Câmara Municipal de Sintra, liderada por Edite Estrela, que teve a visão para acolher rapidamente o acervo através de um primeiro acordo de comodato para 324 peças e com a duração de dez anos. A Coleção esteve exposta desde 17 maio de 1997 no antigo casino da vila transformado em Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo, um espaço reduzido, mas que permitiu um primeiro contacto com as suas peças por parte do público português. Foi também um período importante em que a Coleção continuou a integrar obras nomeadamente de alguns artistas portugueses. Não obstante, também em 1996, a 24 de setembro, o empresário assina outro acordo com a Fundação das Descobertas/Centro Cultural de Belém, que permitia ao Centro de Exposições utilizar obras da Coleção nas suas exposições, formar até um núcleo para apresentação continuada e guardar nas suas reservas parte desse acervo. Este protocolo tinha a duração de cinco anos e era renovável por períodos de três.

“As gerações todas do século XX para verem [obras como que foram expostas pelo Museu Berardo] ou viram reproduções ou tiveram que se deslocar ao estrangeiro. A partir da existência desta coleção isto passou a ser uma realidade. E foram milhares de escolas que o fizeram.”
Pedro Lapa, diretor do Museu Berardo entre 2011 e 2017

Quando em 2006, a 9 de agosto, foi finalmente assinado e publicado em Diário da República, o mais célebre acordo de comodato realizado entre o Estado e José Berardo, tinha havido mais do que tempo para pensar no que se queria fazer do Módulo 3 do CCB, estrutura que previa nos seus estatutos a criação de um Museu de Arte Moderna e Contemporânea. Em vez disso, foi dada carta branca ao comendador. Foi exposta a sua coleção e foi-lhe dado o espaço todo para isso. Assinaram o protocolo Isabel Pires de Lima, ministra da Cultura, António Mega Ferreira, presidente da Fundação Centro Cultural de Belém, a Associação Coleção Berardo, representada por José Berardo e Renato Berardo, e o colecionador em nome próprio. Foi depois criada a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo, entidade que veio a gerir e administrar o Museu Coleção Berardo inaugurado a 25 de junho de 2007 com pompa e circunstância na presença também de José Sócrates, à data primeiro-ministro de Portugal.

Não era o valor da Coleção Berardo que devia estar em causa. Na verdade, “esta coleção tem uma importância absolutamente única, decisiva, e diria mesmo absoluta, no contexto português. Nunca existiu uma coleção desta escala em Portugal”, avança Pedro Lapa. “Recebemos uma coleção diferente, a Coleção Gulbenkian, um importante acervo numa outra área cronológica e de outras tipologias, mas uma coleção de arte moderna internacional que o país necessitava e de que careceu durante um século existia finalmente. Não houve nenhuma instituição, pública ou privada, a elite financeira do país nunca se dispôs a fazê-lo. Quem se dispôs a fazê-lo foi o comendador Berardo coadjuvado pelo Francisco Capelo e foi um trabalho absolutamente único, tão importante que alterou o panorama do colecionismo em Portugal.”

Começámos a ver coleções com outra extensão, menos ambiciosas mas a serem construídas, tornarem-se públicas, encontrarem espaços de apresentação pública

Mário Cruz/LUSA

Começámos a ver coleções com outra extensão, menos ambiciosas mas a serem construídas, tornarem-se públicas, encontrarem espaços de apresentação pública. Houve um salto qualitativo no colecionismo grande. “Quando comecei a fazer a Coleção Ellipse, lembro-me do João Rendeiro me dizer sempre que o exemplo para ele tinha sido o comendador Berardo e a Coleção Berardo. Vejam-se os exemplos da Coleção Norlinda e José Lima, da Coleção Cachola…”

As obras, os visitantes e os empréstimos

O objetivo de Berardo tinha sido sempre o de construir uma grande coleção para apresentação museológica pública. Até 1999 adquiriu a esmagadora maioria das peças do acervo com a ajuda de Francisco Capelo, seu sócio nos negócios, economista e conhecedor de arte, também ele colecionador por exemplo da Coleção do Design e da Moda doada à Câmara Municipal de Lisboa e ao MUDE, ou da Coleção de Máscaras e Marionetas do Mali doada ao Museu Nacional de Etnologia. Foram aplicados elevadíssimos valores, cerca de 40 ou 50 milhões de euros à época, calcula-se. As aquisições aconteceram nas grandes leiloeiras mundiais, da Christie’s à Sotheby’s, mas também em galerias de renome como a Mayor Gallery, a Lisson Gallery, de Londres, ou a Galerie 1900-2000, Galerie Albert Loeb, de Paris. “Composição”, 1948, de Maria Helena Vieira da Silva, é a primeira compra para a Coleção Berardo, feita em 1992. “Quadro (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento)”, 1923, de Piet Mondrian, a última aquisição, em 1999, deste lote de 862 obras que viriam a ser consideradas para o acordo de comodato e cuja avaliação da Christie’s fixou por um preço de 316 milhões de euros, que seria válido até final do protocolo de dez anos, podendo o Estado exercer, se assim o entendesse, o direito de opção de compra. Tendo na mão os nomes grandes do Surrealismo, do Construtivismo, da Pop Art, da Arte Povera ou do neoexpressionismo, movimentos bem representados numa coleção didática que procurou desde o início seguir os cânones da História da Arte ocidental, o Estado comprometeu-se a não classificar o acervo como “tesouro nacional” e abriu mesmo uma exceção à legislação para o poder fazer.

