Miguel Miranda dirigiu o IPMA durante mais de 10 anos, cargo que abandona ao completar 70 anos e chegar ao limite de idade. Geofísico, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, foi lá que a 26 de Maio, deu a sua lição de jubilação, uma aula acompanhada por centenas de pessoas e com vários ministros e antigos ministros na plateia. O texto que esta segunda-feira publicamos é uma adaptação livre feita pelo próprio dessa aula onde falou sobretudo do papel que os cientistas devem ter na definição das políticas públicas. Depois de recordar a centralidade que Portugal sempre teve em áreas como a meteorologia e a oceanografia, lembrou as lições das grandes crises que vivemos nos anos em que dirigiu o IPMA (os incêndios de 2017, as cheias de 2022, a crise sísmica em São Jorge, os problemas com a pesca da sardinha), defendeu que o estudo da crise climática obriga-nos a conhecer melhor os oceanos e não deixou de deixar palavras mais críticas sobre a degradação da qualidade e as dificuldades da alta administração pública.
Desde a segunda metade do século XX que o aconselhamento científico se tornou uma componente da decisão política em todas as áreas onde a gestão de recursos provenientes do meio natural é decisiva, e estes são escassos. Esta situação ganhou progressivamente importância no setor primário e nas áreas diretamente influenciadas pelas condições biogeoquímicas na baixa troposfera e no oceano. A perceção da finitude do sistema natural é muito ampliada pela expansão humana nas duas últimas décadas do século XX, pelo que a introdução de alguma racionalidade na exploração se torna inevitável mesmo para os atores políticos menos responsáveis.
Política e ciência não combinam necessariamente. A ação política baseia-se em compromissos de poder e de interesse e a sua influência sobre a ciência é realizada através das agendas de financiamento, da estrutura das organizações e da perceção das empresas de que é um elemento relevante das cadeias de valor ou do reconhecimento pelos cidadãos da sua importância e credibilidade.
Os recursos humanos e financeiros atribuídos à Investigação e Inovação em todo o mundo têm crescido assinalavelmente. Mas este crescimento foi sempre acompanhado pela mudança entre ciência movida pela curiosidade e ciência como estratégia. A partir daí a ciência passou a ser um elemento das políticas, onde apenas a diversidade das fontes de financiamento introduz diversidade nas estratégias de desenvolvimento científico e de inovação.
Apesar do recurso à ciência como fonte e garante da decisão políticas, muitas vezes de forma puramente instrumental, muitos das decisões necessárias à gestão não podem nem devem ser feitas pela ciência. É esse o caso da alocação de recursos entre competidores pelo mesmo bem, a definição do nível de risco aceitável pela comunidade, ou mesmo a competição entre valores ambientais ou entre estes e os valores sociais.
Os Laboratórios do Estado
A criação dos Laboratórios do Estado na década de trinta do século XX procurou responder a à necessidade de incorporar mais ciência no processo político e/ou económico, mesmo num cenário de desenvolvimento científico e económico residual. Os Laboratórios de Estado são vocacionados para a investigação aplicada de suporte ao setor económico ou em áreas emergentes. Exemplos são o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, criado em 1946, que assume um papel de relevo impulsionado pelo investimento em infraestruturas, e o Laboratório de Física e Engenharia Nuclear criado em 1961 que introduz elementos de modernidade na investigação fundamental.
Fora dos Laboratórios do Estado verifica-se o desenvolvimento de investigação associada às universidades, onde considerado como suporte indispensável à formação superior. À parte os financiamentos realizados através do Instituto de Alta Cultura e do Instituto Nacional de Investigação Científica o tecido estável de investigação manteve-se bastante reduzido, com um papel relevante para a criação de unidades como o Instituto Gulbenkian da Ciência a partir de iniciativas não estatais.
