As proezas e recordes que Cristiano Ronaldo acumulou ao longo de uns impensáveis vinte e três anos de sucesso levaram a que fosse muitas vezes posto ao mesmo nível (frequentemente até acima) dos maiores nomes da história do desporto e até das velhas mitologias que todos partilhamos. O interesse destas sistemáticas comparações com que procuramos fazer sentido do incompreensível e do sobre-humano é bastante limitado, mas, ainda assim, gostaria de por uns minutos procurar perceber CR7 a partir de duas outras personagens do nosso imaginário coletivo: o Rei Lear e Muhammad Ali, o mais espantoso desportista de todos os tempos.
Comecemos então pelo primeiro.
A história conta-se rápido. Na tragédia de Shakespeare (depois adaptada ao cinema no excelente Ran, de Kurosawa), Lear, já perto do fim da sua vida, decide dividir pelas três filhas as terras que ainda lhe pertencem. No entanto, antes de o fazer, questiona-as acerca do amor que estas lhe têm. A filha mais velha, Gonerill, não hesita em dizer que ama o pai “mais do que a vista, o espaço e a liberdade”, rematando com “beyond all manner of ‘so much’ I love you”. A seguir, Regan, a segunda das filhas, vai ainda mais longe e professa-se inimiga de todas as outras alegrias que não sejam o amor filial. Lear regozija-se com tão inegáveis provas de amor. Por fim, chega a vez da filha mais nova, Cordelia, que garante amar o pai na justa medida, nem mais nem menos do que deveria, e pergunta às irmãs porque é que se casaram, se afinal amam apenas o seu pai. Lear, claro, irrita-se com a altivez de Cordelia e afasta de si a filha ingrata, dividindo as suas posses pelas duas primeiras.
Durante anos, Portugal e o mundo desportivo viveram uma disputa semelhante para ver quem expressava mais desmesuradamente o amor pelo nosso pai salvador. Quem por motivos insondáveis preferisse Messi era considerado um antipatriota desnaturado, que num país a sério ou teria o seu passaporte apreendido, para não espalhar disparates mundo fora, ou seria forçado a fazer uso dele a caminho de um mais que justo exílio.
Seja como for, por tudo isto e muito mais, Ronaldo convenceu-se da sua divindade e rodeou-se exclusivamente de quem lhe jurasse partilhar do credo cristiano, afastando de si todas as Cordelias que o afirmavam de carne e osso. A sua plenipotência e reinado seriam, tudo fazia crer, infinitos. O problema é que a infinitude dura, na melhor das hipóteses, um par de décadas e o corpo começou a trair Ronaldo, que, aos poucos, muito lentamente, deixou de ser o mais forte, deixou de ser o mais rápido, deixou até, pasme-se, de ser o mais letal, para se tornar apenas num jogador muito bom.
Ronaldo viu-se então numa encruzilhada: ou continuaria a acumular recordes futebolísticos e financeiros em ligas menores que lhe oferecessem menos dificuldades ou adaptaria o seu estilo de jogo e tornar-se-ia num dos muitos jogadores importantes de uma equipa de topo. O problema é que Ronaldo não teria chegado aonde chegou se acreditasse que haveria humanos superiores a si. E, ao ter afastado do reino todas as Cordelias que na peça de Shakespeare acaba a amparar a velhice solitária do seu pai, Ronaldo tinha agora junto de si apenas Gonerills e Regans a assegurar-lhe que o seu reino não era deste mundo e que os seus talentos permaneciam intactos até ao fim dos tempos, pelo que decidiu optar pela primeira hipótese, convencendo-se de que a sua presença numa liga menor bastaria para que esta ascendesse ao Olimpo. Não resultou, os seus dotes iam diminuindo com o tempo e as Gonerills e as Regans de que se rodeou deixaram de o amar assim tanto e foram, uma a uma, embora, uma vez que esse amor, tornado ridículo pela devastadora e cruel ação do tempo e pelos penalties falhados em fases finais de competições de seleções, já nada lhes podia dar em troca.
