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Seria injusto dizer que a história política de Marcelo Rebelo de Sousa é mais mediática do que política. O comentador Marcelo entra pela casa adentro de milhões de portugueses moldando pensamentos, dizendo maldades, criticando tudo e todos e “motivando agastamentos e malquerenças” há mais de 14 anos. O homem frenético, excêntrico, “hipocondríaco militante”, imprevisível, que gosta do jogo político pelo divertimento, que é mais tático que estratégico, a quem muitos reconhecem a genialidade e a quem os amigos previam um futuro primeiro-ministro, não ganhou eleições e de outras vezes demitiu-se antes de elas acontecerem.
Marcelo foi o político que nasceu e cresceu com o pai governante do Estado Novo, que esteve na fundação do PSD, que lutou contra o Bloco Central, que chegou a líder dos sociais-democratas e que se demitiu por choque com Paulo Portas, foi sobretudo o comentador mais temido da televisão. Recordista de audiências, fez leituras políticas com mais ênfase na tática do que na estratégia, deu palpites, criticou tudo e todos, à vez. Criou ondas, criou modas. E com tudo isso criou medo, zangas, inimigos. Sobretudo medo, porque a suas audiências foram crescendo com a sua autoproclamada ‘independência’. E com essas audiências ganhou o poder de fazer acontecer ou de desfazer.
Marcelo sai este domingo da TVI, que foi o seu palco durante anos, depois da RTP, também depois da TSF. Candidato “à Presidência da República de Portugal”, como disse na apresentação da candidatura, terá de reinventar a personagem política e despir a pele de comentador – aproveitar o bom, esconder o pior. Ser analista deu-lhe a notoriedade, mas não lhe dá a pose de estadista para a Presidência da República. Chegou a hora de o criador matar o personagem do comentário. Marcelo quer agora ser o primeiro na escala da República, numa altura em que não se sabe ainda quem vai governar e como. Mas o professor tem umas ideias – sempre teve umas ideias. Uma pergunta: quem sabe quais são?
Jornalista e político. A eterna vida dupla e a ‘independência’
Ainda não tinha 30 anos e já era diretor-adjunto do Expresso. As suas crónicas e notícias, as intrigas que espalhava, brilhavam no jornal de Balsemão, mas enervavam Sá Carneiro, o fundador do PPD que era então o primeiro-ministro. Não era nada de pessoal, com ele nunca é: as mesmas crónicas, notícias e intrigas passaram a enervar Balsemão (o dono e fundador do jornal) quando este subiu a ministro e depois primeiro-ministro. Piedade não é a característica mais conhecida em Marcelo. Na “Gente”, a coluna onde há dezenas de anos se brinca com os políticos, escreveu isto do patrão: “Balsemão é lélé da cuca”. Mas acabaria mesmo como diretor do jornal, mostrando naquelas páginas em tamanho broadsheet que a sua independência era o seu maior trunfo. Custasse a quem custasse.
E a Balsemão custou mesmo, sobretudo nos anos em que esteve em São Bento. A Balsemão e ao PPD/PSD, o partido de quem o jornalista e diretor continuou militante (como depois foi militante e comentador). Marcelo foi sempre assim, com todos governos, sobretudo com os direita. Foi com eles que foi mais ácido, foi com eles que ganhou influência nos media – como o militante que menos medo tem de desalinhar. (“Uma parte do poder laranja começa a criar aversão às opiniões de Marcelo, uma tendência que o acompanhará nas décadas seguintes. Por norma, as análises farão sempre mais mossa no poder laranja que nos outros partidos”, escreve Vítor Matos na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa).
Balsemão percebeu isso e tentou uma vacina: chamou Marcelo para o Governo, em parte, conta o biógrafo de Marcelo, para o tirar do palco e acabar com as críticas ao Governo que saíam do seu próprio jornal. E eis que Marcelo se estreou num cargo político. Primeiro como secretário de Estado, depois como ministro dos Assuntos Parlamentares. Durou pouco: cansado da indecisão do governo balsemista, dos ritmos lentos dos corredores do Governo, Marcelo fartou-se rápido. O poder que tinha no Governo era, também ele, menor do que aquele com que contava antes no influente Expresso. Rezam as crónicas que nessa altura, com pouco mais de trinta anos, Marcelo transforma-se num distribuidor de notícias por vários jornais. Depois, quando sai do Governo, em 1983, voltou ao jornalismo. Para criar o Semanário, o jornal em que Balsemão não mandava (mas que tinha o PSD bem lá dentro).
