Ana G. acordou naquela segunda-feira determinada a matar o namorado. Levou o filho à escola por volta das 8h30 e regressou a sua casa na Moita, em Setúbal, onde encontrou Bruno C. ainda a dormir na cama de ambos. A mulher de 54 anos tinha uma razão para cometer o crime naquele 11 de novembro de 2019. Uns dias antes tinha lido várias mensagens que ele trocara com uma colega de trabalho, onde confessavam a atração que sentiam um pelo outro e planeavam ir viver para a zona Norte do país. No domingo antes do homicídio, numa outra mensagem, Bruno prometia que lhe “iria roubar o primeiro beijo” no dia seguinte. Mas nessa manhã acabaria por ser assassinado pela namorada 27 anos mais velha sem nunca cumprir a tal promessa.
É esta a versão do Ministério Público (MP) que consta na acusação a que o Observador teve acesso. Para a investigação, foi por ter ficado “dominada pelos ciúmes” que Ana decidiu tirar a vida à pessoa com quem vivia há quatro anos. No início de maio, a mulher foi acusada de um crime de homicídio e aguarda agora julgamento.
O despacho de acusação foi entretanto anexado ao processo do caso da morte do tritatleta Luís Grilo — que aguarda agora a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de manter ou não a condenação da viúva Rosa Grilo a 25 anos de prisão e a absolvição do seu amante António Joaquim. Mas o que têm em comum dois homicídios separados em mais de um ano? A forma como os cadáveres das vítimas de ambos os casos foram transportados.
Ana confessou crime à GNR, mas explicou que era vítima de violência doméstica
Ana sabia que para levar a cabo o crime teria primeiro de “neutralizar a diferença de força física” existente entre ela e o namorado, lê-se na acusação. Por isso, depois de garantir que Bruno estava a dormir, terá ido até à cozinha, em silêncio, aquecer óleo com o qual encheu um púcaro de alumínio. De regresso ao quarto, levou a cabo o primeiro ato para cumprir o seu objetivo: atirou todo o óleo a ferver para a cara de Bruno. O homem “sofreu dores insuportavelmente intensas e queimaduras de 2.º grau, ocupando cerca de 13,5 % da superfície corporal”, concluiu a investigação.
O homem de 27 anos, “desesperado”, conseguiu ainda levantar-se e fugir pelo corredor até ao hall de entrada da casa. Mas já não conseguiu defender-se do novo ataque que a namorada terá levado a cabo depois: ali, terá sido esfaqueado por Ana com uma faca de cozinha. Bruno não resistiu aos ferimentos e acabou por morrer.
Foi a própria mulher que alertou as autoridades — terá contado porém uma versão diferente da história. Depois de alegadamente limpar com água e lixívia a faca e o sangue de Bruno no hall de entrada, Ana dirigiu-se ao posto da GNR da Moita. Lá, segundo a acusação, assumiu ter matado o companheiro, mas que só o tinha feito porque era vítima de violência doméstica e que aquele desfecho aconteceu na sequência de uma discussão.
Esta versão da história não convenceu o MP, que a acusou de ter agido de forma “livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de causar a morte a Bruno”, nem o juiz de instrução do Tribunal do Barreiro que, após o primeiro interrogatório, lhe decretou prisão preventiva. Segundo o jornal Expresso, o facto de as autoridades não terem registo de queixas de violência doméstica anteriores e o facto de a arguida ter estado a ferver óleo àquela hora da manhã levantou dúvidas quanto à premeditação do crime.
Ana “arrastou o cadáver de Bruno”. Defesa questiona se Rosa Grilo não pode ter feito o mesmo sozinha
O despacho de acusação deste caso resume-se a quatro páginas, mas uma das frases foi suficiente para a defesa de António Joaquim, o amante de Rosa Grilo inicialmente suspeito de ter ajudado a viúva no homicídio do triatleta, apontar dúvidas ao Ministério Público. É a frase que descreve a forma como Ana transportou o corpo do namorado desde o hall de entrada para a casa de banho: “De seguida, puxando-o pelos pés, a arguida arrastou o cadáver de Bruno para o interior da casa de banho”. Mas porquê?
Quando Rosa Grilo foi condenada no início deste ano a 25 anos de prisão, os juízes do Tribunal de Loures assumiram que não tinha sido possível perceber como é que a arguida tinha transportado o corpo do marido até à garagem, como é que o tinha colocado dentro do carro e como depois o retirou do carro para o depositar na estrada de terra batida em Santo António de Álcorrego, onde viria a ser encontrado. O transporte do corpo foi uma das várias dúvidas que ficaram do julgamento: deram como provado que Rosa Grilo o fez sem a ajuda do amante, mas não sabem como. Certo é que a viúva foi condenada à pena máxima de prisão e António Joaquim foi absolvido.
Pena máxima. Do “comportamento bizarro” à “frieza”, Rosa Grilo perdeu o caso mas não perdeu a pose
Se por um lado a condenação da arguida fez a sua advogada recorrer da decisão, a absolvição do arguido provocou o mesmo efeito no Ministério Público. Um dos pontos abordados pelo MP no recurso a que o Observador teve acesso é precisamente o transporte do corpo de Luís Grilo. A procuradora que assina o documento defende que o tribunal de Loures concluiu “mal” que “o transporte do cadáver da vítima havia sido efetuado sem intervenção de outra pessoa”. Para justificar, lembra que Luís Grilo tinha 1,75 metros de altura e porte atlético pelo que, apesar da “volumetria” da “compleição física” de Rosa Grilo, não se pode concluir que esta “conseguia, sem qualquer auxílio, transportar o cadáver do andar mais elevado da residência” até à garagem e colocá-lo no carro. O parecer afirma mesmo que “o tribunal não teve em conta as leis da Física, nem da Dinâmica, nem da Mecânica”, citando depois as Leis de Newton.
No parecer é ainda colocada a hipótese de Rosa Grilo “ter feito rolar/arrastar o cadáver por todo o percurso”, da cama até ao carro, mas que a procuradora exclui de imediato. Porquê? Porque se tivesse acontecido “essa forma de movimento teria deixado marcas visíveis no corpo da vítima” — o que não se verificou na autópsia. Este é um dos motivos pelo qual o Ministério Público pede a condenação de António Joaquim.
Foi neste sentido que a defesa do arguido, em reposta ao MP, recordou o caso do homicídio de Bruno, no final do ano passado. Para a equipa do advogado Ricardo Serrano Vieira, não faz sentido que o MP, no caso Rosa Grilo, argumente que “uma pessoa do sexo feminino não seria capaz de transportar um corpo”, quando noutro caso alegue que a arguida “arrastou o cadáver de Bruno para o interior da casa de banho”, evidenciado o contrário. “Por que razão o Ministério Público narrou este facto neste processo ao arrepio das alegadas leis da Física e da Dinâmica? Ou será que as leis da Física e da Dinâmica apenas se aplicam em determinadas localidades de Portugal?”, questiona a defesa no parecer a que o Observador teve acesso.
É certo que o percurso que Rosa Grilo terá feito com o cadáver — da cama no primeiro andar para o carro que se encontrava na garagem — é diferente do que Ana terá feito — do hall para a casa de banho. Ainda assim, a dúvida foi lançada e aquele que foi um dos casos mais mediáticos de 2018 continua sem fim à vista. O Tribunal da Relação de Lisboa vai agora decidir o destino dos dois arguidos, mas as perguntas parecem continuar por responder: quem matou Luís Grilo e como?