“Acho que estou prestes a ganhar a Bola de Ouro. Digo sempre que sonho, que sonhei, com tudo. Não tenho limites. Esta é uma nova geração. Ronaldo, Messi… Vão ter de parar. Temos de encontrar outro, alguém novo”. As frases, de uma ambição clara e sem espaço para falsas modéstias, são de Kylian Mbappé. Este domingo, na final do Campeonato do Mundo, o hat-trick de Mbappé não foi suficiente para conquistar o troféu pela segunda vez na ainda curta carreira — o que não invalida o facto de já restarem poucas dúvidas de que é mesmo o tal “alguém novo”, o herdeiro de Messi, o herdeiro de Ronaldo e o herdeiro do futuro do futebol internacional.
No Qatar, Mbappé igualou e quebrou vários recordes e abriu a porta a um conjunto de marcas que pode desafiar nos próximos Mundiais. Logo à partida, com os oito golos que marcou, bateu o registo de Pelé e tornou-se o jogador com mais golos na competição antes dos 24 anos — algo que levou o mítico brasileiro a dar-lhe pessoalmente os parabéns através do Twitter. Contra a Austrália, ultrapassou Paul Pogba e tornou-se o mais jovem de sempre a cumprir 60 internacionalizações por França, sendo ainda o segundo na história a assinar um hat-trick numa final depois de Geoff Hurst em 1966.
Mas há mais. Com os oito golos que apontou no Qatar mais os quatro que marcou na Rússia, em 2018, superou Henry, Zidane e Platini e é agora o segundo maior goleador da seleção francesa em Mundiais — ficando apenas atrás de Just Fontaine, que tem 13, num número que vai naturalmente alcançar nos próximos anos. Falhou o outro registo que pertencia a Pelé, não conseguindo tornar-se o segundo jogador com menos de 24 anos a conquistar dois Campeonatos do Mundo, mas no próximo Mundial pode já apanhar Lloris para ser o internacional francês com mais partidas na competição.
Há quatro anos, Messi estava no Barcelona e Ronaldo a saltar para a Juventus. E Mbappé já impressionava no PSG
2017 foi o ano de explosão de Kylian Mbappé. Sem ter sequer 20 anos, o avançado foi a grande novidade de um Mónaco de Leonardo Jardim que surpreendeu o PSG e conquistou a Ligue 1. Ao lado de João Moutinho e Bernardo Silva e capitaneado por Falcao, teve espaço e tempo para crescer e tornar-se uma das referências da equipa de um ano para o outro e sem ninguém perceber exatamente como. Em 2015/16, Mbappé marcou um golo em 14 jogos; em 2016/17, Mbappé marcou 26 golos em 44 jogos.
As exibições brilhantes e os recordes de juventude quebrados em catadupa, essencialmente na Liga dos Campeões, garantiram-lhe o salto para o PSG logo nesse verão. Sem que o valor real da transferência alguma vez tenha sido revelado — até pela complexidade do negócio, com o avançado a ser virtualmente emprestado na primeira temporada para respeitar os limites do fairplay financeiro –, as notícias da altura garantiram que Mbappé tinha custado 145 milhões de euros fixos mais 35 milhões em variáveis. Ou seja, era o adolescente mais caro de sempre, a maior transferência de sempre entre clubes do mesmo país e a segunda maior contratação da história, apenas atrás dos 222 milhões que Neymar custou ao mesmo PSG ao sair do Barcelona nessa mesma janela de mercado.
Na época de estreia pelo PSG, já ao lado de Neymar e Di María e ainda com Dani Alves e Cavani, voltou a conquistar a liga francesa e acrescentou-lhe a Taça de França e a Taça da Liga. Desceu ligeiramente a fasquia dos números, tendo marcado 21 golos nos mesmos 44 jogos, e chegou ao Mundial da Rússia com pouco mais de ano e meio enquanto internacional francês mas já como uma das referências do conjunto de Didier Deschamps.
Foi instrumental para a conquista do Campeonato do Mundo, tornando-se o mais novo de sempre a marcar por França na competição, o segundo adolescente a bisar num jogo de um Mundial depois de Pelé e também o segundo adolescente a marcar numa final de um Mundial, naturalmente também depois do brasileiro. Com quatro golos ao longo da prova, recebeu o prémio de Melhor Jogador Jovem e comprovou que já era dos melhores a atuar na Europa.
No mesmo ano, Lionel Messi ganhou a liga espanhola com o Barcelona, marcando 45 golos em mais de 50 jogos, mas não levou a Argentina além dos oitavos de final do Mundial — caindo precisamente com França, num encontro em que Mbappé bisou. Em 2018, Cristiano Ronaldo conquistou a Liga dos Campeões com o Real Madrid, a quarta em cinco anos, e decidiu deixar os merengues ao fim de quase uma década para apostar na Juventus. Na Rússia, tal como os argentinos, também Portugal foi eliminado logo nos oitavos, perante o Uruguai. Há quatro anos, todos eles — Mbappé, Messi e Ronaldo — viram Luka Modric levantar a Bola de Ouro, com o médio croata a tornar-se o primeiro que não o argentino ou o português a receber a distinção em 10 anos.