Nas páginas do novo jornal, semana sim, semana sim, o cronista Marcelo escrevia contra o bloco central de Mário Soares e Mota Pinto, que tinha nascido do fim abrupto do Governo de Balsemão. E abria uma janela de combate dentro do próprio PSD para o seu grupo, a Nova Esperança que era dele, de Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, José Miguel Júdice e António Pinto Leite. Irritando Mário Soares, Marcelo usou o Semanário para impôr um prazo limite ao governo PS-PSD: das presidenciais de 85. E defendeu que o PSD deveria apoiar a candidatura de Freitas do Amaral. Nesta época, Marcelo e o grupo da Nova Esperança queriam encostar o PSD à direita, desligando-o do PS.
Marcelo, o jornalista, continuava a ser Marcelo, o político. E o político colocava-se como um dos nomes possíveis à sucessão de Mota Pinto no PSD. Mas tudo se precipitou com mais um dos momentos fatídicos do partido. Mota Pinto morreu e deixou o PSD órfão de líder, pela segunda vez em cinco anos.
Foi, assim, numa intensa disputa interna que o PSD chegou ao memorável congresso da Figueira da Foz. E esse ano de 1985 foi o ano em que Marcelo poderia ter voltado ao palco da política (descontados os bastidores) e sido eleito líder do partido. À partida para o congresso, conta Vítor Matos na biografia, Marcelo disse mesmo aos filhos que poderia regressar como presidente do PSD. Por essas semanas, Marcelo era cauteloso. Por um lado, tinha estado numa reunião com distritais de onde tinha saído um cartão vermelho a Machete – que tinha substituído Mota Pinto no Governo de Bloco Central -, por outro, ia dizendo que o que importava era que do congresso saísse “uma estratégia presidencial, uma estratégia de governo e uma estratégia de médio prazo”. O rosto? “Isso depois se verá”.
Marcelo esperou pelo congresso. Mas o rosto que saiu de lá não era o que ele contava que saísse (nem ele nem grande parte do PSD). Foi o de Cavaco Silva.
“Temos homem para 20 anos. (…) Enganei-me, foram 10 mais 10!”, Marcelo ao Observador sobre Cavaco Silva
Como bom narrador, Marcelo foi moldando ao longo dos anos a história do seu não avanço naquele congresso da Figueira. Ao Observador contou que sempre defendeu Cavaco, até porque já tinha hesitado no ex-ministro das Finanças de Sá Carneiro um ano antes, quando no congresso de Braga se debatia quem deveria ser o candidato presidencial.
“A consideração por ele é tal que quando eu, um ano antes, no congresso de Braga, disse que poderíamos [avançar com] Mota Amaral, Alberto João Jardim para a Presidência da República, eu hesitei entre esses nomes e Cavaco Silva. E a razão decisiva porque não falei em Cavaco Silva foi a de que entendia que era uma pena, um desperdício deixar de ser uma hipótese de candidato a primeiro-ministro”, contou.
Cavaco ganhou o congresso, com o apoio da Nova Esperança, lançado (à revelia de Marcelo) por Santana Lopes. A Nova Esperança retirou-se dos órgãos do partido, por causa da proximidade de Cavaco a Fernando Nogueira, mas foi Marcelo quem o ajudou a constituir a lista e a recolher assinaturas para poder ser candidato. Na mesma conversa com o Observador, disse que vaticinou na altura o futuro do partido: “Temos homem para 20 anos. (…) Enganei-me, foram 10 mais 10!”.
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Era o tempo de Cavaco. Marcelo teve de esperar (e essa história acabaria por se repetir).
Um mergulho na Figueira e um afundanço no Tejo
Três anos depois, a novidade da Nova Esperança tinha passado e a descrença em Cavaco tinha aumentado. Os membros da ala direita do PSD estavam cada um para seu lado e foi aí que Santana Lopes decidiu agitar as águas e pregar contra as “forças do imobilismo”, leia-se Fernando Nogueira e o grupo do Norte liderado por Eurico de Melo. O recém-eleito eurodeputado deu uma entrevista ao novo semanário da direita portuguesa, O Independente, que tinha como maestro… Paulo Portas.
E foi aí que a distrital de Lisboa, liderado por Pinto Leite, decidiu avançar nas eleições autárquicas de 1989 com uma candidatura em Lisboa contra a vontade de Cavaco. Depois de muitas voltas, Marcelo foi o nome que saiu na rifa – e lá veio uma segunda tentativa para criar uma boa impressão.
