Ao décimo assalto, o silêncio.

Primeiro o barulho de um peso morto no linóleo, o corpo de um homem, e depois, então, o silêncio. Como quando falha a luz, e a interrupção é das grandes, daquelas de desligar povoações, Tony Janiro apagou de uma ponta à outra. Nem os pés dançam, nem as mãos lutam. A cabeça fundiu, o combate morreu ali.

No plano seguinte a câmara segue os movimentos de Jake LaMotta. Dos calcanhares até ao rosto culpado de Robert De Niro, o ator na pele do pugilista, que subira ao filme e calçara as luvas com o único propósito de estragar a cara a Janiro, atuando conforme o guião de Touro Enraivecido, guião que por sua vez apanhava os cacos da vida de LaMotta, sob a orientação do realizador Martin Scorcese.

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Esta conclusão de tiro e queda, observando o ato de pugilar – pugilar quer dizer combater a murro – embora muito sirva à expectativa do pagador de bilhete, embora tenha em cima dos ringues carreiristas em fila, e o nocaute seja o seu alimento, esta conclusão de tiro e queda, no boxe, acontece muito, mas não acontece sempre.

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Durante vinte anos, em Portugal, um homem foi campeão de boxe catorze vezes. Jogou de 1968 a 1988. Ganhou muito combate, mas nunca ganhou por KO (knockout, ou nocaute, em português) : “não gostava de massacrar ninguém. Não massacrava os rapazes. Brincava com eles. Por isso os meus combates eram bonitos. Não gosto, nem nunca gostei, do boxe massacre”.

Este campeão, que durante décadas foi dono e senhor do próprio corpo, hoje é um dos seiscentos portugueses com Esclerose Lateral Amiotrófica. O seu nome é Alcino Palmeira.

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Por mais que os médicos lhe digam que não, que o boxe não é a causa da doença, não é ele o responsável pelo fim dos músculos, na cabeça de Alcino o julgamento está feito, o culpado usava luvas e dois homens em tronco nu: ” se eu soubesse o que sei hoje, nunca tinha sido pugilista! A cabeça não nasceu para levar socos. Nasceu para deixar crescer cabelinho, para levar beijinhos”.

A relevância das toalhas de banho no crescimento de um atleta

Quando me encontro com o Alcino em novembro à porta de um café em São Roque de Lameira, é em boa parte para o levar comigo ao passado. 1964, entre tantas outras incertezas, não faz obviamente ideia do futuro, não tem como saber deste encontro, nem consegue prever que ao nosso lado, em 2014, uma multidão toma conta da rua. Uma pergunta traz mais uma pessoa com ela. Uma pergunta traz mais uma pessoa. O que é que foi? É uma praga de baratas naquele prédio verde. E assim sucessivamente, até serem muitos, os curiosos, e a resposta, a mesma, servir para uma manhã de conversa e boca aberta, que é como o espanto se põe quando apanhado de surpresa.
É nestes preparos que entrámos então em 1964, pela Praça da Flores e redondezas. Por lá a canalha raramente trabalha antes dos 8 anos. Ranho na tromba, dois pares de estalos no focinho, a vida é dura, às vezes os adultos funcionam a álcool, a educação passa muito pelas costas das mãos. E falinhas mansas, por ali, não havia. Dinheiro, ainda menos.

Perduram as memórias, na ponta da língua. Naquele tempo e naquele lugar, aquele chão fez crescer dois bairros, cem rapazes e vinte e oito casas. A equação dava quase para dez equipas de futebol, mas não foi bem assim que aconteceu, às portas da adolescência. Pinto Lopes, que hoje em dia é treinador de boxe, e também ele um miúdo na altura, foi quem puxou Alcino para dentro da modalidade, evitando com esse gesto algumas tareias domésticas. “Eu tive os meus primeiros sapatos aos 12 anos”, explica, logo concluindo o raciocínio: “para não estragar os sapatos, ia para o boxe. No futebol estragava os sapatos e isso não podia ser. No boxe podia estragar a cabeça à vontade”. Tal como Pinto Lopes, assim foi crescendo Alcino Palmeira, adubado pela rua, com a bola longe dos pés e mãos à obra.

