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“Aproveitemos o bom tempo” e “tragam a vossa própria bebida”. Estas são palavras que constam no email enviado a uma lista de 100 convidados, que incluíam membros do governo e funcionários do Nº10 de Downing Street, para um encontro no jardim da residência do primeiro-ministro no dia 20 de maio de 2020.
Foram também estas palavras que deixaram Boris Johnson em apuros como nunca, ao serem tornadas públicas pelo antigo conselheiro-tornado-inimigo Dominic Cummings, há cinco dias. O evento teria tido lugar numa altura em que os britânicos enfrentavam das restrições mais apertadas de sempre para reagir à Covid-19: só podiam encontrar-se com uma pessoa fora do seu agregado familiar, ao ar livre, e mantendo dois metros de distância. E eis que, na mesma altura, 40 membros do governo e funcionários pareciam ter-se reunido num encontro com bebidas alcoólicas à mistura.
Com estas alegações a penderem sobre si, Boris Johnson foi à Câmara dos Comuns esta quarta-feira. Iria negar? Iria afirmar que não esteve presente e não teve conhecimento do encontro? Ou ia confirmar tudo e pedir desculpa? As dúvidas pairavam e a tensão adensava-se sobre um primeiro-ministro enfraquecido, que tem enfrentado uma série de escândalos sucessivos.
No passado, Boris Johnson destacou-se por ser um “sempre-em-pé”: falhava em entregar os TPC, mas era elogiado pelos professores; tinha tido uma prestação fraca como deputado, mas tornara-se um dos mayors de Londres mais popular de sempre; enfrentou sucessivas dificuldades para assegurar o Brexit, mas manteve a lealdade do seu eleitorado. Agora, porém, a situação assume uma gravidade nunca vista: as sondagens publicadas na manhã desta quarta-feira, antes de o primeiro-ministro entrar em cena no Parlamento, davam conta de que 56% a 66% dos eleitores querem a sua demissão.
De criança tímida a político exuberante: Boris Johnson não é uma piada
Em adolescente, Boris Johnson interpretou Ricardo III e não decorou as falas, tendo passado toda a peça a correr de um lado para o outro do palco para ler o texto. Iria esta peça ser igualmente desastrosa? Ou, como na escola, BoJo ia conseguir arrancar gargalhadas e passar pelos pingos da chuva?
Ato I: O silêncio dos tories nos Comuns — a não ser para falar de máquinas de lavar
Faltam cinco minutos para o meio-dia quando Boris Johnson entra na Câmara dos Comuns para fazer um anúncio, antes do início do habitual debate semanal. O ambiente é sombrio. Os mais próximos reúnem-se à sua volta, como um último gesto de apoio no caminho até ao cadafalso — o ministro do Ambiente, George Eustice, dá-lhe mesmo umas palmadinhas no ombro.
Silêncio total na Câmara. Boris dirige-se ao púlpito e começa a falar: “Quero pedir desculpas. Sei que milhões de pessoas fizeram sacrifícios extraordinários nos últimos 18 meses”, diz — e o silêncio é de imediato quebrado pela voz de um deputado que grita “Enquanto tu estavas a beber!”. O primeiro-ministro continua: “Sei a raiva que sentem contra mim e contra o governo que lidero quando pensam que as regras não estavam a ser seguidas corretamente em Downing Street.”
“Demita-se! Se bem me lembro, o Matt Hancock fez isso”, interrompe outra voz, referindo-se ao antigo ministro da Saúde que se demitiu depois de ser sabido que não tinha respeitado o distanciamento social, ao ser visto a beijar uma colega.
O primeiro-ministro continua, num tom muito diferente do habitual. “Assumo a responsabilidade”, repete várias vezes. Até quando ensaia uma defesa, ao dizer que achava que aquele evento era uma reunião de trabalho e não uma festa, Boris Johnson evita os seus sorrisos, trocadilhos e bravatas habituais nos Comuns. “Arrependo-me muito de não ter feito as coisas de forma diferente naquela noite”, declara. “Arrepende-se porque foi apanhado!”, grita outra voz na Câmara.
Terminado o seu discurso de abertura, Boris dá um passo atrás e senta-se no seu lugar. O adversário — o líder da oposição, Keir Starmer — toma o seu lugar. “Aí está. Ao fim de meses de enganos e deceção, o espetáculo patético de um homem que já não tem estrada para andar. A sua defesa, a de que não percebeu que estava numa festa…”, afirma, fazendo uma pausa dramática que permite aos deputados trabalhistas soltarem gargalhadas, “…é tão ridícula que na verdade é ofensiva para o povo britânico.”
Segue-se o pingue-pongue habitual entre o primeiro-ministro e o líder dos trabalhistas, mas, desta vez, Boris Johnson parece um homem derrotado — enquanto Starmer parece galvanizado ao atirar-lhe à cara a presença em “festas bem regadas”. “O primeiro-ministro é um homem sem vergonha”, diz mesmo o líder do Labour, que vai mais longe do que nunca e exige, pela primeira vez, a sua demissão em plena Câmara dos Comuns. Boris Johnson refugia-se no inquérito que está a decorrer e deixa claro que só tomará uma decisão depois de serem conhecidas as conclusões do mesmo. Mas o mal está feito; o primeiro-ministro não contém o ataque fulminante da oposição, como se vê pela postura silenciosa dos seus deputados que, ao contrário do que é habitual, não o encorajam em voz alta nem atiçam os deputados da bancada oposta.