Para outro ator político atual – e já o era na altura – o aparecimento de Marcelo na cena política dava esperança a um redireccionamento do PSD para a direita. Paulo Portas, que era amigo de Marcelo desde os tempos do “Semanário” e em parte produto seu, apostou todas as fichas numa candidatura vencedora do professor. A ala da direita do partido teve em Portas um aliado, que dava espaço aos críticos do cavaquismo, ainda Cavaco não tinha aquecido a cadeira do poder. Mas em Lisboa ninguém conhecia o professor.
“A minha taxa de notoriedade era dramática. O Governo estava em má forma e foram precisas várias ações de campanha espetaculares para chamar a atenção dos lisboetas”, contou ao Observador pela altura dos 25 anos da campanha autárquica [pode ler o especial sobre o mergulho aqui]. O professor sabia que não tinha dinheiro do partido para ganhar Lisboa e, depois da afronta a Cavaco, a ala direita tinha de mostrar o que valia nas urnas. Marcelo era conhecido por cerca de 20% dos lisboetas e para ganhar a Sampaio precisava de mais. Foi uma aventura num Tejo poluído. Apesar de atlético e de ter criado o mito que de dá mergulhos no mar no inverno, Marcelo viu-se grego: “Mergulhar de um bote é diferente e, para além disso, o bote deslocou-se muito para além do que era suposto eu nadar até à margem, assim fui arrastado pela corrente e tive de lutar na água para conseguir sair no sítio previsto”, contou.
Nessa mesma campanha, Marcelo, o candidato excêntrico, ainda andou a recolher lixo e a conduzir um táxi. E no fim Marcelo perdeu. O resultado acabou por ser honroso, perante o homem que era líder do PS: Jorge Sampaio 49,17%, Marcelo 42,18%. Mas a campanha deixou uma memória que não se apaga facilmente. “Se hoje voltasse a fazer uma campanha, faria o oposto, seria menos espetacular e mais curta. O meu estilo é conhecido e é suficientemente extrovertido. Mas isso já não é uma hipótese”, disse ao Observador. Promessa feita para as presidenciais: o professor, pelo menos na campanha, vai dar menos show e vestir a pele de Presidente.
Os anos depois da derrota eleitoral, foram anos em que Marcelo foi mais professor e jornalista que político ativo. Foram os anos em que o professor criou a máquina comentadora que dava notas aos políticos todos os domingos no Exame da TSF. Nessa altura era Cavaco quem sofria. Marcelo era para muitos no PSD o inimigo número um: dava notas, muitas vezes negativas, incomodava, obrigava a inversões de marcha. Se Cavaco era o rosto da maioria, durante meses a fio Marcelo foi o contrapoder. Imaginem, assim, o que foi no partido quando volvidos sete anos Marcelo decidiu candidatar-se a líder do partido (substituindo Nogueira que substituiu, meses antes, Cavaco Silva).
Marcelo desceu à terra e Guterres caminhou sobre a água
Esta sexta-feira, Marcelo apresentou-se como o homem do centro, o melhor a fazer pontes. E puxou dos galões de quem aprovou orçamentos, três, a um governo socialista de António Guterres. “Liderei o meu partido numa difícil travessia do deserto e viabilizei três orçamentos de Estado a pensar no interesse nacional, permitindo a um governo minoritário que durasse quatro anos“, disse.
Mas para perceber estas palavras é preciso ir lá atrás, aos anos em que Marcelo foi líder do PSD. Tudo nasceu, claro está, de mais um facto político. Quando Fernando Nogueira se demite da liderança do partido na sequência das eleições presidenciais perdidas por Cavaco Silva para Jorge Sampaio (1996), termina o ciclo do cavaquismo e os sociais-democratas procuram novo líder, mais sólido que Nogueira. E o nome de Marcelo é um dos falados. Mas este, em conversa com a jornalista Ana Sá Lopes, na altura no Público, nega tudo: “Nem que Cristo desça à terra”. Desceu. Foi uma das frases que lhe ficariam para a vida e que marcariam o professor como o jogador, o tático que só entra na corrida quando o jogo está ganho.
O empurrão final até foi dado, conta a biografia de Marcelo, pelo homem que agora não morre de amores pelo candidato a Presidente: Pedro Passos Coelho. O ex-líder da JSD consegue que Marcelo aceda a apresentar uma moção ao congresso de Santa Maria da Feira e daí a ser candidato a líder foi um pequeno passo que passou por uma disputa épica com Pedro Santana Lopes. Foi assim que chegou a terceira vida de Marcelo, o político.