No domínio da arte moderna e contemporânea tudo mudou em Portugal. O público em geral e o escolar muito em particular passou a ir ao Museu Berardo ver Picasso, Warhol, Duchamp, Miró, Max Ernst, Bacon, Mondrian, e tantos, tantos outros… “As gerações todas do século XX para verem isto ou viram reproduções ou tiveram que se deslocar ao estrangeiro. A partir da existência desta coleção isto passou a ser uma realidade. E foram milhares de escolas que o fizeram”, frisa ainda Pedro Lapa, diretor do Museu Berardo entre 2011 e 2017, altura em que a Coleção Berardo exposta passou a usar 75% do espaço disponível do CCB. Os números são avassaladores. O museu esteve regularmente representado no ranking dos 100 museus mais visitados do mundo elaborado pelo The Art Newspaper. Em 2019, o ano em que recebeu mais visitantes, foi visto por mais de um milhão de pessoas. Só nas mais variadas atividades do Serviço Educativo, o museu contou, por ano, com uma média de 50 mil participantes. O Museu recebeu grupos escolares, a partir dos 2 anos de idade até ao ensino universitário.

Nunca houve um museu em Portugal com tantos pedidos de empréstimos quanto este, o que mostra a relevância do acervo e o conhecimento internacional sobre ele para as grandes exposições temporárias e de arte moderna que são realizadas em todo o mundo. “Isto foi um salto muito significativo e esse aspeto é fundamental ter em consideração para tudo o que neste momento tem que ser pensado", diz Pedro Lapa.

Existiram vários projetos continuados que envolvem alunos, professores e famílias ao longo de um ano letivo ou mais. Como exemplo salienta-se “Uma Viagem pela Arte” com duração de quatro anos letivos ao longo do primeiro ciclo, sendo um trabalho desenvolvido no museu, na escola e também envolvendo a família dos alunos. Esses projetos continuados estavam muitas vezes associados a escolas de ensino especial (Colégio Bola de Neve, CERCIS, AFID, CEDEMA, Condessa de Rilvas, ZAZZO). Com a Casa Pia foi desenvolvido desde 2015 o projeto “Árvore”, com crianças de casas de acolhimento (crianças que foram retiradas às famílias pelos tribunais, enquanto não se decide o seu futuro). Assim, todos os sábados de manhã estas crianças iam ao museu e desenvolviam trabalhos com projetos definidos anualmente, a partir da Coleção Berardo e das exposições temporárias, que depois, no fim do ano letivo dava origem a exposições na Casa Pia e no museu, e um documentário vídeo.

Mais. Nunca houve um museu em Portugal com tantos pedidos de empréstimos quanto este, o que mostra a relevância do acervo e o conhecimento internacional sobre ele para as grandes exposições temporárias e de arte moderna que são realizadas em todo o mundo. “Isto foi um salto muito significativo e esse aspeto é fundamental ter em consideração para tudo o que neste momento tem que ser pensado. Uma vez que estamos no fim de um ciclo e outro ciclo começará”, adianta Pedro Lapa ao Observador, um dia antes da apresentação do Catálogo “Coleção Berardo 1909-2019, no dia 20 de dezembro de 2022, no museu que agora encerra, o último ato público de José Berardo naquele espaço, perante uma plateia de onde tinham desaparecido os grandes nomes da arte nacional, dos agentes culturais e do Governo português, mantendo-se na fila da frente apenas o presidente do CCB, fiel depositário da Coleção, arrestada desde julho de 2019, como resultado de um processo interposto em tribunal contra José Berardo pela Caixa Geral de Depósitos, pelo Millennium BCP e pelo Novo Banco. Na mesma semana, todos os funcionários do museu recusaram falar publicamente com o Observador, incluindo o bloco diretivo, num clima de incertezas e de prostração.

A coleção e o colecionador

Mesmo conhecendo os dados oficiais do Museu Berardo, em 2016, o Estado volta a assinar novo protocolo com o comendador. É então ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes. Assina-se um acordo de comodato agora por apenas seis anos. A opção de compra do Estado desaparece do documento, bem como a existência de um fundo de aquisições conjunto no valor de 500 mil euros para cada parte, o qual fora previsto no primeiro protocolo, mas que em boa verdade só veio a durar dois anos, tendo sido compradas por Jean-François Chougnet, primeiro diretor do museu, 235 obras, na sua maioria de artistas portugueses como Helena Almeida, Pedro Cabrita Reis, Alberto Carneiro, Gerard Castello Lopes, Lurdes Castro, entre outros.

