“No que é que o Vaticano se está a transformar? Para quem trabalhamos?” A pergunta resume o descontentamento que, nos últimos meses, se tem vindo a intensificar “impiedosamente” entre os trabalhadores do país mais pequeno do mundo.
Na verdade, até pode ser o país mais pequeno do mundo — com uma população de 618 nacionais, 764 habitantes e zero animais de estimação —, mas é, em contrapartida, um dos lugares mais visitados do planeta: só os Museus do Vaticano, por exemplo, rivalizam com o Louvre e com o Museu Britânico no top dos mais visitados a nível mundial.
Com apenas 44 hectares de área total, o Vaticano tem várias peculiaridades, a começar pelo facto de ter o Papa como chefe de Estado e de o seu minúsculo território soberano servir essencialmente para acolher de forma independente os organismos centrais da Santa Sé, a estrutura global que governa a Igreja Católica. Tem também um dos exércitos mais curiosos do mundo, a Guarda Suíça, composta por jovens católicos de nacionalidade suíça dispostos a dar a vida pelo Papa.
Mas, como qualquer outro Estado, também tem trabalhadores. Centenas de trabalhadores. Só nos Museus do Vaticano trabalham cerca de 700 pessoas. Além dos museus, que são a face do pequeno Estado mais visível aos turistas, há centenas de funcionários em todo o tipo de organismos do Vaticano: dos departamentos da estrutura central do Governadorato ao posto de correios, da polícia aos funcionários da limpeza, dos jardineiros aos administrativos.
E estão descontentes com o patrão.
No Vaticano, não há sindicatos. O mais próximo de um sindicato é a Associação dos Trabalhadores Leigos do Vaticano (ADLV, na sigla italiana), uma associação que reúne todos os dependentes do Vaticano que não pertencem ao clero — e que desde 1985 se dedica à defesa dos direitos dos trabalhadores do Vaticano.
Recentemente, porém, a ADLV tem intensificado a denúncia de problemas laborais no microestado. A associação lembra que o trabalho no Vaticano sempre se pautou pelo seguimento dos ideais cristãos — mas que, nos últimos anos, o Papa Francisco está gradualmente a transformar o Vaticano numa multinacional em que os trabalhadores não são propriamente bem tratados.
Os problemas terão começado em 2013, ano em que Francisco foi eleito Papa e deu início a um profundo trabalho de reforma económica do Vaticano. Ao leme de uma instituição marcada por escândalos financeiros e de corrupção que se arrastaram durante anos, manchando vários pontificados, Francisco decidiu fazer uma limpeza: chamou o cardeal australiano George Pell (que mais tarde se veria envolvido num caso de abusos do qual foi absolvido após passar vários meses na prisão) para liderar a nova Secretaria para a Economia e deu-lhe indicações para reformar as práticas económicas da Santa Sé e do Vaticano de alto a baixo, respeitando os padrões internacionais aplicados por Estados e grandes empresas. Transparência total, gestão eficiente, e por aí fora.
Uma década depois — e com a crise da pandemia a agravar a situação pelo meio —, os trabalhadores do Vaticano dizem sentir na pele os impactos de muitas destas medidas e lamentam que a cúpula da Igreja Católica se tenha transformado numa multinacional.
No final de agosto, a ADLV publicou no seu site uma carta aberta sobre os múltiplos problemas laborais que se têm acumulado no Vaticano nos últimos anos. O texto — ao qual até agora não houve ainda uma reação da parte da hierarquia vaticana — adensa ainda mais o descontentamento em torno das condições laborais no microestado, que já estavam mergulhadas em polémica desde que, em maio, um conjunto de funcionários dos Museus do Vaticano avançou para tribunal com uma ação coletiva por injustiças laborais e falta de condições de segurança no trabalho.
Além das queixas concretas, os trabalhadores do Vaticano apontam a incoerência do Papa Francisco: por todo o mundo, o líder católico defende os direitos dos mais pobres, alerta para as injustiças laborais e pede capacidade de diálogo; dentro do Vaticano, os alertas para a degradação das condições laborais parecem cair em ouvidos moucos.
Trabalhadores duvidam da eficácia das reformas económicas (que implicaram sacrifícios)
O comunicado no centro da polémica surgiu no site da ADLV no dia 20 de agosto deste ano. “Ainda somos uma comunidade especial de trabalho no Vaticano?”, pergunta-se no título da carta aberta.