Foi para líder e não fez a separação do comentário político, do homem que lança rumores. Isto deu cabo dele” (Jorge Coelho sobre Marcelo)
Marcelo foi líder do PSD ao mesmo tempo que o amigo de longa data, António Guterres, liderava o país. Partilhavam a juventude católica, a amizade com o padre Vítor Melícias, a inteligência e a ambição. Conta-se aliás que terão feito um pacto de como ambos seriam primeiros-ministros. Naquela altura era o tempo de Guterres.
Mal Marcelo chega ao partido, inicia-se a discussão sobre o Orçamento do ano seguinte. Marcelo decide que viabilizaria o documento antes de conhecer o seu conteúdo. Guterres queria eleições antecipadas que lhe permitissem reforçar a maioria que não tinha conseguido nas eleições, na prática, queria replicar para o PS o sucesso da segunda eleição de Cavaco dez anos antes. Mas Marcelo não lhe dá o gosto e decide que não seria por ele que o Governo cairia. Do lado de fora, mas ainda com um pé no PSD, o ex-primeiro-ministro Cavaco Silva refilava. Dizia que o que Marcelo estava a fazer era “uma posição tática”. E era. O professor dava provas de que para ele a tática é mais importante e sabia que o partido não estava preparado para eleições no ano seguinte.
Enquanto líder do PSD, Marcelo leva o PS a ceder na revisão constitucional, tem um bom resultado nas autárquicas, combateu o “totonegócio” e venceu os referendos da regionalização e à despenalização do aborto. Quem olhava para aqueles anos do lado contrário vaticinou um fim: “Foi para líder e não fez a separação do comentário político, do homem que lança rumores. Isto deu cabo dele”, conta Jorge Coelho no livro de Vítor Matos.
Mas não seria a tática (que lhe deu vitórias), nem as brigas com o amigo Guterres que o fariam cair. Haveria de ser um outro facto político a levá-lo a demitir-se pouco mais de dois anos de ter assumido a liderança. E esse facto tinha começado muitos anos antes e com um outro ator polítco: Paulo Portas.
A vichyssoise foi um prato que se serviu frio ao “filho de Deus e do Diabo”
A história da desavença entre os dois remete para a altura em que Paulo Portas era diretor d’O Independente e Marcelo Rebelo de Sousa o respeitado constitucionalista que era chamado a Belém para aconselhar o Presidente da República, Mário Soares. Em 1991, o governo de Cavaco Silva seria o primeiro a cumprir a legislatura e o Presidente queria saber que limitações tinha este executivo na fase final do seu mandato. O Executivo de Cavaco tinha em cima da mesa um pacote de privatizações audazes e Mário Soares queria saber até que ponto tinha legitimidade para levar a cabo. Era uma originalidade na vida política portuguesa, um governo chegar ao fim.
A partir daqui há várias versões para a mesma história. Mas a que perdurou durante anos foi a de que Paulo Portas contou em direto no programa “Parabéns”, de Herman José. Resumindo: Portas diz que combinou com Marcelo à saída do Palácio de Belém para que este lhe contasse toda a história e, segundo a versão do então jornalista, assim foi. Com uma nuance importante: “Era tudo mentira!”, disse. Incluindo o que tinham jantado: vichyssoize. O jornalista não se ficou por desmascarar a suposta mentira, mas por destruir o carácter de Marcelo:
“Costumo dizer que ele é filho de Deus e do Diabo. Deus deu-lhe a inteligência e o Diabo deu-lhe a maldade”.
A versão de Marcelo é diferente. Ao autor da biografia contou que Portas o abordou à saída do Palácio de Belém e que não lhe queria contar o que se tinha passado: “Não contei o conteúdo político do jantar. Ele pediu: ‘Ao menos a ementa’. Então confesso que bastante enfastiado, terei falado em vichyssoize…”.
Estiveram anos sem falarem um com o outro. Voltaram a aproximar-se por intermédio de Leonor Beleza quando Marcelo já era líder do PSD e Portas tinha saído d’O Independente e dirigia um centro de sondagens, em preparação para a liderança do CDS. É o que acontece em 1998 e desenha-se entre PSD e CDS a Aliança Democrática para as eleições europeias de 1999 e depois para as legislativas do mesmo ano. Portas e Marcelo, figuras tiradas quase a papel químico, foram uma mistura explosiva.
