Chega à hora marcada para a entrevista, mas nessa mesma altura uma forte ventania também pega de estaca no terraço do Observador e Maria Antónia Almeida Santos lá teve de esperar que se encontrasse um plano B. Vai fumando os seus cigarros eletrónicos, pacientemente, enquanto espera que tudo esteja a postos noutra zona do terraço. No fim falhou a polaroid, precisava de novas pilhas. Mais uma espera. “Espero que isto não queira dizer nada!”, graceja a porta-voz do PS que assumiu o cargo no congresso do partido do final de maio.
Um porta-voz tem voz própria? A socialista nem hesita: “Não, não tem”. O tom é comprometido, como aquele que usa quando admite que quando, em 2015, António Costa montou a “geringonça” não achou boa ideia. “Tenho de dar a mão à palmatória”, diz agora que se aproximam novas legislativas e que já não vê outra solução possível que não a repetição desta. Ainda que também assuma que “devem existir mais entendimentos com o PSD”. Até porque o partido rival mudou com a entrada de Rui Rio em quem Maria Antónia vê “uma pessoa que, de algum modo, veio virar uma página que nós combatemos” no PSD.
Para lá da política pura e dura, a socialista filha de António Almeida Santos também fala do “bocadinho limitador” que foi carregar o apelido que carrega. E da batalha que, como o pai, tem travado pela legalização das drogas e de como, nisso, pesou a morte de uma irmã. Também fala da infância “muito feliz” em Moçambique, e dos chás no Hotel Polana da sua mãe com a de Marcelo Rebelo de Sousa.
Porque escolheu esta bebida, um Aloha (leva gin, sumo de goiaba e lima)?
Geralmente não bebo muitas bebidas, mas provei este cocktail numa viagem que fiz e como tem goiaba e tem um sabor diferente de tudo, achei que a combinação dos ingredientes era boa e sempre que posso, peço-a.
Quando lhe perguntei a bebida achei que ia pedir uma cerveja Laurentina ou uma bebida mais típica de Moçambique… que foi a terra onde nasceu e cresceu. Que memórias guarda desse tempo?
Tive uma infância fantástica numa cidade maravilhosa em que as crianças cresciam em liberdade, uma realidade muito diferente da que se vivia aqui em Lisboa. Portanto, tive uma infância muito feliz, as memórias que trago são as melhores possíveis. Éramos cinco irmãos, nascemos todos lá.
Foi um choque quando veio? Aos 11 anos já deve ter memória disso.
O choque era mais… nós andávamos muito livres, não havia o problema dos transportes públicos. Aquilo também coincidiu com a participação política do meu pai num Governo e portanto foi uma mudança radical. Mas não tenho más memórias, porque ainda era muito miúda, vim para um colégio e lá fui crescendo.
Já teve oportunidade de lá voltar?
Várias vezes. Sempre que posso, gosto de voltar. Já fiz uma viagem muito engraçada com a família para mostrar onde é que tinha nascido, tive lá há dois natais e gosto sempre de voltar. Já fui em trabalho também e é sempre um sítio a que gosto de voltar.
Vivia mesmo em Maputo, na altura Lourenço Marques?
Sim. Acho uma cidade muito bonita, tem uma arquitetura muito avançada para a época em que foi traçada a cidade.
Na fotobiografia de Baltazar Rebelo de Sousa, pai do atual Presidente da República, há referências à família Almeida Santos. Havia uma proximidade entre as duas famílias?
A mãe do Presidente da República, senhora dona Maria da Neves, era amiga da minha mãe. Não era uma amizade muito próxima, mas de facto era uma amizade em que estavam juntas de vez em quando. Com o professor Baltazar Rebelo de Sousa nem tanto. Era uma pessoa obviamente falada, mas não era propriamente uma amizade de casa. Com a senhora dona Maria das Neves, lembro-me de ser miúda e irmos ao Hotel Polana, a minha mãe ir tomar chá com ela e toda a gente dizia que ela era uma pessoa encantadora. Acho até que o professor Marcelo Rebelo de Sousa é parecido com a mãe.
No quê?
A mãe tinha assim aqueles olhos azuis. A maneira de falar muito expressiva. O Presidente é assim, não é? Aquele ar muito afável. É a recordação que tenho.
Encontrou-se alguma vez com ele lá?
Eu não, mas acho que as minhas irmãs mães velhas se encontraram com os irmãos dele. Na altura a diferença de idades era grande.
Como foi isto de chegar a porta-voz do PS? E numa altura particularmente exigente pelo ano eleitoral que aí vem?
