Numa altura em que cada dia que amanhece é pior do que o anterior — e em que as contagens de infeções, mortes e internamentos estabelecem novos máximos a cada 24 horas —, cresce a pressão sobre os hospitais, não apenas da região de Lisboa e Vale do Tejo, a mais assolada pela pandemia nas últimas semanas, mas um pouco por todo o país.
O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), diz Carlos Robalo Cordeiro, 62 anos, diretor do serviço de Pneumologia, é hoje “um hospital destroçado”, onde as enfermarias dedicadas à Covid enchem em dois dias, as salas de recobro foram transformadas em unidades de cuidados intensivos, e as filas de uma dezena ou mais de ambulâncias à porta das urgências já são tão comuns que os enfermeiros passaram a fazer a pré-triagem no seu interior — só os doentes em estado mais grave entram no edifício, os outros são observados pelos especialistas ali mesmo, chegando até a fazer exames sobre rodas, revela o médico, que é também diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e presidente da Sociedade Respiratória Europeia.
Comparando o estado atual da pandemia em Portugal com a situação dramática que Itália viveu há quase um ano, ao longo dos meses de fevereiro e março, o pneumologista descreve um cenário de “inferno” no CHUC, onde médicos de todas as especialidades (menos uma) foram recrutados para ver doentes Covid — e tiveram por isso de reduzir as atividades dos respetivos serviços ao mínimo. E alerta: a tendência será para piorar, e a muito curto prazo. “Daqui a mais uns dias isto vai ficar a transbordar e não vamos conseguir abrir mais vagas, portanto pessoas que precisem de ir para os cuidados intensivos porque tiveram uma situação aguda ou um acidente de viação podem não ter lugar.”
Ao longo de mais de 45 minutos, o médico, que dirige uma equipa de mais de uma centena de pessoas, descreveu ao Observador o que está a acontecer neste momento no CHUC, uma conversa ao longo da qual não se coibiu de criticar os moldes do confinamento em curso e as atitudes de quem, ainda assim, o quebrou durante o fim de semana passado. “Em vez de passeios ribeirinhos, as pessoas deviam fazer passeios nas urgências dos hospitais, para perceberem exatamente aquilo que se está a passar e sobretudo o que podem provocar, tanto a si próprios como aos familiares”, chegou a sugerir Carlos Robalo Cordeiro. Eis o seu testemunho:
“A situação nos hospitais é crítica — e o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra não é exceção. Podemos denominá-la como quisermos: ‘caos’, ‘catástrofe’, o que quisermos.
Temos o maior dispositivo Covid do país, temos 352 doentes Covid internados — o Hospital de Santa Maria, que está esgotado, tem duzentos e tal. Em enfermarias normais, temos 296 internados, em 313 possíveis, são 95% de ocupação. Isto é uma loucura e para termos estas vagas tiveram de se fechar serviços, de Otorrino, de Dermatologia, de Ginecologia, de Ortopedia… Neste momento temos 13 enfermarias de internamento dedicadas à Covid. E as pessoas continuam a chegar, abre-se uma enfermaria e um ou dois dias depois já está cheia.
Estava definido que o combate à pandemia ia ser concentrado no chamado polo do Hospital dos Covões, como foi na primeira vaga. Mas entretanto esgotou-se toda a capacidade e teve de ser aberta uma enfermaria de cuidados intensivos no polo dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Neste momento, em cuidados críticos estão 47 vagas ocupadas, de 55, são entre 85% e 90% de ocupação. E se há mais uma folga é porque se foi diminuindo a atividade cirúrgica e os recobros dos blocos operatórios são neste momento unidades de cuidados intensivos, porque têm ventiladores. Depois ainda há 5 crianças internadas nos pediátricos, e mais 3 grávidas na maternidade.
Hoje mesmo decidiu-se que os médicos que trabalham na Neonatologia de uma das maternidades do CHUC passam a ser recrutados pela medicina intensiva, portanto passa a existir Neonatologia só numa maternidade. É a loucura, isto é a loucura…
Um em cada dois vírgula qualquer coisa doentes internados no CHUC é positivo, isto é um hospital destroçado, é um hospital que não está a fazer atividade cirúrgica normal, que não está a fazer muitos meios complementares de diagnóstico, que não está a fazer muitas consultas. Fazemos o mínimo, não é possível mais.
