Os responsáveis políticos não devem precipitar-se na resposta à inflação mais elevada: deve-se apoiar “os mais vulneráveis”, sim, mas não devem endividar-se (e, potencialmente, instigar ainda mais subidas de preços) com apoios a “segmentos indiscriminados da população”. Este alerta de Christine Lagarde, presidente do BCE, foi a mensagem mais forte que saiu do Fórum Anual organizado pela autoridade monetária, que terminou esta quarta-feira – realizando-se novamente em formato presencial depois de dois anos em que o evento foi apenas online.

O alerta foi transmitido pela presidente do BCE num painel de debate onde participava, também, o presidente da Reserva Federal dos EUA, Jerome Powell, o banqueiro central mais poderoso do mundo. Embora se tenha notado no discurso de Lagarde alguma esperança de que as pressões inflacionistas acabarão por se atenuar nos próximos tempos, a francesa concordou com Powell quando este lembrou que “vivemos um período de forças desinflacionárias, proporcionadas por fenómenos como a globalização, a tecnologia e baixos crescimentos de produtividade”. Porém, continuou Powell, “desde a pandemia, temos vivido num mundo em que a economia tem sido impulsionada por forças muito diferentes. O que não sabemos é se iremos voltar ao que tínhamos ou se será uma coisa nova – acreditamos que será algo no meio”. Em concordância, a presidente do BCE concordou que será “improvável” que iremos voltar a um mundo de inflação baixa, como aconteceu nos anos (e décadas) até à pandemia.

Já na véspera, quando lia o seu discurso de abertura dos trabalhos, Lagarde tinha assumido que a inflação na zona euro “está indesejavelmente elevada” e que o banco central irá agir de “forma determinada e sustentada”, fazendo “tudo o que for necessário” para evitar que aquilo que os economistas chamam de “desancoragem das expectativas de inflação” – ou seja, uma situação em que os salários começam a subir muito acima daquilo que é o aumento da produtividade simplesmente porque as pessoas começam a incorporar receios de inflação mais elevada.

Poupança pandémica deve ser primeira resposta contra a inflação

Nesse processo, tanto Lagarde como Powell concordaram que é necessário ter em conta os setores mais “vulneráveis” da sociedade – designadamente aqueles que não conseguiram acumular as “poupanças” adicionais que a pandemia permitiu, poupanças acumuladas por não ter sido possível gastar em serviços que estiveram fechados ou severamente limitados nos piores períodos de contágio do novo coronavírus.

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É em parte no consumo dessas poupanças adicionais que, não escondeu Lagarde, estará a resposta para suportar os aumentos do custo de vida – sejam eles mais ou menos temporários. Esta é, aliás, uma tese que já vem sendo defendida por membros do BCE há vários meses, incluindo por Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, que em março deixou essa visão muito clara: deve ser a poupança acumulada a “almofadar” a inflação, não as subidas de salários.

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Lagarde afirmou, aliás, que é a recuperação nos gastos no setor dos serviços que está a fazer com que a recuperação económica na zona euro esteja a “progredir bem”. Em simultâneo, a presidente do BCE voltou a salientar a importância da subida dos preços da energia para indicar que, embora se esteja a generalizar, a inflação historicamente elevada ainda não é tão generalizada assim. Em rigor, Lagarde sublinhou que apesar de os preços estarem a subir a taxas inéditas na zona euro “não estamos a enfrentar uma situação normal de procura excessiva generalizada ou sobreaquecimento”.

O investimento continua “condicionado” e, “apesar do aumento dos gastos em serviços, o consumo privado na zona euro continua 2% abaixo do nível pré-pandémico”, sublinhou a presidente do BCE, dando a entender que ainda não estará totalmente convencida de que as pressões inflacionistas requeiram, nesta fase, uma atuação mais brusca do que aquilo que já tem vindo a ser comunicado aos mercados financeiros que irá acontecer: a primeira subida das taxas de juro já a 21 de julho.

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Esta posição de relativa contenção do aperto da política monetária, por parte do BCE, ajudará a perceber porque é que no final do Fórum de Sintra a cotação do euro nos mercados cambiais tenha continuado a cair, em relação ao dólar – voltando a moeda única a ser negociada abaixo dos 1,05 dólares.

