Não vou dizer que temos de ter uma conversa sobre Dele Alli, até porque já não há paciência para mais um texto que abre com a expressão “Temos de falar sobre…”, mas também porque ninguém, exceto os adeptos mais atentos de futebol, sabem quem é Dele Alli. Mas temos de falar, e sobretudo temos de falar sobre o que as pessoas não dizem, sobre o que não conseguem, por muito que queiram, dizer – e não o conseguem durante anos e anos a fio. No caso, é um jogador de futebol – mas podia ser uma costureira, um pasteleiro comunista, um bailarino arrivista.
Durante muitos anos os jogadores de futebol pareciam não ter nada para dizer, e quando abriam a boca era para dizer que é hora de levantar a cabeça e trabalhar – e até certo ponto continua a ser assim. Mas algo tem mudado nos últimos anos: a ideia de super estrela, que vem (sobretudo) do cinema e da música pop, começou a aplicar-se também aos desportistas, primeiro os jogadores da NBA, posteriormente aos que ganham a vida a dar toques na bola. Na NBA é normal, desde os tempos de Jordan e Kobe, que uma super estrela exprima publicamente o que lhe passa pela cabeça – que não aprecia particularmente o colega X ou o adversário Y, ou que use o seu poder para falar de direitos humanos, uma tradição que remonta a Kareem ou mesmo a Bill Russell.
No futebol começamos a ver agora jogadores que balbuciam umas palavras a favor dos direitos LGBT+ (mesmo que chegada à hora do Mundial todos eles escondam as braçadeiras arco-íris, porque o negócio assim dita), mas o que o povo gosta mesmo é quando um jogador abre a boca e parte tudo: haverá entrevista mais vista, nos últimos anos, que a que Cristiano Ronaldo deu a Piers Morgan, e que consistiu em, basicamente, regar o seu então clube, o Manchester United, com gasolina e acender fósforos durante mais de uma hora, até que fosse impossível ao clube mantê-lo nas suas fileiras?
Não houve, mas devia haver – nomeadamente a que Dele Alli deu a Gary Neville, em The Overlap, o programa de conversas que este mantém em parceria com a Sky. O impacto da entrevista de Dele foi muito menor, primeiro porque ele não é Cristiano e segundo porque, no fundo, o adepto de futebol não quer saber de coisas sérias de um has been, um jogador que podia ter sido qualquer coisa e hoje será qualquer coisa excepto jogador.
Mas esse qualquer coisa que Dele podia ter isso, esse qualquer coisa está na categoria a que Llorca chamava ter duende: ser possuído por algo mágico, conjurar as energias do universo para produzir uma faísca no vazio. O impacto desses momentos em que ele assistia para golo com um simples toque, ou que surgia ao segundo poste para encostar, ou que arrancava deixando dois adversários à procura do resto da sua anatomia, antes de fazer uma tabela e colocar a redonda no fundo da tabela. O impacto destes fogachos quase sempre passaram despercebidos do grande público por uma simples razão: Dele jogou quase toda a carreira nos spurs, que nunca ganham nada. Eu sei: sou dos spurs, o clube mais romântico e trágico que o mundo alguma vez viu.
Vista a entrevista, não podia haver clube mais adequado para Alli, que foi mundialmente famoso durante os 15 segundos em que surgia, em All or Nothing, um documentário sobre os spurs (na realidade trata-se de uma série de docs, mas um debruçou-se sobre a época em que Mourinho treinou os spurs), a ouvir o treinador português dizer-lhe que ele tinha decidir se queria ser o Dele cujo potencial indicava grandes feitos, ou o que era naquele momento: um valente preguiçoso.
De então para cá a carreira do rapaz caiu de forma tão vertiginosa como subiu: descoberto no minúsculo MK Dons aos 17 anos, Alli entrou quase direto para o 11 dos spurs e explodiu um par de anos depois, como um enigma que só se revelava quando era tarde demais para as defesas adversárias: não se sabia se era médio ou extremo ou avançado, mas de repente lá estava ele com um passe magistral, uma corrida para empurrá-la lá para dentro, aquela pressão que faz o defesa perder a bola e acaba em golo.
E aos 23, 24, de forma tão inesperada quanto um orgasmo de Meg Ryan no meio de um restaurante, a magia de Dele desapareceu – ele passou a arrastar-se no campo, a falhar passes, a chegar tarde a cruzamentos, a ficar sentado no banco e, consta, a chegar tarde aos treinos, o que, segundo os tablóides ingleses se devia ao seu extremo empenho em ingerir álcool em saídas à noite. Alli foi visto como um milionário calaceiro, com mais amor pela farra que pela camisola. Foi para o Everton, para a Turquia e para onde quer que fosse ninguém se lembrou do que fez em campo.