O comendador Joe Berardo, durante a apresentação à comunicação social do Museu Berardo Estremoz, dedicado ao azulejo, que abre ao público no dia 26 de julho com a exposição "800 Anos de História do Azulejo", Estremoz, 22 de julho de 2020. NUNO VEIGA/LUSA

"Antes da crise, a figura de José Berardo era polémica, mas popular. Ele era uma espécie de Robin Hood, um self made man. Depois da crise tudo mudou", diz Jean-François Chougnet

NUNO VEIGA/LUSA

Nessa altura, data da assinatura do segundo protocolo, o Museu Berardo e a Fundação Coleção Berardo já tinham sido alvo de cortes significativos, quer pela redução das verbas que foi transversal a todas as instituições durante o período de vigência da Troika, quer por opções governamentais. O corte no orçamento de programação do museu chega aos 60%, obrigando ao cancelamento de exposições previstas e até ao pagamento de indeminizações por consequentes incumprimentos. Esta foi a única instituição a que os sucessivos governos não repuseram o corte de 30% do período da Troika, não existindo alterações desde 2013. Ao longo de 15 anos, o Estado dotou a Fundação Coleção Berardo de €42.929.838.00. Durante o mesmo período, e para se uma correta contextualização deste valor, a Fundação CCB recebeu €119.470.713.00, a Fundação de Serralves €61.928.091.00, e a Casa da Música €137.000.000.00. Foram realizadas 125 exposições e publicados 67 catálogos.

“No contexto de 2007 a 2011, antes da crise, a figura de José Berardo era polémica, mas popular. Ele era uma espécie de Robin Hood, um self made man. Depois da crise tudo mudou. No entanto, a figura do colecionador nunca teve boas relações com o pequeno meio artístico português. Com os artistas foi diferente, teve excelentes relações por exemplo com o Pedro Cabrita Reis, e com outros artistas, mas com o meio dos curadores, diretores, instituições, ministério da Cultura, não”, explica Jean-François Chougnet ao Observador a partir de França. O antigo diretor do Parc de la Villette e do Centro Pompidou, em Paris, primeiro diretor do Museu Berardo, escolhido pelo empresário depois de o ter conhecido no Brasil, não tem muitas dúvidas em relação ao papel secundário que foi dado em Portugal àquele museu. “O papel desempenhado pela Coleção Berardo tem sido analisado não sob um ângulo artístico, mas principalmente mediático, anedótico, institucional e mesmo político”, escreve no texto que o catálogo agora publicado disponibiliza. “Houve sempre dificuldade em separar a coleção da figura pública do colecionador. Por isso, tudo foi desvalorizado, subestimado”, frisa o curador francês.

“Já há três ou quatro anos que o museu está afastado do circuito devido à má relação com o Ministério da Cultura. O museu tem estado a sobreviver. E a atual não renovação do protocolo é mais um episódio da falta de meios. A Rita Lougares [terceira e última diretora do museu, de 2017 até ao fim] teve um papel fundamental em manter o que podia manter, mas não houve uma dinâmica positiva." 
Jean-François Chougnet, primeiro diretor do Museu Berardo

“Já há três ou quatro anos que o museu está afastado do circuito devido à má relação com o Ministério da Cultura. O museu tem estado a sobreviver. E a atual não renovação do protocolo é mais um episódio da falta de meios. A Rita Lougares [terceira e última diretora do museu, de 2017 até ao fim] teve um papel fundamental em manter o que podia manter, mas não houve uma dinâmica positiva. Apesar do museu ter feito excelentes exposições, ficou afastado do circuito também por uma visibilidade a médio prazo. Para se fazerem projetos ambiciosos de exposições internacionais, tem que se poder trabalhar não a seis meses mas a dois, três anos. Já quando saí, em 2011, em plena crise financeira, estava a começar a ser difícil fazer projetos internacionais. O último que fiz foi a retrospetiva de Pedro Cabrita Reis que viajou a Hamburgo, Nîmes, Lovaina… Tivemos uma exposição da coleção em Paris, houve projeção internacional, co-produções com o MACBA – Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Tudo foi possível porque podíamos dizer que íamos fazer. E é isso que falta”, garante Chougnet.

“É como se o Estado tivesse delegado historicamente a constituição da coleção de referência da arte portuguesa à Fundação Calouste Gulbenkian (iniciada em 1957 e ganhando ímpeto depois de 1974, com cerca de dez mil obras no inventário) e o cuidado de enriquecer e difundir a arte contemporânea à sorte ou à paixão de colecionadores”, conclui o curador.

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