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A criação da Comissão Independente para investigar os abusos sexuais na Igreja foi consensual entre os bispos portugueses, reunidos em assembleia, em novembro de 2021. “Mas alguns não tomaram consciência do que isso significava”, explicaria mais tarde um dos bispos entrevistados pela equipa coordenada por Pedro Strecht — identificado no relatório final como B4 –, que acrescentou: “Lidar com a verdade queima!” Talvez por isso tenham surgido nos meses seguintes várias críticas, agora reveladas no relatório final, conhecido esta segunda-feira.
Ao longo das mais de 486 páginas do documento pode ler-se que o entusiasmo dos bispos em relação ao trabalho da comissão e à sua exposição pública não foi “unânime”. Houve três bispos que criticaram a exposição pública da Comissão, as datas escolhidas para conferências de imprensa onde foram feitos pontos de situação e ainda as “tentativas para denegrir” a Igreja.
No total, foram entrevistados 19 bispos e administradores diocesanos — de duas dioceses não chegou qualquer resposta (nem do bispo de Beja, nem do administrador diocesano de Setúbal) — e 13 superiores de institutos religiosos. No relatório, os autores optaram, porém, por não identificar quem proferiu os elogios e as críticas à comissão — “B” significa bispo, “SG” superiores e superioras gerais –, ainda que os mesmos sejam transcritos. Ao que o Observador apurou, entre os bispos mais críticos da comissão estarão os do Porto, D. Manuel Linda, e o de Lamego, D. António Couto.
“É como se fossem pregoeiros na praça pública”
Um dos 19 bispos/administradores diocesanos entrevistados considerou ter havido “‘algumas escorregadelas’ que não esperava e de que não gostou”.
“Feriu-nos muito a vossa conferência de imprensa, realizada em plena Semana Santa, e em que confirmaram haver ocultação de casos… ora as suspeitas de ocultação recaem sobre todos os bispos que estão no ativo, isso é inaceitável… a data não foi feliz, naquele contexto não gostámos”, afirmou o bispo identificado no relatório como B8, insistindo naquilo que para si deveria estar acima de tudo — o silêncio da investigação: “O coordenador da Comissão garantira que a Comissão iria ‘trabalhar no silêncio… ora isso não aconteceu… é como se fossem pregoeiros na praça pública’”.
Os “percalços” que na sua visão terão acontecido, disse, tornaram “ainda mais difícil” a tarefa de “convencer os sacerdotes à sua volta, que reagiram mais negativa do que positivamente à criação da Comissão. ‘Então os bispos querem destruir a Igreja?!’”.
As “tentativas de denegrir uma pessoa eclesiástica”
Outro bispo (B2) que manifestou o seu desagrado com os trabalhos da comissão, considerou “lamentável” a “sucessão de notícias” ao longo destes meses.
“Há sempre tentativas de denegrir uma pessoa eclesiástica e nada melhor do que uma acusação de abuso. (…) esta perspetiva é que os bispos são os acusados”, salientou, reforçando: “Todas as semanas aparecem notícias sobre a Comissão”.
E estas não foram as únicas vozes críticas. Um outro, que o relatório identifica como B7, atacou mesmo a existência de várias comissões no seio da Igreja para investigar este fenómeno, uma multiplicação que considerava “prejudicial para o bom funcionamento do sistema”.
“Assim, não ajuda”. O aviso de um bispo à equipa de Strecht
“Mesmo em Portugal, são mais as comissões do que o trabalho que há para fazer… comissões diocesanas, comissão de coordenação interdiocesana, comissão independente… é uma nebulosa, tudo muito confuso», afirmou o mesmo bispo quando entrevistado pela Comissão, deixando um aviso à investigação: “O silêncio devia ser a base do vosso trabalho. Assim, não ajuda”.
Mas nem só de entre os bispos surgiram críticas. O relatório final dá ainda conta de que entre superiores gerais houve um apontamento de descontentamento e até de questionamento. Um dos entrevistados começou por considerar “preciosa a missão” da Comissão, exprimindo, no entanto, “reserva quanto ao arco temporal do estudo”.
“Para quê 50 anos de estudo?! Se estão mortos não interessa… as coisas acontecem, mas isto não é só a Igreja que tem de atuar! Essas pessoas têm de ser tratadas. A par da punição que a Igreja possa ter. O que se vai fazer a essas pessoas?”, rematou.
A “desconfiança no sistema” era grande e as comissões diocesanas “um deserto”
O certo é que foram mais as manifestações de simpatia e admiração por parte dos bispos portugueses relatadas no relatório do que as negativas. Um dos bispos terá mesmo considerado que as comissões diocesanas, criadas em 2019, com o mesmo propósito não estavam a funcionar, porque não chegavam casos: “Um deserto (…) não podia ser assim”.