“Imediatamente levava até às ultimas consequências essa responsabilidade. Acho isso de mim, de tida a gente do meu partido e da AD”. Marcelo Rebelo de Sousa sobre o “Caso Moderna”.
Em 1998 cai em cima do CDS o “Caso Moderna”. No CDS acredita-se que o caso nasce de um setor do PSD anti-AD e a desconfiança entre Marcelo e Portas adensa-se. Marcelo passa tempo de mais sem tomar uma iniciativa de apoio ao aliado, as sondagens davam a coligação a cair e cresce no líder do PSD a ideia clara que iria rebentar uma bomba em cima de Portas à beira das eleições. Era altura de romper com a AD. E foi isso que fez. Questionado sobre um relatório que Jorge Coelho, então ministro da Administração Interna, pediu aos serviços secretos, Marcelo responde que se fosse responsabilizado por algo semelhante “imediatamente levava até às ultimas consequências essa responsabilidade”. “Acho isso de mim, de toda a gente do meu partido e da AD”, acrescentou. Portas tinha caído ao chão e com estrondo, mas com instinto de sobrevivência apurado decide voltar a matar o criador na televisão.
Com Marcelo fora do país, Paulo Portas reúne a direção do CDS e decide dar uma entrevista a Margarida Marante, na SIC. O líder do PP estava convencido de que era Marcelo o culpado por muitas das notícias que saíam contra si. E, no jogo do mata-mata, mais vale matar do que morrer. Foi isso que o jovem político pensou e acabou por dar o tiro político certeiro em Marcelo. No programa, Portas conta tudo o que Marcelo lhe disse em conversa reservada e dá asas às suas próprias suspeitas. Conta que a direção do PSD defende que ele não é confiável, que Leonor Beleza, a primeira vice-presidente do partido e muito próxima de Marcelo, acha até que o líder do PSD não deve fazer campanha ao seu lado e, no fim, pede clarificação ao PSD, até porque o CDS tinha já posto em cima da mesa a rutura da coligação.
Marcelo perdeu ali o espaço político no partido para continuar a defender a AD quando o líder dá a conhecer ao público uma conversa privada. Decide demitir-se.
“Assumo plenamente a minha responsabilidade pelo fracasso do projeto que lancei e conduzi até hoje. (…) Para mim há limites que não podem ser ultrapassados, depois do sucedido terminou da minha parte definitivamente, a confiança no senhor doutor Paulo Portas, líder do CDS-PP”. Marcelo demitia-se.
“Perdera a face. Perdera o partido. Perdera a oportunidade da sua vida. Tinha-se aliado a um jovem que ajudara a crescer no jornalismo e na política, mas o Paulinho tinha crescido e desenvolvera mais jogo de cintura. Afinal, Portas tinha sido mais rápido a intrigar do que a própria sombra de Marcelo”, descreve Vítor Matos.
A providência divina do homem que voltou a descer à terra
Sempre disse que esperava por um sinal da “Providência” para avançar. Católico praticante, tem no Concílio do Vaticano II a sua inspiração e em Papa Francisco uma referência. Não se sabe ainda qual foi o sinal divino que Marcelo viu de domingo até sexta-feira, ou se o teve antes e foi a racionalidade política que o levou a anunciar quando e como anunciou. Mas nesta altura da vida política, Marcelo fez questão de deixar uma mensagem: “Ninguém se salva sozinho”.
A mensagem até pode ser lida à luz da atualidade política. Afinal, Marcelo foi o homem que lutou contra o Bloco Central e também aquele que recusa unanimidades. Uma “questão criticável é a ideia da governabilidade. A ideia subjacente de que um consensualismo é a grande forma de resolver todos os problemas. Que era uma ideia, aliás, dele, do cidadão Mário Soares. Por isso gostou tanto do Bloco Central. Mas não é líquido que o consensualismo seja necessariamente a melhor forma para resolver todos os problemas. É certamente para os problemas de regime. Mas não é útil haver alternativas opostas, diferentes, que permitam, no seu cotejo, precisamente a alternância de que também fala?”, questionava em 1994, num daqueles domingos quentes ao microfone da TSF, sobre um discurso de Mário Soares no fim do cavaquismo.
Marcelo, o comentador, o professor de direito na Universidade Clássica, o político que teve tanta influência nos jornais, televisões e rádios, quer agora ser o Presidente da República. A caminho da sua quarta vida na política, puxa do currículo, das três outras vidas passadas, para mostrar que é ele o Presidente de todos, o homem para o lugar. Marcelo sabe que tem contra ele o facto de a televisão o ter transformado numa superstar – para muitos isso não é compatível com o papel de Chefe de Estado. Tem também contra ele o facto de nenhuma das experiências anteriores ter sido propriamente um sucesso.