O grande salto da organização da comunidade científica nacional dá-se com o financiamento de unidades baseadas em universidades a partir de 1993, a expansão de um sistema de avaliação internacional, a criação de Laboratórios Associados, muitos dos quais organizados como entidades privadas sem fins lucrativos e, mais recentemente, a criação dos laboratórios colaborativos. Este caminho que teve em Mariano Gago um ator determinante que conduziu ao aumento da competitividade da ciência nacional e em muitos casos ao reforço da ligação ao ensino graduado e ao setor económico. Esta revolução deixou quase sempre para trás os Laboratórios do Estado, considerados como estruturas desatualizadas e incapazes de atuarem como atores relevantes da modernidade e, em particular, do desenvolvimento económico baseado em investigação e inovação.
É por isso que, em 2012, durante a intervenção em Portugal da “troika”, a estruturação de um Laboratório do Estado direcionado para o “mar e a atmosfera” foi interpretada como mais uma decisão política motivada pela necessidade de redução de custos e desprovida de qualquer sentido estratégico. Contudo, esta iniciativa radicava profundamente na história do país e na visão que o sistema terrestre deveria ser estudado como um todo, e que permitiria o aproveitamento das vantagens de posicionamento do país no atlântico nordeste.
Em 2012, numa altura em que a ação climática era já uma prioridade e o oceano eternamente definido como desígnio nacional, mas sempre longe da economia real e do investimento público, a ideia de junção de todas estas áreas numa única organização foi lançada em 2012 pelo Manuel Pinto de Abreu, então secretário de Estado de Assunção Cristas.
O mundo como destino
A distinção fundadora das áreas científicas que se juntaram no IPMA é que todas nasceram como ciências planetárias e cresceram no quadro da cooperação global.
A Organização Meteorológica Internacional (IMO) é uma organização internacional decidida em 1873 e criada seis anos depois para o intercâmbio de dados meteorológicos em todo o mundo. A sua primeira reunião junta representantes de dez países: Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Noruega, Holanda, Portugal, Rússia e Suécia. A sua última conferência tem lugar em Paris a 17 de março de 1951 com a criação de uma organização intergovernamental, a Organização Meteorológica Mundial em 23 de março de 1950 logo depois reconhecida como uma agência das Nações Unidas.
O Geomagnetismo seguiu um caminho paralelo. Depois de um encontro com Humboldt em Gottingen, Gauss procura identificar a origem do campo magnético observado à superfície da Terra e conclui que a representação deste campo em harmónicas esféricas permite distinguir uma origem interna duma origem externa. Para isso desenvolve um método para determinação da intensidade do campo magnético e promove a instalação de observatórios distribuídos ao longo do planeta que realizam observações a horas pré-estabelecidas. Aqui também Portugal tem um papel relevante, com João de Castro a identificar a magnetização das rochas como uma fonte deste campo e o início das observações no Observatório Meteorológico do Infante D. Luís em 1857. Mais tarde a rede sismológica mundial virá a ter um papel igualmente importante pela necessidade de observações globais para o estudo dos grandes sismos.
O ICES, International Council for the Exploration of the Sea, foi fundado em 1902 por Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Países Baixos, Noruega, Suécia, Rússia e Reino Unido, tendo Portugal aderido em 1920 ao mesmo tempo que a França, tendo por cinco vezes assumido uma das vice-presidências. Atualmente inclui 20 Estados-Membro, essencialmente cobrindo o Atlântico Norte. É hoje o grande centro de “brokerage” do conhecimento científico que apoia as decisões políticas da comissão europeia sobre os recursos biológicos marinhos. A par do ICES, outros organismos como a NAFO ou o ICCAT sempre tiveram uma participação muito ativa da comunidade científica nacional.
Como foi possível que Portugal tenha estado na linha da frente nestas áreas apesar da clara fragilidade da sua infraestrutura científica e das suas instituições? A resposta tem a ver com a geografia e com a economia: um país com uma agricultura pobre que se virou para o Atlântico e desenvolveu uma dimensão arquipelágica encontra aqui uma função diferenciadora.
Oceano e Clima, porque tardou tanto a compreensão?