Quando se fala em caos e em rutura é disto que estamos a falar. A maior parte das pessoas estão a fazer tudo menos aquilo que deviam estar a fazer. Os médicos de Pneumologia deviam estar a fazer novos diagnósticos de cancro do pulmão, a observar doentes que têm doença pulmonar obstrutiva crónica ou que têm qualquer outra doença e precisam de fazer exames regulares.
Em vez disso, neste momento tenho médicos do serviço de Pneumologia em sete unidades Covid (e na próxima semana passarão a estar em oito). Tenho médicos do serviço de Pneumologia em enfermarias normais e de cuidados intermédios; tenho médicos do serviço de Pneumologia a fazer urgências 24 horas em três unidades de cuidados intensivos; e tenho médicos a fazer urgência em ambos os serviços de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tanto no polo dos Covões, como no polo do Centro Hospitalar de Coimbra.
Tivemos um surto no serviço que nos obrigou a fechar uma das nossas duas alas durante quase 15 dias. Neste momento temos mais de 20 infetados, três deles médicos. Reabrimos na sexta-feira passada e estamos gradualmente a enchê-la — porque temos doentes não Covid que continuam a vir às nossas urgências e que continuam a ter necessidade de ser internados.
A contar com os internos, somos 48 médicos, 24 especialistas (sendo que metade deles, onde me incluo também, já não fazem serviço de urgência por terem mais de 55 anos), e depois há enfermeiros e auxiliares em número superior. No total somos mais de 100. Temos o número suficiente de médicos para ter a nossa vida normal, se tivéssemos apenas as nossas duas enfermarias a trabalhar e urgências só nos HUC. O problema é que a vida não está normal e, como metade dos especialistas não fazem o serviço de urgência, os que fazem estão a ter de cumprir duas escalas de urgência de 24 sobre 24 horas, mais turnos de 12 horas, todos os dias da semana e do fim de semana. São 28 turnos por semana a dividir por 12, uma perfeita loucura.
Para termos estes médicos todos nestas sete unidades, a fazer urgências nos dois polos e a estar nas nossas duas enfermarias, tivemos de suspender todas as nossas consultas exceto as muito prioritárias — é dramático, mas isto não estica… São doentes que têm de ser vistos, que têm nódulos pulmonares e suspeitas de doença maligna. Mantivemos apenas uma médica a olhar para estes critérios e a gerir estes doentes muito prioritários — numa altura normal todos o fariam.
Isto é um hospital de fim de linha, para toda a gente da região Centro, é para aqui que vêm todas as pessoas que têm suspeitas de patologias mais complexas, para serem atendidos por especialistas que têm uma formação diferenciada. Hoje esse atendimento está muito prejudicado. E é à custa disto tudo que se está a fazer a gestão desta tragédia. Neste momento temos dedicados a estas enfermarias Covid pessoas de praticamente todas as especialidades; da última vez que vi os recrutamentos, a única especialidade médica que não tinha sido chamada era a estomatologia.
Estamos num clima desastroso e acredito que daqui a mais uns dias isto já não vai ficar a 80% nem a 90%, vai ficar a transbordar e não vamos conseguir abrir mais vagas, portanto pessoas que precisem de ir para os cuidados intensivos porque tiveram uma situação aguda ou um acidente de viação podem não ter lugar.
A tragédia é essa. E a verdade é que também já se começa a fazer uma gestão para cuidados intensivos. Cada vez mais temos doentes mais novos que se tornam críticos durante o internamento e precisam de cuidados mais diferenciados. São doentes com idades que não se viam na primeira vaga; nessa altura os mais novos só muito raramente e com fatores de risco importantes é que chegavam aos cuidados intensivos, agora não é assim. Tenho quase a certeza de que a necessidade de entubação e de ida para unidade de cuidados intensivos das pessoas com mais de 70 anos é criteriosamente avaliada, porque haverá outros que podem ter prioridade.