É neste ponto que o paralelo com Muhammad Ali me parece pertinente, mas não sem antes tornar claros os limites da comparação. Em 1966, dois anos depois de abandonar o seu “nome de escravo” — Cassius Clay — para se converter ao Islão, Muhammad Ali recusa-se a participar na guerra do Vietname, mesmo sabendo que, como acontecera por exemplo com Elvis em 1961, a sua presença serviria apenas para a promoção e moralização do Exército, não requerendo que pusesse um pé em cenários bélicos. Ali recusou vestir uniforme, alegando não só que o Corão rejeitava a guerra, mas sobretudo que os seus inimigos não estavam nas selvas do outro lado do mundo, mas nas cidades do seu país, país esse que considerava cidadãos de segunda as pessoas com a sua cor de pele, o que conduziria à frase, quase certamente apócrifa, com que alegadamente justificou uma decisão tão polémica: “No Viet Cong ever called me nigger” (“Nunca nenhum vietnamita me chamou preto”).
Por se recusar a participar no que considerava uma guerra injusta, Ali decidia então, aos vinte e cinco anos e com ainda tudo por conquistar, permitir que destruíssem quase irremediavelmente (quase, não fosse ele o maior de todos os tempos) a sua carreira e popularidade, perdendo durante quarenta meses a oportunidade de defender o título mundial de pesos-pesados, retirado na secretaria mas nunca nos ringues. Cristiano Ronaldo, por sua vez, decidiu, já multimilionário, vender a sua popularidade a preço de ouro a um regime despótico e misógino, esperando ainda assim não perder um seguidor no Instagram.
Seja como for, esquecendo este pequeno parêntesis, há duas semelhanças entre estes extraordinários atletas que me parecem bastante interessantes.
A primeira foi identificada pelo jornalista Norman Mailer, em O Combate (Dom Quixote, 2019). Nesse excelente livro, Mailer descreve as semanas antes do maior combate do século XX, entre Muhammad Ali e George Foreman, que ficaria conhecido como “Rumble in the Jungle”. Ao entrevistar Foreman, Mailer repara que tanto Foreman como Ali se referiam a si mesmos na terceira pessoa. Em vez de assumir altivamente que se tratava de um sintoma da baixa instrução dos pugilistas, Mailer explica que isto acontece porque Foreman e Ali tinham “na voz a inevitável esquizofrenia dos grandes atletas. Como acontece com os artistas, é-lhes difícil não ver o profissional feito como uma criatura diferente da criança que está na sua origem. A criança (entretanto crescida) continua a acompanhar o grande atleta e está completamente apaixonada por ele” (p. 61).
Em certo sentido, parece ser isso que se passa também com Cristiano Ronaldo: ficou tão (e tão compreensivelmente) apaixonado pelos feitos do grande atleta CR7 que, por paradoxal que pareça, acredita que apenas Ronaldo o pode retirar de uma encruzilhada em que só se viu metido porque o Ronaldo que todos nós admirávamos está agora em lenta degradação.
Finalmente, o paralelo entre Ali e Ronaldo parece-me útil à compreensão do momento atual de CR7 por um outro motivo, este mais, por assim dizer, cinematográfico. No segundo episódio da série (hoje injustamente esquecida) Boston Legal, numa espécie de prefácio à lenta degradação física e mental do imbatível advogado Denny Crane (William Shatner), o seu amigo Paul Lewinston (René Auberjonois) senta-se a seu lado na varanda do escritório de advogados e ambos conversam por um minuto. No rescaldo de uma discussão entre ambos, Denny começa por lembrar Paul de que, apesar de mais velho, o grande Denny Crane continua a ser um bom advogado. Paul reconhece isso e acrescenta, num dos diálogos mais comoventes da série, o resumo perfeito do que hoje vemos acontecer com Ronaldo, um dos maiores atletas de todos os tempos:
“Sim. Pois és. Mas lembras-te do último combate do Muhammad Ali? Tínhamos bilhetes para a primeira fila. Ele perdeu pateticamente com o Larry Holmes. Ficámos devastados. A tragédia nessa noite, Denny, não foi o Ali já não saber lutar. Ele sabia. A tragédia foi ele achar que ainda era o Ali. Tu és um bom advogado, meu velho. Só já não és o Denny Crane.”
Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.