Ao fim de uma década, cruzam agora o Atlântico navios comerciais que levam consigo instrumentos meteorológicos e oceanográficos que recolhem informação qualificada e a transmitem para o IPMA que a retransmite de forma aberta e livre para todos e a integra no sistema mundial da meteorologia e da oceanografia. Num futuro próximo seguramente que os operadores económicos no mar, cuja operação depende criticamente de parâmetros ambientais, serão uma parte ainda mais ativa deste sistema comunitário de partilha de dados. Nada disto teria sido possível sem o codesenvolvimento cultural entre meteorologistas, geofísicos, oceanógrafos, biólogos, químicos e geólogos que o IPMA, mas não só, corporiza.
É hoje bastante incompreensível a razão pela qual a estrutura científica e operacional do IPMA pareceu estranha a muitos. Contudo, é justo salientar que esta estranheza não aconteceu só em Portugal. Mesmo no IPCC a realização de estudos sistemáticos sobre a mudança climática no Oceano é muito recente, e as Conferências das Partes só incluem expressamente o Oceano a partir da COP27.
Alguns dos sintomas externos da mudança planetária aparecem hoje sob a forma de perigos naturais e de mudanças rápidas no ambiente marinho. Estes dois subsistemas planetários são os que mais rapidamente traduzem a mudança global e cujo acompanhamento é crítico para a monitorização da mudança.
Muito pouca adaptação para tanta emergência
É impossível fazer um balanço destes 10 anos à frente do IPMA sem falar dos fogos de 2017. Não quero entrar na discussão que envolve a vulnerabilidade da cobertura vegetal ou a insuficiência dos meios existentes no sistema da proteção civil para lidar com a situação ou mesmo dos diferentes paradigmas propostos para mitigar o problema. Do ponto de vista meteorológico os fogos de 2017 mostraram que entrámos num novo mundo de emergência caracterizado por uma grande violência dos acontecimentos cujo desenrolar temporal limita a capacidade de gestão adaptativa.
No dia 14 de junho às 16:18 o IPMA emite um aviso de nível amarelo de tempo quente para o distrito de Leiria. No dia seguinte, 15 de junho, pelas 23:27 eleva o nível para laranja para o dia 17. No dia seguinte, 16 de junho, pelas 22:48 o nível é elevado para vermelho. O dia 17 viria a ser caracterizado por uma temperatura média superior a 29 graus, cerca de dez graus acima da normal e metade das estações com valores acima dos 40 graus. A humidade relativa em grandes áreas inferior a 20%. Alta instabilidade atmosférica. As estações meteorológicas do Alto Alentejo registam sinais claros de três outflows convectivos, com fortes rajadas de vento, configurando um downburst que amplia o fogo rural entretanto desencadeado em Pedrogão Grande e eleva ao céu a pluma do incêndio. O incêndio alarga-se aos concelhos vizinhos. O balanço oficial contabilizou 66 mortos em particular na estrada EN236 onde a temperatura ultrapassou os 900 graus e os corpos foram instantaneamente incinerados sem contacto com as chamas, bem expresso pelo título do documentário produzido por DiCaprio: “O Sopro do Diabo”.
Os dias que se seguiram ficaram marcados pela Babel comunicacional e em particular por notícias e vídeos forjados que ainda se encontram na internet. Do nosso lado abrimos de imediato toda os dados aos cidadãos e à comunicação social, refizemos e validámos as determinações, em particular as relacionadas com a origem do incêndio, percorremos as áreas ardidas para observar os efeitos e assim inferir as temperaturas junto ao solo. A equipa que o fez nunca se irá esquecer nem dos efeitos do incêndio nem dos contactos com os sobreviventes. Muita da relação de trabalho e de transparência que fomos desenvolvendo com a comunicação social foi forjada nos dias difíceis de junho de 2017.
Em 15 de outubro de 2017 repetiu-se uma situação extrema de perigo de incêndio com os índices a atingirem valores máximos históricos. Mais de quatrocentos incêndios destruidores em quarenta concelhos e novamente 50 vítimas mortais nos distritos de Coimbra e Viseu. Tal como afirma o jornal Público, “o perigo meteorológico de incêndio tinha sido classificado como Extremo para quase todo território de Portugal continental e essa previsão, do Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), existia desde 12 de outubro”. À medida que os fenómenos extremos se multiplicam, os avisos coloridos entram na vida de todos, mas a capacidade de previsão nem sempre se concretiza em redução significativa de danos.