Aos 27 anos Alli é, portanto, um daqueles que podia ter sido qualquer coisa. Mas talvez tenhamos sido precipitados, porque Alli é qualquer coisa e qualquer coisa de extraordinário: um ser humano cheio de falhas mas com uma coragem tamanha – e quem quer que tenha visto a entrevista com Neville nunca se esquecerá dele, porque nunca ninguém trouxe tanta humanidade para o futebol como Alli, naquela conversa de há dias.
Alli começa por admitir que saiu há dias de uma clínica de desintoxicação por abuso de comprimidos para dormir. Este é um dos segredos mais mal guardados do desporto de alta competição: os jogadores vivem em stress constante, sob uma pressão enorme, azucrinados por agentes, pela responsabilidade de alimentarem família e um círculo sempre grande de yes man, estão constantemente a jogar cheios de dores, são insultados nas redes sociais diariamente e isso traz insónias, impotência e todas as maleitas mentais que possamos imaginar.
Só que os problemas de Alli não são se reduziam a isso – isso foi o culminar de um processo que ele penosamente explicou, admitindo que só o estava a fazer porque os media britânicos ameaçaram contar que ele se encontrava a fazer desintoxicação.
Tentando resumir o que terá por certo sido uma vida infernal, Alli conta que foi molestado aos seis anos por um amigo da mãe, que era alcoólica. Começou a fumar aos sete e a dealar aos oito, porque ninguém ia parar um miúdo numa bicicleta. Aos 11, um tipo de um bairro próximo pendurou-o de cabeça para baixo do lado de fora de uma ponte (presume-se que por negócios de drogas). A salvação de Alli, se é que podemos chamar-lhe assim, foi a família do melhor amigo, que o adotou (a família, não o melhor amigo) quando ele tinha 12 anos, retirando-o de casa da mãe, uma casa em que segundo o jogador havia, por vezes, uma dezena de pessoas todas drogadas.
Alli tinha 24 anos e ainda não tinha caído por completo quando se olhou ao espelho e pensou reformar-se. Eis um milionário, que fazia a coisa que mais gostava na vida e que só queria que tudo parasse: as exigências, a pressão, os insultos, a adulação; tudo isto mexia com ele de tal maneira que nem com a família adotiva conseguia desabafar. Nem sobre isso nem sobre o resto, sobre o passado.
Até que a dada altura Dele já não estava a tomar comprimidos para dormir antes dos jogos, estava a tomar comprimidos o dia todo, mal saía do treino da manhã, para fugir à realidade, para fugir ao passado, para fugir à sensação de ter sido abandonado pelo pai, esquecido pela mãe alcoólica, abusado sexualmente em criança, para fugir à sua própria incapacidade de falar e dizer o que sentia. Todos os seres humanos estão preparados para fugir – na nossa base somos isso, a decisão de fugir ou lutar. Fugir salva vidas – exceto quando estamos a fugir de nós mesmos, dos nossos traumas, porque eles são mais velozes, mais resistentes e passam-nos a perna sempre.
E afinal, desculpem lá o cliché, mas temos mesmo de falar sobre isto, não por causa da porcaria de um jogo, não por causa da pressão idiota que se coloca sobre seres humanos por eles rematarem mais ou menos bem na direção de um retângulo – mas porque Alli é uma pessoa e como ele há milhões no mundo neste momento, que carregam há décadas o facto de terem sido abusadas por alguém, abandonadas ou esquecidas por pais alcoólicos ou negligentes (que talvez tenham sido eles próprios abusados), e que não conseguem falar, não conseguem sequer exprimir o medo, a raiva, o desamor por si mesmas que sentem, e acabam, como Alli acabou, a serem vistas como preguiçosas ou quezilentas ou rabugentas ou seja lá o que for que as pessoas normais chamam às pessoas que passaram por infernos e lutam simplesmente para saírem da cama.
Ronaldo abriu todos os telejornais por causa de uma birra – mas a entrevista de Alli não abriu nenhum e foi este o mundo em que criámos, em que um homem que foi abandonado pelos pais e vítima de abuso sexual tem menos atenção que uma birra por causa de jogar ou não na Champions. Mas enquanto tomarmos essa opção, enquanto não demos todos o espaço e tempo às pessoas que verdadeiramente sofreram para dizerem do seu sofrimento, enquanto essa não for a nossa prioridade, não no futebol mas na vida, continuaremos a dizer mal do Aníbal da contabilidade ou da Soraia da secção de enchidos, nas costas deles, nos chats de Whatsapp, continuaremos a julgá-los e a fazer piadinhas e a não os convidar para tomar café, a não perguntar “Está tudo bem contigo?” porque no fundo não estamos para isso, não passámos por isso, não foi connosco, nós também temos os nossos problemas e não chateamos ninguém com isso, por isso porque é que havíamos de dar uma chance ao Aníbal e à Soraia, a nós ninguém nos deu nada.