Surgiu naturalmente, fizeram-me o convite. Eu acho que o João Galamba fez um trabalho excecional, mas é um trabalho que é complicado porque é preciso estar muito atento. E no congresso, altura em que somos eleitos, desafiaram-me.
Foi António Costa que a desafiou?
Não, por acaso quem me transmitiu foi a secretária-geral adjunta, a Ana Catarina [Mendes]. Quanto ao processo para lá chegar, não sei.
Normalmente, quando os partidos vão para o Governo ficam adormecidos e desta vez não está a ser diferente…
Por acaso discordo um bocadinho de si.
Acha que está a ser diferente desta vez?
Em relação a algumas legislaturas anteriores, acho que sim, principalmente pela solução governativa, porque o partido tem de estar muito mais presente nas negociações. Os parceiros, o partido e vários sectores têm de estar sempre a conversar, a discutir ideias, de modo que, evidentemente, a sensação que eu tenho é que, em relação a outras legislaturas, o partido está mais presente na agenda política diária.
É mais exigente com a negociação permanente?
Sim, temos de falar com os nossos parceiros.
Mas não está tudo ali muito concentrado em duas ou três figuras do Governo?
Também está. O Governo tem as suas figuras que estão mais presentes nessa negociação, mas o partido também está muito presente, não só em negociações concretas, mas na discussão de ideias, estratégias, etc. Sinto o partido mais presente, mais ativo, menos adormecido.
Um porta-voz tem voz própria, publicamente?
Não, não tem.
E para si não é um problema? Ainda no início deste ano foi contra o projeto do seu partido sobre a transparência nos cargos públicos.
Até agora ainda não foi difícil porque ainda não surgiu assim nada que eu discordasse, mas sei também que tenho margem de manobra para poder expressar a minha opinião. Agora, se o vou fazer da forma que fazia no passado, não vou. Vou ser mais comedida obviamente. Já que tenho de transmitir a opinião oficial do partido, é lógico que se calhar tenho de ser mais comedida. Ainda não aconteceu, mas também não vou deixar de ser eu própria.
Como é que se doseia isso?
Fazendo aqui o equilíbrio. Até agora ainda não tive necessidade. Mas como tudo na vida, sigo muito a minha intuição e a naturalidade. Tudo o que é muito forçado não sai bem. Espero que no momento oportuno a minha intuição não me traia e que eu saiba sentir-me bem na minha pele, que isso também é importante.
Por exemplo naquela questão dos projetos do PS sobre a transparência, como é que poderia passar por cima do que realmente acha sobre aquela matéria?
Esse processo ainda não acabou, não é? Portanto, vai havendo uma evolução e o grupo parlamentar tem voz e nós, se há coisa de que nos orgulhamos, é que temos um grupo parlamentar que tem diversidade de opiniões. Ao contrário do que muitos possam pensar, isso é uma mais-valia. Lidamos bem com opiniões diferentes. Eu, pessoalmente, desde miúda que estou habituada a ouvir opiniões diferentes, cresci com isso e, portanto, lido muito bem com isso. Posso manter a minha opinião representando a opinião do partido. Acho que isso eu vou conseguir fazer, sinceramente. Com mais ou menos entusiasmo, logo se vê.
Nesse caso concreto, o escrutínio da classe política, estamos a correr o risco de que falava Sérgio Sousa Pinto de estar a criar-se uma “classe sacerdotal”?
Se calhar não utilizava essas expressões que o meu amigo Sérgio Sousa Pinto, de quem eu gosto muito e tem sempre um vocabulário muito rico e muito forte. Mas que às vezes há um exagero, eu acho que há. Exigem de um político que não tenha atitudes… não é ter medo do escrutínio, eu não tenho medo nenhum dos escrutínios, muito pelo contrário. Sou das que acha que as pessoas que estão em cargos públicos devem ser escrutinadas. E ainda por cima nós deputados temos a sanção do voto. Mas o escrutínio, às vezes, ultrapassa uma fronteira que não devia ser ultrapassada.
Nos últimos anos um ex-grande banqueiro, um ex-grande gestor e um ex-primeiro-ministro foram investigados. Estas situações não criam a necessidade de se reforçar a malha de controlo do passado e do património dos políticos?