A rapaziada, muito ciente da importância do calçado, nesse longínquo ano de 1964, encontrou novas perspetivas de futuro num anúncio publicado no Jornal de Notícias. Um quadrado numa das páginas chamava à atenção. Tinha a ver com abertura de inscrições para a secção de boxe do Futebol Clube do Porto, na rua Alexandre Herculano, ao fim e ao cabo não muito longe das vinte e oito casas, dos dois bairros, e principalmente dos cem rapazes com pés à mostra. Não indo todos, foram muitos. Foram aqueles que depressa se começaram a distinguir pelos sapatos imaculados e pelo rosto a descambar para as contusões. De todos cuidava sem exceção o médico José Eduardo Pinto da Costa, esse mesmo, o doutor das barbas brancas, o do Instituto de Medicina Legal, irmão de Jorge Nuno, o Pinto da Costa presidente do FC Porto há mais de trinta anos, que entrou em funções no clube pelo tal departamento de boxe anunciado no JN, como seccionista.

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Antes de chegar ao clube do coração e de uma vida inteira, Alcino Palmeira praticou esquivas com os vizinhos, ganchos com os vizinhos, cruzados e cruzados longos, na rua, com os vizinhos. Para tornar a coisa mais real amarravam toalhas nas mãos… “e aí está um boxeur”, conta o amigo Pinto Lopes. Necessidade e engenho calçaram as primeiras luvas.

Uma doença terrível foi ter com o homem ao paraíso, no Tarzan

Com 53 anos no bolso e algumas poupanças na carteira, a uma distância considerável do fim carreira, uns bons 17 anos mais tarde, Alcino pegou na família e foi meter-se durante uma semanita debaixo do sol da Catalunha. O homem que nesse estio de 2005 regressaria ao Porto não era o mesmo homem que tinha partido de férias para Salou. Não era, nem voltaria a ser. Passou a viver num registo ambulatório, de um médico para o outro, em hospitais, centros de saúde, de marquesa em marquesa. Aprendeu a lidar com as agulhas que lhe chupavam o sangue e a não as estranhar, conheceu todas as máquinas de ver pessoas por dentro, meteram-no na barriga delas, foi a exames, a exames, e tanto foi que um dia, insistindo com ele, a medicina deu por si a perceber de Alcino o que Alcino não sabia de si próprio, a não ser que algo não estava bem.

Sol catalão, mar mediterrâneo e português tripeiro, quando misturados, dependendo das doses de cada um dos ingredientes enunciados, pode resultar em algo completamente diferente da receita idealizada, que seria a de torrar, deitado em posição de missionário, um qualquer veraneante. Alcino foi ao forno e não saiu de lá assim. Da quietude, sabe da palavra e do seu significado, mas nessa vertente, enquanto qualidade ou defeito, ele era, por assim dizer, não praticante.

Num parque ajardinado de Salou encontrou certa vez um aparelho de exercícios físicos semelhante a um do quartel da sua recruta. E ali, tão longe do mancebo que um dia fora, Alcino fez o que tinha a fazer, exercitou-se naquilo. Aquilo era feito de pilares em cimento, os pilares tinham cordas penduradas, as cordas serviam para o exercitante fazer o caminho, de uma para outra, alternando as mãos, agarrado à que tinha, alcançando a próxima e assim sucessivamente, com muita atenção e força de braços, para não cair. Cair significava molhar os pés e o resto, conforme a queda, porque debaixo daquela teia para músculos abispados o chão fazia uma cova e a cova fora propositadamente tapada com água. Da parecença das cordas penduradas com lianas, dos homens lá entusiasmados muito ao jeito dos macacos, na tropa, ao tal aparelho de exercícios, chamavam-lhe Tarzan. À terceira passagem de mão, Alcino percebeu que não conseguia fazer o Tarzan. Caiu à água. Repetiu. Não conseguiu. Caiu. Desistiu, encharcado. Como estava de férias, para evitar traumas ou problemas, Alcino diz que disse “ó Tarzan, vai-te foder que não estou aqui para me chatear”, e se bem o disse, melhor o fez, esqueceu o assunto por uns dias.