Isto porque, em contraste, poucas horas antes do painel Lagarde-Powell discursou a presidente da Reserva Federal de Cleveland (EUA), Loretta Mester, que avisou que os bancos centrais devem ser “determinados” na missão de conter a subida dos preços, reconhecendo que problemas nas cadeias de abastecimento globais, como os que vivemos atualmente, podem “ameaçar a estabilidade das expectativas de inflação”, o que “obriga a uma intervenção por parte dos responsáveis pela política monetária”.

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Ainda assim, sendo difícil medir com exatidão científica o que são “expectativas de inflação” e a forma complexa como este fenómeno se enraíza nas economias, Mester defendeu que é mais perigoso assumir que as expectativas de inflação estão bem “ancoradas” quando não o estão do que, em contraponto, assumir que a subida dos preços está descontrolada (e agir em conformidade) quando esse fenómeno até nem está realmente a acontecer.

O primeiro cenário é mais perigoso porque, defendeu a responsável da Fed de Cleveland, corrigir um erro de análise no primeiro caso “tem mais custos” do que ajustar a política caso se confirme a segunda situação. Os bancos centrais “não podem ser complacentes quando as expectativas de inflação de longo prazo estão a subir”, rematou Loretta Mester, que tem direito de voto no Comité de Operações no Mercado Aberto (FOMC), o organismo que decide a política monetária dos EUA.

Dificuldades no comércio mundial explicam metade da pressão sobre os preços na zona euro

Também relevante neste ponto foi um outro estudo apresentado no Fórum BCE e que apontou que as dificuldades nas cadeias de abastecimento globais explicam 40% a 50% das pressões inflacionistas na zona euro – dificuldades essas que se acredita estarem a melhorar, embora lentamente. Nos EUA, de acordo com o mesmo estudo, os problemas no comércio internacional justificam uma percentagem menor (30%) da inflação, já que aí os programas de estímulo orçamental – que incluíram cheques enviados aos cidadãos – terão tido um impacto maior.

No dia em que foi conhecido que a taxa de inflação superou os 10% em Espanha, Gabriel Felbermayr, diretor do Instituto Austríaco de Pesquisa Económica, veio suportar com a sua investigação a ideia de que o impacto das subidas da taxa de juro terá sempre um efeito limitado na contenção das pressões inflacionistas, já que quase metade da inflação se explica por fatores que não são sensíveis à política monetária.

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“Os choques externos e as dificuldades nas cadeias de abastecimento tiveram um papel relativamente maior, em comparação com os choques sobre a procura interna, ao explicar a inflação na zona euro 2020-2021”, afirmou Gabriel Felbermayr, acrescentando que “nos EUA aconteceu o contrário“.

Embora esta diferença não pareça estar a ser muito valorizada, neste momento, nos mercados cambiais, Christine Lagarde procurou reconfortar os investidores na moeda única de que a próxima reunião do BCE – marcada para 21 de julho – irá trazer não só a primeira subida da taxa de juro mas, também, a apresentação da “nova ferramenta” de combate à subida das taxas de juro dos países mais endividados.

E é aí que a discussão se liga ao “recado” dado aos governos, de que não devem instigar ainda mais a inflação à conta de mais endividamento. Garantindo que o BCE será capaz de criar a tal “nova ferramenta” e, com ela, garantir que não há divergências excessivas nos custos de financiamento dos países, Lagarde assegurou, porém, que esse programa irá conter “suficientes salvaguardas” para que os governos mantenham o equilíbrio das contas públicas.

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Não fica claro exatamente como é que essas “salvaguardas” irão ser desenhadas, mas os discursos recentes dos responsáveis do BCE, incluindo Mário Centeno, dão a entender que o novo instrumento poderá funcionar como “um seguro” que, no limite, até poderia nunca ser utilizado para fazer compras concretas de dívida pública – bastaria a sua mera existência para impor uma “disciplina” nos mercados de dívida. Nesses termos, o instrumento poderia ser em tudo semelhante ao programa OMT (Outright Monetary Transactions), anunciado por Mario Draghi em 2012.

Esse programa OMT, que acabou por nunca ser usado, implicava, contudo, que os países cuja dívida fosse comprada pelo BCE assumissem um compromisso de equilíbrio de contas públicas ou reformas estruturais (que teria de ser aprovado pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade). Ou seja, o OMT envolvia uma “condicionalidade” concreta. Centeno indicou que aqui será diferente mas Lagarde não ajudou muito a perceber exatamente como.