Passados tantos anos, quem é afinal Marcelo Rebelo de Sousa?
Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa nasceu e cresceu em plena ditadura salazarista. Filho de Baltazar Rebelo de Sousa e de Maria das Neves, desde pequeno teve duas influências: do regime do Estado Novo por parte do pai e a parte mais social da parte da mãe. Maria das Neves era assistente social nos bairros pobres e era “muito à esquerda”, contou o professor na entrevista que deu à revista Cristina. O pai, governante nos tempos da ditadura e amigo próximo de Marcello Caetano, era “muito à direita”. Marcelo até se chama assim por causa do amigo do casal que quase foi seu padrinho de batismo.
Com família em Celorico de Basto – terra da avó Joaquina onde decidiu lançar a candidatura a Belém – Marcelo é do Sporting de Braga desde pequenino. Mas tem mais particularidades. Define-se como “extrovertido em excesso” e como “hipocondríaco militante”. Traz sempre consigo uma pequena caixa com comprimidos e não perde uma novidade na farmácia: “Entro numa farmácia e pergunto: ‘novidades’?”, confessa na mesma revista.
É também o político que sabe que meio mundo conspira contra si e esse mesmo meio mundo o tenta pressionar para não ser aniquilado num qualquer domingo à noite na TVI. O comentário do professor Marcelo acaba este domingo, mas continuará na Presidência?
“Ponho noutro prato a alegria que vou dar às pessoas que eu critiquei durante 40 anos. Já estou a vê-los todos em fila nas três televisões e nas rádios: ‘é uma besta’. ‘Era só falar, falar e não acerta uma'”, ironizou no programa Gato Fedorento sobre uma possível candidatura a Belém há uma semana.
Marcelo sabe o que muitos acham de si. Sabe que “uma pessoa muito boazinha não tem futuro na política”, mas nega ser “mauzinho”. “Eu mauzinho? Não! Talvez por isso é que não estou agora na política! Eu tenho fama de ser mauzinho! Toda a gente acha que sou maquiavélico… que quando vejo uma coisa, já estou a pensar a pensar não nessa, mas em quatro diferentes”, respondia há meses na revista Cristina.
Agora, Marcelo voltou à arena política. O homem que fez passar alguns mitos sobre si – diz que dorme três a quatrro horas por noite, que escreve com as duas mãos e, até, que é capaz de ditar dois textos ao mesmo tempo – é ele próprio um crente racional. Católico, viu o casamento com Cristina da Motta Veiga, mãe dos seus dois filhos e avó dos cinco netos, chegar ao fim. “Eu sendo católico, quando casei, acreditei mesmo que era para toda a vida! Não deu, E em larga medida, acho que por culpa minha”, confessou. E é também por ser católico que acredita “na vida eterna”. “Acho que esta vida é uma passagem. Gostava de fazer a passagem ao lado da família. Vai ser difícil… e vai ser difícil porque eu tenho uma teoria que é a seguinte: as pessoas morrem como vivem! E quem vive calmamente, morre calmamente. Quem vive freneticamente, morre freneticamente”, confessou na mesma revista.
“Olhando para coisas que o Presidente Cavaco Silva disse, eu muitas delas não teria dito”
Nos anos 80 começou a namorar com Rita Amaral Cabral, mas nunca chegam a casar ou a sequer viver juntos. Confessou numa entrevista de vida no Expresso que os dois partilhavam a mesma visão católica da vida: “Não me voltarei a casar nunca mais. A Igreja Católica não aceita o divórcio e eu concordo”, disse. Depois acrescentou: “Tive a sorte de encontrá-la, porque ambos partilhamos a mesma convicção católica de que o matrimónio dura até à morte. Tive a sorte de que a mulher a quem tive de pedir sacrifícios concordasse inteiramente com eles”. A ser Presidente será o primeiro sem primeira dama, pelo menos para já. Mais uma novidade na vida política portuguesa.
A ser eleito trará outras novidades quando se faz a comparação com os últimos anos de Presidência. Falará mais do que Cavaco Silva, mas garante que não dirá coisas que o Presidente disse. “Olhando para coisas que o Presidente Cavaco Silva disse, eu muitas delas não teria dito”, afirmou. Falta saber o que dirá. Mas, antes, ainda terá de ser eleito.