Alguns arriscam ajudar o líder, usando o debate que se segue para fazer perguntas sobre temas inócuos. Um fala sobre o lema do distrito de Rutland; outro aborda a herança industrial em Eastleigh. Mas quando o tory Alberto Costa se levantou para fazer uma pergunta sobre máquinas de lavar, a tensão até aí contida foi quebrada por uma gargalhada sonora de grande parte da Câmara.
Dentro do Parlamento, a sessão segue sem mais nenhum evento digno de nota. Nenhum deputado conservador se levanta para falar do escândalo já conhecido como “Partygate”. O silêncio contrasta com o barulho que se regista do lado de fora: em Westminster, um grupo de manifestantes dança ao som de Just Dance, de Lady Gaga, empunhando cartazes que dizem “Máximo: 40 pessoas”, “São seis da tarde algures” e “BYOB”, o acrónimo para Bring Your Own Booze (Tragam a vossa própria bebida).
Ato II: Os leais do Conselho de Ministros (com exceção do silencioso ministro das Finanças)
Após o calvário doloroso para o primeiro-ministro no Parlamento, é tempo de os seus escudeiros entrarem em cena noutra câmara pública, a do Twitter. “O primeiro-ministro fez bem em pedir desculpa”. O tiro de partida é dado pela ministra da Cultura, Nadine Dorries, que pede que seja dada a oportunidade de o inquérito poder agora “estabelecer os factos completos relativamente ao que aconteceu”. O vice-primeiro-ministro, Michael Gove, faz retweet e limita-se a acrescentar que “A Nadine tem razão”.
PM was right to personally apologise earlier. People are hurt and angry at what happened and he has taken full responsibility for that. The inquiry should now be allowed to its work and establish the full facts of what happened.
— Rt Hon Nadine Dorries (@NadineDorries) January 12, 2022
O ministro da Saúde, Sajid Javid, mantém o tom — no Twitter, é claro. “Compreendo perfeitamente porque as pessoas se sentem desiludidas. O primeiro-ministro fez a coisa certa ao pedir desculpa. Agora temos de deixar que a investigação acabe o seu trabalho.”
E o WhatsApp também é usado para manter as tropas unidas: num grupo de conservadores, cujo conteúdo das conversas costuma verter para os jornais, é a vez do ministro da Economia, Kwasi Kwarteng: “Sei que está muita coisa a acontecer. O PM esteve muito bem em pedir desculpas e temos de deixar a investigação acabar o seu trabalho. Mas temos um trabalho muito importante a fazer nos próximos dois anos, antes das próximas eleições: manter a economia aberta, milhões de libras para combater a desigualdade regional, nova estratégia nuclear, oportunidades do Brexit para aproveitar e cortar o fardo sobre as empresas. Prioridades máximas!!”
Fora das redes sociais, porém, apenas o ministro dos Assuntos Parlamentares e conhecido Brexiteer, Jacob Rees-Mogg, dá o peito às balas. “O primeiro-ministro tem feito as coisas bem uma e outra vez. Mas, como todos nós, ele aceita que durante um período de dois anos e meio pode ter havido coisas que, se fosse agora, teria feito de forma diferente”, diz à rádio do The Times. Sobre as declarações murmuradas por alguns dentro da corte (ou seja, no próprio Partido Conservador), que dizem que pode estar na altura de Boris Johnson se demitir, Rees-Mogg desfere um golpe: “São pessoas que estão sempre insatisfeitas”, atira.
Um a um, os ministros vão declarando o seu apoio ao chefe do Executivo. Mas, ao longo do dia, duas ausências vão sendo notadas: a de Liz Truss, ministra dos Negócios Estrangeiros, e do titular da pasta das Finanças, Rishi Sunak. Tal não será por acaso — afinal, estes são dois dos pesos-pesados políticos deste governo que, na sombra, têm estudado a possibilidade de se atirarem ao cargo de primeiro-ministro se Boris falhar. A casa de apostas Coral coloca-os a ambos à frente de Keir Starmer em termos de probabilidades de virem a ser o próximo primeiro-ministro, de acordo com o The Times.
Truss, pelo menos, esteve na Câmara dos Comuns ao lado do primeiro-ministro. Já Sunak esteve completamente desaparecido em combate: a mais de 300 quilómetros de distância de Westminster, o ministro das Finanças passeou-se pela costa de Devon norte para participar num evento a propósito do investimento numa fábrica farmacêutica onde serão produzidas vacinas.