“Os funcionários do Vaticano, nos últimos tempos, têm questionado a natureza do trabalho na Santa Sé e o significado do serviço”, diz o texto. “Ser parte da comunidade dos funcionários do Vaticano deveria significar ser membro de uma família especial, caracterizada por valores específicos — os do ‘evangelho do trabalho’ e da doutrina católica sobre o trabalho humano, sempre viva na tradição da Igreja — que lhe dão um traço distintivo peculiar em comparação com empresas externas, especialmente as privadas. Tal como diz o Papa Francisco: ‘O trabalho é próprio da pessoa humana, expressa a sua dignidade como criatura feita à imagem de Deus’.”
A carta aberta cita vários excertos de documentos papais, com especial destaque para uma carta enviada em 1982 pelo Papa João Paulo II ao então cardeal secretário de Estado do Vaticano a propósito do “significado do trabalho prestado na Sé Apostólica” — um documento de referência nesta matéria. “A Sé Apostólica, no exercício da sua missão, recorre ao válido e precioso trabalho da particular comunidade constituída por quantos — homens e mulheres, sacerdotes, religiosos e leigos — se dedicam, nos seus dicastérios e departamentos, ao serviço da Igreja universal”, dizia o Papa polaco.
“Recorrendo a tudo o que a experiência, a ciência e a tecnologia ensinam, esforçar-se-ão por fazer que os recursos humanos e financeiros sejam usados com melhor eficácia, evitando o desperdício, a procura de interesses particulares e de privilégios injustificados, promovendo ao mesmo tempo bons relacionamentos humanos em todos os setores e o verdadeiro e justo interesse da Sé Apostólica”, escreveu João Paulo II, que sublinhou a necessidade de, “especialmente para quantos colaboram com a Sé Apostólica, aprofundar a consciência pessoal sobretudo do universal compromisso apostólico dos cristãos e do que promana da vocação específica de cada um”.
“As respostas às dificuldades de hoje no campo do trabalho humano hão de ser buscadas na esfera da justiça social; mas é preciso buscá-las, além disso, na área da relação interior com o trabalho que cada um está chamado a realizar. Parece evidente que o trabalho — qualquer que ele seja — prestado às dependências da Sé Apostólica exige isto em medida totalmente especial”, disse ainda o Papa.
Outro texto citado na carta aberta dos trabalhadores do Vaticano é o Fidelis dispensator et prudens, o documento com o qual o Papa Francisco instituiu em 2014 o Conselho para a Economia e a Secretaria para a Economia — organismos-chave para o projeto da reforma económica do Vaticano. “A gestão dos setores económico e financeiro da Santa Sé está intimamente relacionada com a sua missão específica ao serviço não só do ministério universal do Santo Padre, mas também do bem comum procurando o desenvolvimento integral da pessoa humana”, escreveu na altura o Papa argentino.
Em suma, argumentam os trabalhadores, há algo que distingue o Vaticano de uma qualquer empresa multinacional ou até de outros Estados: todo o trabalho tem de estar orientado para o desenvolvimento humano. “Mas perguntamo-nos: há uma real atenção à ‘pessoa humana’? O nosso interesse também é proteger a imagem da Santa Sé, que infelizmente tem sido minada por escândalos nos últimos anos.”
Na carta, a associação que representa os trabalhadores do Vaticano diz não ter qualquer informação sobre a eficácia das medidas de reforma económica implementadas nos últimos anos. “Quais são os resultados desta ‘revolução’? Não sabemos exatamente porque, há alguns anos, a informação orçamental — que antes era apresentada numa conferência de imprensa — ainda não foi publicada”, lê-se. “Não perdemos a esperança de ver o orçamento final de 2023.”
Os trabalhadores apontam uma das medidas em concreto, a suspensão do “biénio”, um sistema de progressão na carreira que implica a subida de um escalão de senioridade a cada dois anos e que esteve congelado entre 2021 e 2023. “Nem mesmo a suspensão do biénio — uma medida não indolor, que custa milhares de euros aos trabalhadores, com repercussões significativas nas pensões e indemnizações — conseguiu provocar uma mudança radical na situação financeira da Santa Sé”, diz a ADLV.
“Quais os frutos das medidas restritivas que afetaram os colaboradores nos últimos anos (como o congelamento da progressão na carreira, as contratações ou as horas extra)? O que podemos esperar da anunciada reforma salarial? As pensões vão ser afetadas?”, questionam os trabalhadores.
Além das dúvidas sobre a eficácia da reforma económica, que exigiu sacrifícios aos trabalhadores, a ADLV também insinua que pode estar a haver favorecimentos de alguns funcionários: “Por outro lado, vemos que as promoções e as posições na gestão continuam a ser dadas a alguns: ações que impactam os orçamentos e que não ocorrem sempre com o critério da meritocracia.”