No dia 22 de setembro de 2019 forma-se perto de Cabo Verde uma tempestade que evolui para furacão no dia 25 e recebe o nome Lorenzo. No dia 27 atinge a categoria 4, com ventos de 230 km/h. No dia 29 atinge a categoria 5 e desloca-se para nordeste atravessando os Açores à medida que perde energia cruzando as Flores no dia 2 de outubro já com categoria 1 mas com vento superior a 160 km/h no Corvo e ondulação de 15m. A destruição nas Flores, Corvo e Faial é enorme e a energia envolvida desafia qualquer nível de preparação. A previsão meteorológica foi quase perfeita e a evolução do furacão foi seguida ao minuto entre meteorologistas, cidadãos, governantes e comunicação social. Atualmente todas as tempestades que dão origem a um aviso laranja de um dos serviços meteorológicos da Europe Atlântica recebem um nome que rapidamente se torna conhecido. Ao ganhar identidade os fenómenos naturais extremos passam a fazer parte da nossa vida e permanecem na memória.
No dia 19 de março de 2022 começou a ser observada na rede sísmica nacional uma crise sísmica persistente. A magnitude dos eventos aproximou-se de 4, com epicentros bastante superficiais com mais de uma dezena de milhar de eventos. À superfície foi possível medir por interferometria uma deformação de cerca de 8 centímetros. Em diversos locais do mundo – Lisboa, Açores, Cardiff e Londres –, foi acompanhada a evolução da intrusão, que deverá ter correspondido a um dique com um metro de largura que deformou alguns centímetros o grupo central e que esteve perto de atingir a superfície perto de Velas. Numa situação de perigo de desenvolvimento mais lento é absolutamente necessário recalcular em contínuo os cenários possíveis de evolução e comunicá-los com serenidade. Os riscos geológicos são mais raros que os meteorológicos e a memória individual tem que ser ajudada pela memória coletiva.
Depois de um longo período de estio as chuvas torrenciais de dezembro de 2022 e janeiro de 2023 voltaram a surpreender. Como é possível? Nunca no passado existiu o nível de previsão meteorológica que agora temos. Nunca a comunicação foi tão rápida e incisiva. Confrontados com a magnitude dos efeitos a reação de muitos pautou-se por uma enorme falta de censo. Uma vez mais abrimos as portas à comunicação social. Referi atrás o Público, refiro agora a repórter do Observador que passou com o turno da noite a preparação da previsão para o dia seguinte. Nada responde melhor à falta de censo que a comunicação viva, real, palpável, sentida, do trabalho feito por máquinas e por pessoas profundamente dedicadas. Toda a comunicação social portuguesa, com relevo para a televisão, tem sido um instrumento essencial para o esclarecimento e o aviso rápido.
Terminados os períodos de emergência o esforço tem que ser direcionado para a intervenção inteligente nas áreas afetadas, corrigindo deficiências porque este tipo de perigos irá aumentar ao longo do século. O esforço realizado no ano passado na Serra da Estrela foi demasiadamente lento. A recuperação de Pedrogão pouco alterou da paisagem física e social. Não conheço a extensão das intervenções após as cheias deste ano, mas temo que estamos a ter muito pouca adaptação para tanta emergência. E pior ainda temos mesmo que balancear sustentabilidade social com sustentabilidade económica e todas as estratégias de adaptação que não sejam economicamente viáveis ou se baseiam na necessidade de subsídios permanentes são inviáveis.
O compromisso entre emergência e adaptação vai marcar o século XXI.
Atingindo os limites do uso do oceano
Hoje já é claro que a mudança de que estamos a falar não atingiu uma situação de estabilidade, qualquer que ela seja, e que se numa metáfora termodinâmica representarmos o estado do planeta num “espaço de fases” estaremos a escorregar continuamente entre configurações sucessivas que nunca conhecemos antes.