De forma crua é isto que fazemos todos os dias com uma série de pessoas que viveram um autêntico inferno e só estamos a saber disto nos últimos anos, desde que o Me Too abriu as comportas a uma torrente que não pára de gente que vem confessar os abusos sofridos na infância – até agora têm sido sobretudo mulheres atrizes a falar, mas lentamente a necessidade de expurgar o mal tem chegado a outras profissões e a esse ser que continua envolto na neblina da testosterona, o homem.
Os números dizem que há mais mulheres a serem abusadas sexualmente na infância (o que só se agrava na idade adulta), sendo que há aqui um problema: os homens não falam do abuso que sofreram, seja sexual, de violência parental ou de negligência. Num mundo em que são sobretudo os homens a agredir e a matar talvez tenhamos menosprezado esta parte da equação: e se os homens estiverem mais atrasados que as mulheres nesta demanda de contarem o que lhes aconteceu? Se estiverem mais atrasados na aprendizagem da fragilidade, da vulnerabilidade? Os homens são ensinados a ganhar, a impor-se – mas ninguém lhes diz que uma lagriminha não faz mal.
Pessoas abusadas na infância são mais propensas a insónias, ao vício do álcool e das drogas, ao suicídio, tendem a ter rendimentos menores e menos relações próximas – tendem a ser mais introvertidas ou, pelo menos, a não expor os seus verdadeiros sentimentos. A nossa sociedade, que se baseia na competição, não está propriamente a convidar estas pessoas – que cedo se habituaram a desconfiar de tudo e todos – a serem capazes de desabafar: vivemos numa luta pela sobrevivência e são os mais fortes que vencem; não é certo quem são os mais fortes mas o que o mundo nos mostra todos os dias é que certamente não serão (pelas métricas atuais) os que crescem com o trauma do abuso.
Dele Alli pode não ser tão popular quanto Ronaldo mas é milionário – mesmo que a carreira dele acabe amanhã terá, se houver ali juízo, dinheiro suficiente para viver uma vida sossegada ou, pelo menos, ter acesso à melhor terapia. Mas, e o resto da humanidade? Os que ganham 800 euros por mês e não têm guito para uma sessão mensal com um psi, quanto mais duas por semana? Os que crescem nos mesmos bairros miseráveis em que Alli cresceu mas sem o talento para a bola?
Todos os dias milhões de pessoas levantam-se e dirigem-se aos seus empregos, procurando pôr pão na mesa para os filhos e vivendo uma luta interior imensa, entre desistir de vez e continuar a lutar, entre sentirem-se sós e desamados e procurarem um pouco de apoio e solidariedade – e não é por acaso que as vítimas de abuso demoram décadas a contar o que viveram, é porque o abuso ensina o abusado a ter vergonha de si mesmo, ensina a abusada que a culpa é sua, e a sociedade encarrega-se, de seguida, de rotular as pessoas abusadas como disfuncionais, complicadas, irritantes.
Não me peçam respostas, eu não sei como se resolve isto – com acesso subsidiado a psicólogos, possivelmente, redes de apoio para pessoas abusadas, mas também (que raio) com um pouco de compaixão por todos aqueles que não encaixam, pelos estranhos, pelos confusos, pelos complicados – se os desafinados também têm coração, os abusados, acreditem, têm coração que nunca mais acaba, só não sabem o que fazer com ele e acreditam piamente que o que sentem é errado.
Só que nunca ninguém se lembra de ouvir esses corações destroçados. O mundo não está para emoções complexas mas não consigo deixar de pensar o que aconteceria se começássemos a perguntar ‘Está tudo bem contigo?’ àquela pessoa difícil? O que aconteceria se todos os Dele Allis dissessem a verdade sobre Dele Alli.
A dada altura, na conversa com Gary Neville, este pergunta a Alli o que ganha em contar o que contou. E Alli responde que se houver alguém a ouvi-lo que se sinta menos só, que perceba que não foi o único a passar pelo mesmo e que há saída, então essa é toda a recompensa de que precisa.
Dele Alli era um has been. Agora é o exemplo do que devemos ser no futuro.