“Há agora uma tendência para falar de uma ‘cultura empresarial’”
A carta aberta da associação que representa os trabalhadores do Vaticano mostra-se desiludida com o facto de a cúpula da Igreja Católica se parecer cada vez mais com uma grande multinacional — com o problema de não tratar os funcionários tão bem como as grandes multinacionais. Um dos problemas traduz-se, dizem os trabalhadores, no crescente recurso ao outsourcing.
“As notícias mais recentes falam-nos de um Vaticano que se está a abrir ao outsourcing em vários setores. Isto representaria uma mudança radical de direção: de uma pequena comunidade inspirada pelos valores do evangelho, desejosa de enfatizar a sua particularidade aos olhos do mundo, para uma empresa em todos os aspetos”, diz a carta. “Uma multinacional um pouco coxa, a que faltam muitos dos bónus, prémios e gratificações de que os funcionários externos beneficiam.”
“Há agora uma tendência para falar de uma ‘cultura empresarial’. No que é que o Vaticano se está a transformar?”, perguntam mesmo os trabalhadores. “Para quem trabalhamos? Todos sabemos a importância de acompanhar o andar dos tempos, mas a que custo? Quais são as razões por trás desta repentina mudança de rumo?”
De acordo com o comunicado da ADLV, “tudo começou com as empresas externas de auditoria que começaram, logo desde o início [da reforma económica], a colaborar com a Santa Sé”. Seguiu-se, diz a associação, um “recurso massivo aos serviços de empresas externas” em áreas como as “limpezas e serviços de portaria”.
Também os “ativos imobiliários” do Vaticano, que estão sob jurisdição da Administração do Património da Sé Apostólica (APSA), foram “colocados sob gestão de algumas agências imobiliárias italianas, que estabeleceram um acordo com a APSA”. Os trabalhadores denunciam uma “política imobiliária” que “prevê um alinhamento dos valores das rendas com os valores de mercado, o que não sucede com os salários do Vaticano, que permanecem iguais desde 2008”. Isto coloca em causa especialmente os trabalhadores do Vaticano que residem em apartamentos que são propriedade da Santa Sé e que arriscam ficar sem dinheiro para pagar a renda.
Entre os setores que o Vaticano está a confiar a empresas externas encontram-se ainda o setor dos investimentos e até o famoso supermercado do Vaticano (onde apenas os trabalhadores do Vaticano podem fazer compras e onde podem adquirir certos produtos com isenção de impostos) poderá vir a ser privatizado.
“O Annona, o supermercado do Vaticano, vai em breve sofrer o mesmo destino: a sua gestão vai em breve ser confiada a uma conhecida marca italiana. Os cerca de 30 ou 40 funcionários, notificados posteriormente, deverão ser recolocados dentro do Vaticano, mas não se sabe exatamente onde, tal como não se sabe o destino das empresas externas que atualmente colaboram com o Annona”, dizem os trabalhadores, questionando se o mesmo vai acontecer com outros serviços, como lojas de roupa ou a bomba de gasolina do Vaticano.
“Temos a perceção de que a estrutura se está lentamente a desintegrar. Esta política vai compensar? Só o tempo nos dará respostas”, acrescenta a associação, que lamenta o modo como os trabalhadores do Vaticano estão a ser tratados em todo este processo. “Porque não reforçar os recursos internos, que estão cada vez mais desmotivados e confusos? Em que direção estamos a ir?”
A ADLV garante que o descontentamento está a crescer entre os seus associados. “Se alguém nos pudesse responder claramente, seria mais fácil para nós tranquilizar os nossos membros, que estão cada vez mais preocupados. Pedimos aos nossos superiores mais informações. Alguém nos vai responder antes da assembleia geral de setembro? Esperamos sinceramente que sim, porque o descontentamento está a crescer impiedosamente, como demonstra a ação coletiva apresentada por alguns funcionários dos Museus do Vaticano”, lê-se na carta aberta.
“Quando iremos ver a muito desejada abertura ao diálogo ao estilo do cardeal Casaroli?”, termina o comunicado, referindo-se ao cardeal italiano Agostino Casaroli, secretário de Estado do Vaticano entre 1979 e 1990, conhecido pela sua capacidade diplomática para mediar o diálogo (e que, como recorda o jornal Crux, o Papa Francisco cita frequentemente como modelo a seguir).