Se na atmosfera o sinal das mudanças planetárias nos aparece essencialmente sob a forma de fenómenos extremos, no oceano os processos são mais lentos, mas as mudanças físicas, químicas e biológicas prosseguem de forma inexorável. O oceano absorve cerca de 70% do calor adicional produzido pelo aumento de emissões e, apesar da grande capacidade calorifica da água, a sua temperatura tem que suscitar apreensão.
O oceano é também o último grande território da Terra onde ainda se caça. De todas as pescarias que têm valor para a nossa comunidade a sardinha tem um valor particular. Tal como o pastel de nata e as receitas de bacalhau, a sardinha está no imaginário nacional e é economicamente importante para o setor da pesca do cerco e para as conservas.
A gestão da sardinha é realizada por Portugal e Espanha, mas dependente das avaliações feitas pelo ICES. As capturas autorizadas são determinadas de modo a ser assegurada a sustentabilidade de longo prazo. Após 2011 o estado da população e as possibilidades de pesca decresceram abruptamente para mínimos históricas, como resultado de recrutamentos muito baixos desde 2007. A biomassa desovante que chegou a ultrapassar 1 milhão de toneladas nos anos oitenta ficou reduzida a pouco mais de 110 mil toneladas em 2015.
Os pelágicos são um caso que a matemática conhece como a indeterminação “infinito vezes zero”.
O percurso entre 2015 e 2021 foi dramático para todos. A frota desceu abaixo do seu limiar de sustentabilidade económica. As regras usadas para gerir a exploração foram postas em causa. A seriedade dos investigadores também. Os cruzeiros de acústica rodeados de enorme expetativa com versões contraditórias entre pescadores e cientistas. A gestão partilhada inicialmente serena tornou-se tumultuosa. O compromisso entre valores sociais e ambientais incrivelmente difícil de alcançar. Como saber onde acaba o compromisso possível e começa o erro irremediável?
Visto do presente o “caminho das pedras” foi um sucesso. Vivido na altura foi uma guerra sem quartel entre uma capacidade de previsão necessariamente baixa, meios deficientes de monitorização, possibilidade iminente de colapso da pescaria, prejuízos inegáveis nos operadores. Ainda hoje não é claro o papel que a sobrepesca em 2010-2011 assumiu na redução do manancial ou se foram determinantes os fatores ambientais.
Qualquer que seja a explicação as medidas ao nosso alcance são sempre as mesmas: reduzir o esforço de pesca, e proteger as zonas de reprodução, avaliar com rigor. Tanto na comunidade profissional como na científica multiplicaram-se as contradições, mas nos minutos em que é necessário decidir, coube à equipa do IPMA o difícil papel de prestar o melhor conselho possível à administração e justificá-lo serenamente ao setor.
Visto do presente foi um grande trabalho.
O mediador honesto
Na literatura especializada é utilizada a expressão “knowledge broker” para designar o processo pelo qual é realizada a avaliação científica para suporte de políticas publicas, tendo em consideração a integração dos múltiplos resultados de investigação e a existência provável de controvérsia. Falamos muitas vezes de política baseada em ciência e pode haver a tentação de se considerar a ciência como algo de definitivo, ou confundir a opinião da ciência com a opinião de um técnico ou um cientista particular. É vulgar ouvirmos organizações reclamar para si a voz da ciência, numa espécie de agit-prop científica, substituindo a avaliação científica séria e por isso incompleta e controversa por uma vulgata simplista.
As políticas públicas, em particular aquelas que atingem diretamente os cidadãos na sua segurança, precisam de opiniões informadas, assentes em investigação séria própria ou alheia, sem conflitos de interesse com o seu objeto, sem preconceitos, claras no que respeita à incerteza associada, objetivas nas ações que propõem, e social e ambientalmente responsáveis.
A “mediação honesta” é em si também um produto científico sendo um bom ponto de partida que seja realizada por quem tenha suficiente erudição, qualidade científica suficiente para ser considerado um parceiro pelos melhores grupos de investigação do país e do mundo, humildade suficiente para acolher opiniões contraditórias e apego à verdade.