Já ganhou mais do que Messi e Ronaldo aos 23 anos — mas falta a Champions e a Bola de Ouro
Kylian Mbappé tem 23 anos — quase 24, na verdade, já que comemora mais um aniversário já na próxima terça-feira. Aos 23 anos, nascido em 1998, o avançado francês tem desde já um currículo invejável: cinco ligas francesas, três Taças de França, uma final da Liga dos Campeões, uma Liga das Nações e um Campeonato do Mundo, tendo superado Pelé para se tornar o jogador com mais golos em Mundiais com menos de 24 anos.
Figura maior do PSG, referência da seleção francesa, ídolo de uma geração inteira, é até difícil imaginar que Mbappé é tão novo. Até porque, mesmo com as incríveis e duradouras carreiras de Messi e Ronaldo, nem o argentino nem o português estavam no patamar do francês com esta idade. Aos 23 anos, em 2010, Messi já tinha quatro ligas espanholas e duas Ligas dos Campeões no palmarés mas nenhum título conquistado com a Argentina, num jejum que só quebrou em 2021 com a Copa América. Já Ronaldo, aos 23 anos e em 2008, tinha acabado de ganhar a primeira Champions da carreira com o Manchester United e já tinha vencido duas vezes a Premier League, estando ainda longe de conquistar alguma competição com a Seleção Nacional.
A diferença? Aos 23 anos, Messi já tinha duas Bolas de Ouro, sendo que Ronaldo tinha precisamente essa idade quando levantou a primeira da carreira. Em condições normais, num mundo de comuns mortais e sem os dois extraterrestres, Mbappé já tinha números, registos e títulos suficientes para ter sido eleito o melhor jogador do mundo. A primeira etapa da carreira do francês, porém, coincidiu ainda com a última do argentino e do português — algo que o obriga, como disse na tal entrevista ao The New York Times, a esperar que ambos desapareçam para que ele próprio possa finalmente emergir.
2022/23, contudo, começava a desenhar-se como a primeira grande oportunidade para Mbappé agarrar aquilo que já sabe que, um dia, será seu por direito. Com a conquista do Campeonato do Mundo e a hegemonia interna por parte do PSG praticamente assegurada, o avançado tinha na Liga dos Campeões o único e principal obstáculo para chegar à Bola de Ouro. A derrota de França na final deste domingo, porém, deixa essa hipótese algo descartada — e abre a porta à oitava Bola de Ouro de Lionel Messi.
Um futuro onde Haaland não é rival e os recordes são metas obrigatórias
Pelas idades aproximadas, o facto de atuarem em dois dos melhores clubes do mundo e de terem explodido para o panorama global mais ou menos na mesma altura, Kylian Mbappé e Erling Haaland são muitas vezes colocados lado a lado enquanto o futuro do futebol. A diferença, porém, faz-se de forma simples: o país de origem.
Se Mbappé representa França, já conquistou um Campeonato do Mundo e, em condições normais, vai continuar a disputar os principais troféus internacionais até ao fim da carreira, Haaland dificilmente terá essa possibilidade com a Noruega. O avançado do Manchester City nunca disputou um Europeu ou um Mundial, precisamente porque a seleção norueguesa não alcançou os respetivos apuramentos, e têm umas escassas 23 internacionalizações por não participar nas fases finais.
Messi conquistou uma Copa América e um Campeonato do Mundo com a Argentina, tendo ainda disputado outra final de um Mundial. Ronaldo ganhou um Europeu e uma Liga das Nações com Portugal e esteve noutra final de um Campeonato da Europa. Mbappé já leva um Mundial e uma Liga das Nações. Haaland, pelo menos num futuro próximo e realista, dificilmente chegará perto de algum desses patamares com a Noruega. O que deixa o avançado francês totalmente isolado enquanto herdeiro dos outros dois.
O Mundial do Qatar, mais do que uma nova glorificação da equipa de Didier Deschamps e do percurso astronómico de Mbappé apesar da derrota na final, serviu como uma verdadeira passagem de testemunho. Messi e Ronaldo disputaram o último Campeonato do Mundo das respetivas carreiras, como ambos confirmaram antes sequer de a competição começar, o avançado francês tem todas as condições para ainda disputar pelo menos mais três Mundiais e chegar ao de 2034 com 35 anos. Ou seja, com a mesma idade que o argentino tem atualmente e menos dois anos que o português.
Destinado ao estrelato antes de ter 14 anos, profissional aos 16, tesouro nacional aos 23, Mbappé passou a centenas de quilómetros/hora por etapas que outros demoram décadas a queimar. “A única coisa de que me arrependo um bocadinho é de ter crescido muito depressa, de me ter tornado um homem muito rápido. Mas é a vida que sempre quis ter. É uma vida diferente. Mas, como digo sempre, sou feliz. E estou agradecido”, explicou na entrevista ao The New York Times. Mbappé está pronto para tudo aquilo que sempre soube que ia ter.