O Observador contactou a ADLV para obter mais esclarecimentos sobre os casos que estão na origem desta carta aberta. Contudo, a associação disse não ter disponibilidade, neste momento, para aprofundar o assunto — e sublinhou que continua a lutar pela defesa dos direitos dos trabalhadores do Vaticano.
Trabalhadores dos Museus do Vaticano avançam com ação coletiva
A carta aberta da ADLV surge poucos meses depois de 49 funcionários dos Museus do Vaticano terem entrado em disputa com a Santa Sé por causa das condições em que trabalham. No centro da ação estão 47 vigilantes, um restaurador de arte e um funcionário da livraria dos museus, que apresentaram uma queixa dirigida ao Governadorato do Estado da Cidade do Vaticano — e deixaram a porta aberta para avançar para uma disputa judicial caso não haja acordo.
Os trabalhadores são representados pela advogada Laura Sgrò, uma veterana dos casos ultra-mediáticos contra o Vaticano (é ela que representa, por exemplo, a família de Emanuela Orlandi, a jovem desaparecida em 1983 no Vaticano, cujo caso deu até origem a um documentário da Netflix e foi reaberto o ano passado pela justiça vaticana).
Na queixa, os trabalhadores apresentam múltiplas denúncias sobre as condições laborais nos Museus do Vaticano. Por exemplo, quando ficam doentes, os trabalhadores são obrigados a ficar todo o dia em casa para que possam ser visitados por um médico ao serviço do Vaticano que possa confirmar o estado de saúde do trabalhador — enquanto a lei italiana especifica que estas visitas a trabalhadores doentes devem ser realizadas entre as 10h e as 12h e entre as 17h e as 19h. O Vaticano, de acordo com a queixa, não tem qualquer horário pré-determinado para as visitas — e, de acordo com o Crux, já terá até havido trabalhadores punidos por estarem numa consulta médica quando o médico enviado pelo Vaticano lhes bateu à porta.
Os trabalhadores queixam-se também de que os responsáveis dos Museus do Vaticano “abusam” das horas extraordinárias e definem os horários dos trabalhadores de forma discricionária. A queixa fala mesmo de um “estado perpétuo de caos” entre os trabalhadores — e de funcionários que já foram punidos por terem tirado horas ou dias para cuidar de familiares doentes.
Por outro lado, a queixa aponta o facto de os trabalhadores do Vaticano não terem acesso a qualquer fundo de desemprego. Uma vez que não trabalham, tecnicamente, em Itália, não têm acesso ao fundo de desemprego italiano — e o Vaticano não dispõe de qualquer mecanismo comparável.
Os trabalhadores dos Museus do Vaticano também criticam o congelamento da progressão nas carreiras entre 2021 e 2023, o facto de não terem recebido o salário referente ao tempo em que foram obrigados a ficar em casa por causa da pandemia de Covid-19, e a ausência de qualquer compensação pelos riscos de saúde que correm ao contactar com dezenas de milhares de pessoas todos os dias. Os vigilantes, por exemplo, dizem que são eles os responsáveis por prestar primeiros socorros aos visitantes, sublinham que a lotação dos museus é excedida todos os dias na ordem dos milhares de pessoas e falam até em agressões cometidas por turistas.
O Observador contactou o gabinete da advogada Laura Sgrò, que não respondeu até à publicação deste artigo.
Até ao momento, não há notícia de qualquer resposta oficial do Vaticano às queixas apresentadas pelos trabalhadores. Contudo, basta uma rápida pesquisa no Google para encontrar dezenas de intervenções do Papa Francisco sobre direitos dos trabalhadores: já defendeu o direito dos trabalhadores a organizarem-se em sindicatos como forma de garantir proteção laboral; já alertou para as muitas discriminações no mundo do trabalho, e até já apelou à criação de regulamentos internacionais que protejam os trabalhadores do “‘jogo’ da desregulamentação”.
Dentro do Vaticano, contudo, os trabalhadores lamentam que o discurso não esteja a ser aplicado: numa Igreja liderada por um Papa que se multiplica em apelos ao diálogo, os trabalhadores do Vaticano queixam-se de não ter qualquer possibilidade de dialogar com a hierarquia. A associação que representa os trabalhadores do Vaticano queixa-se de, simplesmente, não ser ouvida. “Todos estão em silêncio”, lê-se várias vezes na carta aberta, em que a ADLV sublinha o facto de não ter respostas às várias perguntas que faz à hierarquia. “A ADLV escreve, mas os responsáveis, quando questionados, não conseguem dar respostas.”