A nova inteligência coletiva
Uma das componentes fundamentais dos institutos púbicos de investigação como suporte às políticas públicas tem a ver com a capacidade de fornecer opiniões cientificamente informadas baseadas na combinação entre o conhecimento científico próprio ou recolhido junto da comunidade científica e experiência passada. Contudo, os avanços recentes dos sistemas baseados em AI permitem uma capacidade sem precedentes de compilação de experiências semelhantes no universo global e julgamento comparativo expedito. Esta capacidade é já superior à capacidade humana de “brokerage” de informação científica e irá aumentar rapidamente à medida que mais experiência vai sendo digitalmente acumulada e que sistemas de processamento mais complexos são capazes de diagnosticar cada uma das situações.
Num futuro próximo serão os sistemas baseados em AI que irão estabelecer o consenso informado e só o conhecimento disruptivo terá real interesse. A tendência atual de começar a construir os blocos que levarão à existência de gémeos digitais da atmosfera e do oceano apontam já neste sentido.
Uma das grandes limitações à ação dos responsáveis pelas políticas públicas prende-se com o facto de nem todas as ações necessárias serem de custo social nulo, agravado pelo facto de nem todos os setores sociais têm a mesma fragilidade, pelo que o esforço concertado de previsão, mitigação e adaptação vai exigir igualmente respostas sociais. Vamos ter situações de emergência, e temos poucas ferramentas de apoio à decisão mais inteligentes que o julgamento humano. A utilização de “machine learning” no processo de decisão em emergências é outra área onde a investigação está ainda no início.
O futuro dos Laboratórios de Estado
Apesar de terem sido as primeiras instituições publicas de investigação dotadas de recursos humanos e técnicos para suporte ao que se denomina hoje “políticas publicas”, os Laboratórios de Estado vivem numa situação real de indefinição. Em muitos casos é questionado se ainda existe um papel para eles ou se se trata apenas de “organizações zombie” que avançam para lado nenhum. Apesar da tentativa de Manuel Heitor de criar com a Lei da Ciência um quadro em que o papel destas organizações é valorizado, esta lei ainda hoje não foi aplicada, juntando-se a muitas outras que vagueiam na zona de penumbra dos mortos-vivos do ordenamento jurídico do país.
A interface entre ciência e política exige hoje um conjunto grande de atores, capazes de atuar como brokers de conhecimento e um grande nível de integração internacional. De entre estes organismos os Laboratórios do Estado podem ainda hoje ocupar um papel decisivo, desde que sejam capazes de manter a rede de conhecimento com a totalidade da comunidade científica, assegurar uma ligação estreita ao setor económico e estabelecer uma agenda de investigação que combine as prioridades nacionais que apenas parcialmente são estabelecidas pelos governos, com a capacidade de prospetiva que induza investigação básica em áreas emergentes.
A tendência atual para a desorçamentação que passa pela criação de uma miríade de instituições privadas sem fins lucrativos é impulsionada pelo estado a que chegámos na contratação pública, em particular pela aplicação do “princípio da agregação de despesa” e a lei da “responsabilidade sancionatória”. A junção entre legisladores sem experiência real de administração pública, transformação da morosidade do Ministério das Finanças em estratégia gestionária do país, e moralismos vários, conduziu o Estado a uma semiparalisia e ao esgotamento dos seus profissionais.
Para muitos a única solução é a transferência de responsabilidades para organizações mais ágeis, mas isso tem um preço: a perda de competitividade das estruturas públicas de investigação, a duplicação de recursos, e a criação de ambientes que não são nem privados nem públicos, não tendo os mecanismos de controlo de nenhum dos dois mundos. Soma-se a isso a pressão de penalizações sobre dirigentes mal pagos, sem recursos, sem capacidade de constituição de equipas a quem tudo se pede.
Esta é também uma das razões pelas quais existe uma incapacidade crescente do sistema político de apoiar dirigentes competentes e independentes nos organismos do Estado. Contudo, à posteriori, são os únicos com que realmente podem contar. Não parece haver valor tangível na lealdade de medíocres.
