Há quem reja a sua vida pelo Bhagavad Gita, quem copie a vida de Siddhartha, quem se oriente pelos ensinamentos de Paulo Coelho, quem obedeça às máximas de Osho e quem leve ao pé da letra as citações de Confúcio, de Santo Agostinho ou de Karl Marx.
A minha bíblia são os livros da Jane Austen. É verdade que o cenário é sempre relativamente limitado. Um aristocrata que só tem filhas mulheres que ficarão pobrezinhas porque não podem herdar nem o dinheiro, nem a casa nem o título, e a quem não restam senão três opções: casar com um primo distante, casar com outro possidónio qualquer ou passar temporadas de seis meses em casa de parentes vários, fingindo estar sempre apenas de passagem. Se fosse uma história portuguesa, acrescentaria “ou tornarem-se alcoólicas”. Mas, na realidade inglesa, alcoólico e aristocrata são praticamente sinónimos.
[o trailer do filme “Persuasão”, a mais recente adaptação da obra homónima de Jane Austen, disponível na Netflix:]
Concedo que não são coisas que aconteçam todos os dias a toda a gente. A mim, por exemplo, ainda só me aconteceu duas vezes. Aliás, escrevo estas linhas precisamente da casa da minha prima em sétimo grau, a duquesa de Grafton, que vim visitar pouco antes de ter estalado a pandemia. Ainda não tivemos hipótese de chegar à fala, mas, como há várias gerações que as nossas duas famílias não se encontravam, creio que me confunde há três anos com um criado. Antes isso que com um cavalo. Adiante.
A vida da minha guru Jane Austen foi quase tão emocionante quanto a das heroínas dos seus romances. Nos quarenta anos que viveu, teve uma única paixão, ainda por cima não consumada, e passou o resto dos seus dias fechada numa casa em Bath — a cidade mais aborrecida do mundo, uma espécie de Montemor-o-Novo inglês — a escrever os seus seis romances. Quatro deles foram publicados sob pseudónimo e outros dois postumamente, de modo que não teve sequer qualquer reconhecimento. Que sonho.
Hoje, claro, é uma das mais conhecidas e celebradas escritoras inglesas, com direito a obra completa publicada em livro-tijolo e uma placa azul em Bath daquelas que dizem “nesta casa viveu X”. No caso, Jane Austen. Como diriam os ingleses, too little too late. Como diria a duquesa de Grafton, for who is, codfish is enough. A duquesa de Grafton, não é por ser minha prima, é uma cabra.
Os seis romances de Jane Austen são, pela ordem por que foram publicados, e com os títulos em português para vocês perceberem:
Sensibilidade e Bom Senso (1811), a história das três filhas de um aristocrata;
Orgulho e Preconceito (1813), a história das cinco filhas de um aristocrata;
Mansfield Park (1814), a história da sobrinha de um aristocrata;
Emma (1816), a história da filha de um aristocrata;
Northanger Abbey (1817), a história da filha de um aristocrata com mais nove irmãos;
Persuasão (1817), a história das três filhas de um velho moleiro pobre e cego. Brinco. O pai destas também era aristocrata.
“Outra vez arroz”, devia pensar o seu editor, de cada vez que Jane chegava com mais um manuscrito debaixo do sovaco. Mas é injusto. Nos livros de Jane Austen o que conta não é tanto a história, que é sempre a mesma, mas a arte com que explora a profundidade das suas personagens. No caso, as filhas de aristocratas. É um conselho sábio a qualquer aspirante a escritor que se deve escrever sobre aquilo que se conhece. E Jane Austen não era propriamente uma crack whore das barracas. No espectro social, estava mais perto de ser a filha de um aristocrata do que ser a filha da mulher do lugar da fruta. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, por exemplo, também escrevem as suas aventuras apenas sobre lugares onde já estiveram: a cidade, o supermercado, o Palácio da Pena e assim. Mesmo a Jane Austen portuguesa, Margarida Rebelo Pinto, é raro pôr o pé em ramo verde.
Toda aquela cambada de filhas de aristocratas — uma verdadeira equipa de futebol feminino de filhas de aristocratas, com suplentes, treinadora e equipa técnica — já ganhou vida no cinema, em várias adaptações e registos. Umas vezes mais em drama, outras vezes mais em cómico.
A mais recente destas adaptações é o filme “Persuasão”, da Netflix. Que foi, diga-se, recebido com escândalo e revolta pelos amantes da obra de Austen, acusando o filme de ser uma espécie de versão Instagram do romance original. É verdade que a protagonista fala muitas vezes diretamente para a câmara, ao estilo de algumas (ótimas) comédias. É verdade que alguma da linguagem é demasiado moderna. É verdade que as personagens são quase todas caricaturas de si mesmas. É verdade que o presunto espanhol é muito melhor que o português. Tudo isso é verdade. Mas, como li numa das poucas críticas que defendiam esta versão, quem conhece a obra de Jane Austen e os seus artifícios, sabe que, se tivesse escrito os seus romances hoje, eles seriam mais parecidos com o que vemos no filme do que com o que escreveu no início do século XIX.
Talvez. Nunca saberemos. Por isso é que é tão importante criopreservar escritores, para depois se tirarem estas dúvidas a limpo. Estou sempre a dizer isto. Agora descongelávamos a Jane Austen, passávamos-lhe um laptop para as mãos, mandávamo-la para as Seychelles e só podia sair de lá com um livro escrito sobre o equivalente atual a uma filha de um aristocrata. Que, hoje em dia, deve ser a Georgina Rodríguez. É triste, mas é verdade. Além disso, a escrita de Jane é muitas vezes irónica e cheia de graça. Não parece, mas é.
Em traços gerais, para quem nunca abriu um livro da Jane Austen — e sem querer desvendar muito — o filme, tal como o romance, conta a história da quase trintona Anne Elliot, a filha de um aristocrata, que, anos antes, tinha sido persuadida a dar com os pés ao homem que amava por ser um pé-rapado. Entretanto, ao fim desse tempo todo, ele volta, agora rico, e ela tem de se persuadir a si mesma ou a confessar-lhe que nunca o esqueceu ou a seguir com a sua vida. Isso é o início do filme/livro? Não. Isto é o filme/livro todo. Isto porque nos livros de Jane Austen, os amantes nunca têm a certeza se são correspondidos, e assim ficam até à última página. Como são ingleses, preferem morrer infelizes do que perguntar. Que seria!
O filme, contado assim, parece mais chato do que aquela parte do Jornal da Noite em que o Marques Mendes fica meia hora a falar. Mas não é tal. Pelo contrário. Eu sorri bastante, ri uma ou duas vezes, e chorei no fim. Agora, claro, não é um filme para se ver sóbrio. Com três ou quatro garrafas de vinho, a hora e meia passa a correr.
E é uma lição de vida. Sobre o amor e sobre o tanto que fugimos da felicidade com medo que ela nos escape, como escreveu Serge Gainsbourg. Esse bêbedo. É impossível não acabar de ver “Persuasão” — ou fechar um livro de Austen — e não ter vontade de ligar a todas as pessoas por quem já estivemos apaixonados e pedir uma segunda oportunidade. E convidá-las para irmos todos juntos para a cama. A grande lição, que a vida nos vai fazendo esquecer, é que só o amor redime, só o amor cura e só o amor salva. De tudo, menos das infeções sexualmente transmitidas et pour cause.
A menos, claro que se seja a filha de um aristocrata. Nesse caso, portem-se mas é como umas senhoras e deixem-se de merdas.