Foi, por isso, “tomada a decisão de criação de uma Comissão de âmbito nacional, de fora da Igreja, com liberdade total, que assegurasse ‘um nível de segurança às vítimas’, pois a ‘desconfiança no sistema era grande’.
Um dos bispos ouvidos admitiu preocupação com pessoas que não têm condições para desabafar em segurança: “No Portugal profundo há pessoas que não querem falar de coisas que aconteceram há muito tempo. Arrumaram numa prateleira”. Outro completou a ideia. “Quanto mais pequenas forem as comunidades, mais poder tem o padre. Não há médico, não há professor. A figura única de autoridade é o padre, e o presidente da Junta, se lá vive. Este ambiente não favorece a visibilidade”.
E é por tudo isso que muitos dos entrevistados se mostraram entusiasmados com o trabalho da comissão coordenada por Pedro Strecht e fizeram questão de o dizer nas entrevistas.
“Vejo como uma possibilidade de a Igreja reconhecer as suas limitações. Uma boa decisão da Conferência Episcopal Portuguesa. Criar ambientes sadios para os pais nos confiarem os seus filhos. Felizmente se criou a Comissão Independente. A primeira a beneficiar é a Igreja!”, disse B19. Já um outro bispo, identificado como B16, salientou que a criação desta estrutura só “peca por tardia”.
As frases que mostram o entusiasmo
O relatório conclui mesmo que, para muitos dos entrevistados, o estudo feito ao longo de meses pode ajudar a encontrar a verdade e ajudar a Igreja a ganhar credibilidade. Foi o que defendeu B11, que comparou a investigação a uma tentativa de “construir a casa sobre a rocha”. E não são os únicos exemplos:
“Apesar de a verdade não ser fácil de atingir, pois é sempre um poliedro, feita de pequenos fragmentos, mas só a verdade liberta.” (B19);
“Temos de nos purificar. Construir na verdade. Ser credíveis.” (B11);
“A decisão da CEP parece-me muito bem. Ainda bem que aconteceu! Agradecemos. É uma ajuda grande para olhar para esta situação sem medo e com vergonha (…) a descredibilidade neste momento é total… ora olhar de frente liberta e faz crescer.” (SG5, M);
“Tínhamos de fazer alguma coisa para que a Igreja tenha credibilidade, ter o rosto que deve ter, fazer o bem. Tem de se afirmar pela segurança, pela fidelidade a Deus, aos homens, à sociedade… não como comunidade de malfeitores. Não há volta a dar.” (B12);
“Foi uma decisão muito acertada a da CEP. É preciso sair de si e pensar no outro. A Igreja pode querer defender o seu bom nome. Mas para além disso tem de ir para o lado dos ‘sem voz’.” (SG6, F);
“Vi a criação da Comissão Independente como uma graça para esclarecer e ver a situação dos abusos resolvida. De modo a melhorar o futuro. A pacificar. A viver em paz.” (SG8, F);
“Temos de colaborar com quem faz o bem. Rezo muito por vós.” (SG4, F);
“O trabalho da Comissão Independente? Um grande obrigado.” (SG11, F).
O desconhecimento generalizado que a Comissão “estranha”
A Comissão dá conta no relatório que, embora tenha registado “graus de desconhecimento diferente no interior do grupo de bispos e na comparação entre bispos e superiores e superioras gerais”, nas entrevistas foi negado pela maioria qualquer vivência direta “quer durante a sua formação quer já dentro das respetivas atividades pastorais” com este fenómeno.
“O que não deixa de ser estranho, tendo em conta a longevidade da sua trajetória religiosa, a extensão dos domínios da infância em que diretamente intervêm, bem como a diversidade desses modos de contacto direto com crianças, jovens e famílias”, refere o relatório, avançando explicações para este cenário.
O reconhecimento do problema na Igreja Católica portuguesa é também muito recente, parecendo “emergir de uma posição descrita como de ‘fora para dentro’, diante de casos e escândalos sucedidos de grande dimensão pública, e ainda hierarquicamente vivida de ‘cima para baixo’, atribuindo-se ao/s Papa/s o movimento inicial e fundamental deste duro processo de confronto com esta realidade”.
Um movimento que começa a fazer o seu caminho, ainda que lentamente. “Alguns — muito poucos — já introduzem na sua narrativa o evoluir recente da própria representação da infância, da sua vulnerabilidade e dos seus direitos, bem como de formas anteriores de lidar com os acontecimentos, em que uma atitude clericalista denegava ou projetava defensivamente a ocorrência da situação, resultando numa total paralisia real de reconhecer e responder adequadamente ao problema”, sublinha a comissão no relatório final.