Lutar, sem luvas, contra o destino

Só voltaria a abrir a porta daquela memória maldita no Porto. Deixou entrar um médico. O médico trouxe uns exames, dois, mais concretamente uma ressonância magnética e um electromiograma, este último a fim de analisar a atividade elétrica dos músculos e dos nervos que os controlam: “espetaram agulhas nos músculos e os músculos não reagiam todos da mesma maneira”. Apesar do alerta, no imediato urgia resolver uma nova imperfeição. A pesquisa dera com uma hérnia discal cervical. Os médicos recomendaram uma cirurgia, sem mais demoras. Alcino entrou no bloco operatório, “a operação correu muito bem” e saiu de lá com menos um defeito no esqueleto. O problema maior estava contudo escondido na musculatura. “Da cintura para cima, os meus músculos começaram a atrofiar”. A revelação, de pôr os nervos em franja, apontou o Alcino ao consultório do neurologista. O antigo pugilista, tão acostumado a defender golpes com os punhos plantados na linha dos olhos, nada podia fazer perante a força demolidora do destino. Sentado, de braços caídos, entre a urgência de saber de tudo e o pavor dessa inesgotável curiosidade, seguiu as indicações do especialista com a mesma disciplina com que seguira, no passado, os conselhos dos treinadores: “o neurologista mandou-me abrir as mãos. Viu logo que não havia músculos. Detetou uma esclerose, do foro neurológico”.

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O que aconteceu a Alcino Palmeira, acontece, por ano, em todo o mundo, a duas pessoas em cada cem mil habitantes: uma doença muito rara, progressiva, incapacitante, neurodegenerativa, não contagiosa, incurável. Sentado na cadeira do neurologista, ouviu falar pela primeira vez na Esclerose Lateral Amiotrófica. Sentado no mesmo sítio tomou conhecimento dos sintomas. Eles viriam ao seu encontro, sem dó nem piedade.

O regresso ao Porto trouxera consigo um homem e as suas dúvidas, muitas. De um momento para o outro passou a haver certezas absolutas e madrastas. Alcino fora encostado às cordas, encurralado a um canto, atingido da cintura para cima numa primeira fase, o que no boxe vem dentro das lei do jogo e há treino capaz de encaixar a carga de porrada, mas que na vida atira com qualquer um para fora do ringue. E ninguém está preparado para o semelhante. Ninguém.

As tão temidas consequências físicas e motoras apareceram nos membros superiores. Os braços pendurados ao longo do corpo denunciaram o início da decadência. Está tudo na palma da mãos. Tudo. Os ossos salientes. A pele a sobrar. Está lá tudo. A linha do coração, a linha da cabeça… a linha da vida. Está lá tudo. Tudo menos o músculo. E o movimento.

Foi pelas mãos que a vida de um homem começou a dar sinais de cansaço, pelas mesmas mãos que ganharam campeonatos e combates, as mesmas mãos que construíram Alcino enquanto gente de passagem. As pernas estão a ir atrás dessa fadiga, fraquejam, mas não estão sozinhas com as mãos e os braços. Também os músculos torácicos atrofiam. A parte respiratória está a ser afetada. Alcino tem ventilação assistida durante a noite. Tem e não desarma: “de tanto falar na doença, fiquei médico. Sei de tudo”.

Um punhado de amigos

“Cada mão tem 27 ossos. A cabeça não foi feita para levar porrada, mas as mãos não foram feitas para bater. Têm de ser muito bem ligadas. Muito bem isoladas”. Estão quatro antigos pugilistas à mesa de um café em São Roque da Lameira. O treinador Pinto Lopes agarra-se à disciplina da modalidade. Cipriano, um camarada de longa data, recorda a seleção de paraquedistas e um combate com o La Cueva de Carvalho. O senhor Caldas, treinador de boxe do Boavista, escuta. Cipriano conta que esteve anos a enrolar ligaduras e a distribuir chá no ginásio, antes de poder entrar no jogo. Alcino sorri. Caldas escuta. Pinto Lopes tem mais a dizer sobre a disciplina: “é a única modalidade em que os atletas se miram com todo o ódio dentro de si e acabam abraçados e aos beijos”. Agora todos o escutam, o momento é, para eles, solene, está a falar um entendido na matéria: “o boxe é para homens civilizados. É a modalidade que mais mulheres leva ao pavilhão. As mulheres, que são muito mais lutadoras do que os homens, vão apreciar os bons lutadores”. Só o silêncio das suas pausas interrompe o discurso. Silêncio. E uma conclusão: “o boxe era a única modalidade, antes do 25 de Abril, em que era exigido registo criminal limpo”. Eles vieram todos desse tempo. O Alcino, o Pinto Lopes, o Cipriano e o Caldas. Vem à baila o nome de José Eduardo Pinto da Costa, médico da secção de Boxe do FC do Porto e a certa altura, poucos saberão, presidente Associação de Boxe do Porto, algures na década de 1970.