Ao perceber que o seu silêncio está a ser notado, “fontes próximas” de Sunak apressam-se a esclarecer ao Telegraph que a agenda do ministro já estava fechada há 10 dias e que ele não respondeu a perguntas dos jornalistas no local apenas por “constrangimentos de tempo”. Mas a pressão é demasiada e, 11 minutos depois das 20h, Sunak cede: “Estive numa visita todo o dia para prosseguir o nosso trabalho no #PlanForJobs e a encontrar-me com deputados para discutir a questão da energia. O primeiro-ministro esteve bem ao pedir desculpas e apoio o seu pedido de paciência enquanto Sue Gray continua o inquérito”, afirma. Onde? No Twitter, é claro.
I’ve been on a visit all day today continuing work on our #PlanForJobs as well as meeting MPs to discuss the energy situation.
The PM was right to apologise and I support his request for patience while Sue Gray carries out her enquiry.
— Rishi Sunak (@RishiSunak) January 12, 2022
Ato III: A ofensiva escocesa que contrasta com o silêncio da maioria
Enquanto os ministros se atropelam a defender Boris Johnson no Twitter e no WhatsApp, alguns deputados do Partido Conservador começam a urdir uma teia que esperam que sirva para apanhar o primeiro-ministro. “O partido está numa posição muito complicada”, diz um anonimamente à editora de política da Sky News. “Estamos lixados”, comenta outro com um jornalista do mesmo canal — também sem se identificar.
Em público, quem dá o grito do Ipiranga é o veterano Roger Gale, que apelida Boris de “dead man walking”, a expressão usada nas prisões norte-americanas quando um condenado à morte vai a caminho do seu destino final.
E eis que é secundado por uma ofensiva vinda da Escócia. “Lamento, mas tenho de dizer que a posição dele já não é sustentável”, afirma Douglas Ross, líder dos conservadores escoceses à STV. “Não quero estar nesta posição, mas estou: acho que ele já não pode continuar como líder dos conservadores.” Às declarações de Ross, segue-se a enxurrada vinda do Norte: às 5h da tarde, a antiga líder do partido na Escócia, Ruth Davidson, afirma concordar com o sucessor. Ao final da tarde, já 60% dos deputados conservadores do Parlamento escocês tinham apoiado o seu líder em público.
Douglas Ross deixa assim claro que irá escrever a primeira carta para o Comité 1922, o órgão que tem o poder de convocar a votação sobre uma moção de censura ao líder dos tories caso 15% dos deputados do partido escrevam uma carta a pedi-lo ao presidente, Graham Brady. E não é o único: pelo menos outro deputado tory enviou a uma jornalista do Daily Mirror uma fotografia do seu envelope endereçado a Brady esta tarde. Também William Wragg, vice-presidente do Comité 1922, comenta entretanto que considera a posição do primeiro-ministro “insustentável”. Mas, ao que tudo indica, ainda não escreveu uma carta — acha “preferível” que seja Boris Johnson a demitir-se sozinho.
Spoke to a second Tory MP from the 2019 intake about how they feel about @BorisJohnson's leadership
Their reply: pic.twitter.com/0jWBvSWcHD
— Rachel Wearmouth (@REWearmouth) January 12, 2022
Ao cair da noite, a situação está longe de ser clarificada. “Boris Johnson ainda tem cartas para jogar”, diz um deputado, em off, à Sky News. E ele sabe do que fala, já que terá sido um dos poucos que apoiou a antiga primeira-ministra Theresa May, que enfrentou a sua própria moção de censura interna e saiu vitoriosa — acabando, contudo, por se demitir mais tarde por pressão interna.
Nos jornais, os colunistas dividem-se, até no insuspeito Telegraph, cuja secção de opinião costuma ser favorável a Boris: “Como pode o país voltar a seguir, com tanta responsabilidade comum e auto-sacrifício, regulações que emanam de pessoas que as violaram de forma tão descarada?”, interroga-se Janet Daley. “Algo me diz que o pior já passou”, rebate Eliot Wilson, que aponta que o inquérito de Sue Gray dirá o óbvio, que o próprio primeiro-ministro já reconheceu: que esteve no evento.
O pano ainda não caiu sobre Boris e ninguém sabe como termina a peça. Shakespeare tinha razão e no final terá havido “muito barulho por nada”? Ou deputados de peso como os influentes Brexiteers do European Research Group e os novatos eleitos pela Red Wall (a zona tradicionalmente trabalhista que agora elegeu tories) estarão a escrever, na calada da noite, dezenas de cartas que podem ditar o fim de Boris Johnson como primeiro-ministro?
O terceiro ato, porém, ainda teve espaço para mais uma cena de relevo. Por sorte ou azar, o Comité 1922 tem as suas reuniões habituais à quarta-feira e esta não foi exceção. Depois de uma manhã agitada nos Comuns, o ambiente no encontro era de cortar à faca. O vice-primeiro-ministro Michael Gove aproveitou o momento para uma defesa inflamada de Boris Johnson perante os deputados do partido, lembrando que “ele acerta nas coisas importantes”, como o Brexit. Mas a Spectator — a revista que em tempos o próprio Boris Johnson liderou— registou como o silêncio ainda é de ouro entre os deputados conservadores: “Quando Gove acabou de falar sobre Johnson, a sala estava em silêncio — sem aplausos.”