Isto é disruptivo até em termos psicológicos. Aquilo a que assistimos em Itália, quando começou a pandemia — e eu tenho muitos amigos médicos pneumologistas italianos, com quem trocava mensagens quase diariamente nessa primeira fase, que diziam que aquilo era o inferno —, estamos nós agora a viver aqui. Agora está-se a viver aqui o inferno.
Os meus colegas dizem-me que, neste momento, o normal é haver filas de 10 ou 15 ambulâncias à porta das urgências. Os médicos de Pneumologia, nas urgências dos Covões, vão às ambulâncias observar os doentes e fazer-lhes exames. São feitas gasometrias — aquele exame para se ver o oxigénio no sangue — dentro das ambulâncias. E antes disso já há uma gestão de prioridades feita nas ambulâncias, a pré-triagem já é feita ali. Os enfermeiros vão lá fora ver se os doentes podem ser geridos ali ou se têm de ir para dentro. Só entram os que são considerados mais urgentes, os que se considere que podem ser ali observados, ali ficam até virem análises, irem fazer um exame de imagem, o que for.
Isto não é nada, não é? Se calhar quem passou por situações de guerra ou de calamidades estará preparado para lidar com estas situações e para encarar isto com mais normalidade. Se é que isso é possível — os médicos, os enfermeiros e os auxiliares são pessoas. E estão a ver pessoas que podem ser os nossos irmãos, pais, avós ou filhos. Toda a gente sabe que quem vai para a urgência dos Covões vem completamente destroçado.
Todos os anos há um plano de contingência nos hospitais para as temperaturas adversas, para o frio e para a gripe. Esse plano é geralmente ativado em novembro, no máximo em dezembro, e contempla sempre uma ou duas enfermarias de especialidades que têm menos necessidade de internamento e que são alocadas para receber os doentes com gripe. E depois há três especialidades que fazem essa gestão: a Pneumologia, a Infecciologia e a Medicina Interna, que no fundo também são, para além dos Cuidados Intensivos, aquelas que estão mais envolvidas na pandemia. Isso faz com que os médicos do serviço de Pneumologia estejam há mais de um ano em plano de contingência, sendo que não têm férias desde o verão e não tenho a mínima dúvida de que no primeiro trimestre deste ano também não vão ter.
Os médicos estão exaustos, ninguém tem um bocadinho para fazer nada seu, as pessoas fazem pausas muito cirúrgicas para as refeições e tem sempre de ficar alguém a tomar conta das coisas. Mesmo assim já os senti muito mais desesperados, acho que assimilaram o espírito de solidariedade e de entrega que faz parte, obviamente, da nossa profissão — criou-se um espírito de entreajuda e de solidariedade que é notável.
Em vez de passeios ribeirinhos, as pessoas deviam fazer passeios nas urgências dos hospitais, para perceberem exatamente aquilo que se está a passar e sobretudo o que podem provocar, tanto a si próprios como aos familiares. Se lá fossem, não iam sequer conseguir entrar, mas iam ver as filas de ambulâncias e os médicos e enfermeiros, desesperados e cansados, a virem apanhar um bocado de ar para conseguirem respirar fundo, desabafar ou até chorar. As pessoas estão a assistir a tragédias, cada vez mais estamos a integrar nos nossos hospitais doentes mais novos e com doença grave. E também estão a ver os colegas a infetarem-se, temos vários colegas em unidades de cuidados intensivos neste momento.
Este avolumar de doentes é muito difícil, se alguém acha que se pode dar ao luxo de dar um passeio na marginal de Cascais ou do Estoril apenas porque lhe apetece, porque está um bom dia de sol e porque tem a desculpa de que tem uns ténis calçados ou um cão ao seu lado, pelo menos que vá sozinho, de máscara e se afaste das pessoas.
Estas atitudes são perfeitamente lamentáveis, mas também estão relacionadas com a falta de coragem para comunicar com os portugueses de forma verdadeira e para tomar as medidas que têm de ser tomadas. Não podemos andar a brincar aos confinamentos. Neste momento somos o pior país do mundo, e se amanhã não formos o pior, somos o segundo ou o terceiro. Estamos no top 5 da desgraça, em número de novos casos e em termos de letalidade. Não podemos andar a brincar.”