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Pinto da Costa tem consultório montado na rua de Camões. Sabe da doença de Alcino e sabe dos pormenores da doença: “é uma distrofia muscular progressiva”. Sabe e não encontra ligação direta entre o boxe e a Esclerose Lateral Amiotrófica, não vê onde possa haver ali causa e consequência. Reconhece contudo outros riscos: “quando se recebe um soco há uma dispersão de forças que vai provocar uma faísca elétrica no cérebro, inofensiva. O lutador vai ao tapete e precisa de uns segundos para voltar ao normal”. No limite, adianta, “poderá levar à demência do pugilista. Há 100 mil milhões de neurónios. Um neurónio destruído… não é por aí. Mas a repetição, durante anos, vai provocar degenerescência cerebral”. No limite.

Em finais dos anos 60 do século passado, já licenciado em Medicina e Cirurgia, chefe de serviço do Instituto de Medicina Legal do Porto, a pensar no doutoramento em ciências médicas e em medicina legal com prova complementar em psiquiatria forense, que viria concluir em 1973, José Eduardo Pinto da Costa acumula funções. Chamado pelo irmão Jorge Nuno – na altura encarregado do boxe do FC Porto – assume o cargo de médico da secção. Chega a andar pelos bairros mais degradados da cidade à procura de miúdos para experimentarem as luvas e o ringue. Encontrou o Alcino Palmeira, o Pinto Lopes e outros que tal: “em vez de andarem a fumar e na má vida, faziam desporto. Tinha a ver com o envolvimento social”. Percorreu a Sé, a Ribeira, o lugar onde hoje é o Bom Sucesso. Nas ruas da cidade rara era a vez em que não dava de caras com rapazinhos de 8 ou 9 a fumar, alguns até com olhar de quem já tinha bebido uns copos. O envolvimento social empurraria o senhor doutor para a criação da Associação de Boxe do Porto, em 1970: “havia a necessidade de legalizar”. José Eduardo participou na terceira eleição como candidato. Saiu como presidente, terminada a contagem dos votos.

Alcino. Últimas questões

Sessenta e três quilos e meio. Peso pluma. Vinte anos no batente. Pugilista amador. Catorze títulos nacionais. Quinze títulos regionais. Alcino Palmeira pendurou a luvas em 1988. “Tinha muita experiência no desporto e não me quis andar arrastar em cima dos palcos”. O abandono não lhe doeu nada, até porque saiu sem sair de cena: “para mim foi mais fácil. Como dominava várias matérias, fui convidado para continuar ligado à parte técnica. Fui convidado para diretor técnico regional. Deixei o boxe, mas não deixei”.

O boxe amador não punha comida na mesa, não dava teto, mantinha o presente à deriva. E o futuro, esse sobredimensionado ponto de interrogação, aumentava de tamanho dia após dia. Alcino teve duas profissões na vida. Foi tipógrafo e barman. Enquanto barman “chegava a casa e não passava pela cama. Dizia-lhe adeus”. Fora isso, cuidava da alimentação, do descanso. Não fumava. Não bebia bebidas alcoólicas. Razões que ajudaram o atleta a aguentar com o homem.

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Tanto andou até que chegou a 2015. Foi-lhe diagnosticada Esclerose Lateral Amiotrófica há quase 10 anos. A média da sobrevida de um doente com Esclerose Lateral Amiotrófica vai dos 5 aos 8 anos. Alcino está acima da média. É um campeão, diz uma fonte clínica que tem acompanhado o processo desde o início: “ele está a aguentar muito muito bem”. O travão que vai aguentando a doença incurável tem o nome de Riluzol, medicamento que parece pressionar os neurónios. Mas… há sempre um mas: “ele tem a perfeita noção de que a doença vai evoluir. Tem de estar preparado”.

Como é comum nestes casos, Alcino Palmeira desenvolveu uma síndrome depressiva reativa. Está a ser medicado com antidepressivos: “quando fiquei assim quis arrumar comigo. Nada importava, nem família, nem amigos”. Alcino não quer ir embora sem partilhar a alma: “ou somos muito fortes ou ficamos um farrapo humano. Morremos aos bocados. Nem escrevo, nem me visto, nem o caralho. Já estou meio doutor. Já sei o que me vai acontecer”.