Todos os talentos são decisivos
Perdemos demasiado tempo a tentar convencer os indecisos e temos mesmo que nos centrar na reação ao problema. Tem-se falado muito da responsabilidade social dos cientistas e a mudança climática é uma das áreas onde essa responsabilidade é mais evidente. Nós, pequena parte da comunidade científica internacional, devemos fazer mais e melhor, mas temos também a obrigação de chamar a atenção dos decisores para a necessidade de encarar esta área científica com maior energia e determinação, dada a dependência que dela têm a generalidade das políticas públicas de mitigação e adaptação.
Temos que começar também a falar mais da responsabilidade científica dos cidadãos, cada vez mais parte ativa do processo de monitorização física, química e biológica da Terra necessários para o acompanhamento das mudanças a que iremos assistir. Vamos todos provavelmente ser testemunhas de acontecimentos meteorológicos, oceanográficos e, em sentido lato ambientais, que nunca foram vividos. Temos que testar de forma robusta alternativas de políticas públicas de forma a apoiar os decisores e os cidadãos. Precisamos de mais rigor, menos incerteza e mais cooperação interdisciplinar.
É por tudo isto que temos que convocar todos. Todas as organizações são bem-vindas. Todos os esforços são necessários, todos os talentos são decisivos.
O renascer das Ciências Naturais
A extensão da intervenção humana no sistema natural é de tal forma elevada que Paul Crutzen a considerou como da mesma ordem de grandeza que a dos processos geológicos, propondo que se considerasse que estamos a entrar numa nova época, que denominou Antropoceno. Os indicadores biológicos são hoje mais esmagadores do que os indicadores estritamente geofísicos e a sua dimensão começa agora a ganhar o que poderemos chamar uma dimensão geológica. As mudanças geológicas são sempre marcadas por descontinuidades de primeira ordem na biosfera.
Temos tido demasiada atenção aos aumentos de temperatura média de 1,5 ou 2 graus porque são indicadores que a política consegue perceber. Mas estes indicadores cada vez têm menos poder explicativo. O sistema natural está a sofrer uma grande mudança porque a ação humana, com a sua vitória esmagadora sobre as outras espécies desencadeou fenómenos cuja energia se afigura ser de escala geológica.
Qualquer que seja o caminho que a humanidade irá seguir para encarar o enorme desafio da mitigação e adaptação à mudança, tal tem que passar naturalmente por ações de recuperação do sistema natural. E tem de ser claro para todos que sabemos muito pouco sobre esta recuperação.
Ainda antes de sabermos como resolver os problemas de engenharia necessários para endereçar os processos das transições energética e alimentar precisamos de trilhar o caminho que nos reúna de novo com o mundo natural.
Precisamos de conhecer e modelar a totalidade do sistema planetário, com as interações de todas as espécies e a sua interdependência. Precisamos de antever as interações entre a composição atmosférica e o clima. Precisamos de saber como inverter a situação atual, corrigindo emissões, mas também repondo sistemas naturais pelo menos no ponto onde o crescimento exponencial rompeu a estabilidade e o equilíbrio planetário.
Para isso temos de voltar a assumir a centralidade das ciências naturais porque a reposição dos equilíbrios não vai ser feita de forma natural, não é evidente e o caminho racional do futuro é o da disputa dos recursos escassos. O caminho estreito que nos espera não vai ser produzido pela racionalidade porque precisa de ingredientes como o altruísmo, a empatia e o desapego.
Finalmente temos que nos pôr a questão: com quem podemos contar para fazer aqui, onde vivemos, o que falta fazer? O esforço que vai ser necessário só se compara ao que levou a erguer catedrais: pés no chão, alicerces fundos e ambicionando o céu. O exército para tal que não se escolhe. Olhemos ao nosso lado para vermos aqueles que nos vão acompanhar. Não podemos contar com mais ninguém. Com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos. Com doses suficientes de ambição e de humanidade. Com exigência algumas vezes e com negligência muitas vezes. Melhores que alguns em muitas áreas. Melhores que todos nalgumas áreas. Para o bem e o mal, nós somos Atlântico e nós somos Portugal.