A lei já existe. Existem órgãos próprios que têm essa exigência e devem ser respeitados. Todas as pessoas que aceitam ter um cargo público e político sabem que têm essa obrigação. Temos as nossas declarações no Tribunal Constitucional, todos sabemos disso e não é de hoje, com os processos que estão a decorrer. Há uma exigência, evidentemente, que é suscitada às pessoas que estão nesses cargos. Não acho que por existirem processos a serem julgados neste momento que se deva alterar a lei que existe. Acho que os limites impostos devem ser cumpridos. O que existe chega. Os processos que existem, é a justiça funcionar. As pessoas não se podem deixar levar para tornar a lei ainda mais rígida quando a que existe já cumpre bem o seu papel.
Acha que cumpre?
Acho.
Pergunto por causa destes casos que existiram no passado recente.
Bom, ainda bem que a justiça funciona. Vou dizer uma frase que é banal que todos dizem: à justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Mas sinceramente acho que chega, que o escrutínio é bem feito, que existem órgãos que têm todas as competências e devem exercê-las. Agora, não vamos cair no exagero de criar aqui uma situação que as pessoas não tenham vontade de participar ativamente na vida política porque se sentem limitadas. A lei não deve servir de limitação para que uma pessoa possa participar ativamente na vida política.
Fica chocada quando há pessoas que se comportam da forma que não era esperada para alguém que exerce um cargo político?
Chocada não fico, a natureza humana muitas vezes surpreende-nos. Se forem pessoas que admiro e gosto, no mínimo posso ficar desiludida. Agora chocada não é bem o termo.
A geringonça… a estrutura conhecida por geringonça… Incomoda-a o termo?
Não, acho giríssimo o nome. Foi o Paulo Portas que o inventou não foi? De facto foi genial. Acho um nome giríssimo.
Esta estrutura tem aguentado bem nestes dois anos e meio?
A avaliação neste momento é muito positiva. Não só pelos resultados que estão à vista de todos, mas porque todos nos respeitamos. Todos sabemos que somos partidos diferentes e temos identidades diferentes, mas temos sabido, apesar de tudo, respeitar-nos e ao mesmo tempo aproveitar o melhor do que cada partido traz para esta coligação parlamentar.
No início achou boa a ideia ou resistiu essa junção de forças?
Resisti…
Achava que não ia funcionar?
Tenho de dar a mão à palmatória. Eu achei, sinceramente, que não ia resultar. Achei que o PS com o PCP nunca iria resultar pelo historial dos dois partidos. Não sabia que havia uma aproximação, nem tinha nada que saber. Durante as eleições eu estava na Guarda longe daqui, fui das pessoas que tiveram algumas reservas e manifestei-as ao dr. António Costa quando ele ainda não era primeiro-ministro.
O que lhe disse? Que as suas reservas eram mais face ao PCP do que ao Bloco?
Do Bloco não disse tanto. Disse que achava que tinha dúvidas que fosse resultar, assumo. Nunca pensei que fosse uma história de sucesso como tem sido. E, de facto, tem sido uma surpresa.
Este novo arco da governação trouxe alguma coisa diferente ao dia a dia no Parlamento? Nota essa diferença na relação com os partidos-parceiros?
Noto, temos de falar mais uns com os outros.
E a conversa flui melhor do que fluía?
Eu posso falar na área da saúde, em que trabalho, onde sempre houve um espírito de entreajuda muito grande. Muitas vezes não sabíamos o que o outro partido ia fazer em relação a esta matéria ou outra. E agora tentamos saber antecipadamente porque precisamos de nos organizar.
E há essa partilha?
Nisso é mais fácil. Mas eu tive a sorte de estar estes anos todos no Parlamento, de conhecer pessoas extraordinárias em todos os partidos, que fizeram a diferença. Estou a lembrar-me do João Semedo, que infelizmente morreu tão recentemente, do Bernardino Soares que é do PCP. Tínhamos ali, no grupo da Saúde, um espírito muito fácil de conversação. É evidente que se calhar agora falamos mais um pouco.
Tem mais dúvidas ou certezas sobre a continuidade desta solução governativa?
Eu acho que tem resultado tão bem, sinceramente. Estamos com quase três anos desta experiência e, portanto, se o espírito se mantiver, devemos continuar. Não devemos mudar. Até porque há um dado que nos orgulha a todos — e não só ao PS que está no Governo — que são os resultados que temos conseguido a nível nacional. A melhoria da vida dos portugueses todos sentem, todos vemos. Dá uma grande satisfação a um político saber que, com a sua ação, consegue transformar a vida das pessoas, essa é que é a beleza da política.
Agora, numa noite eleitoral em que houvesse um resultado parecido com o de 2015 já não teria reservas?
Não. Se me perguntarem já não tenho as dúvidas que tive no passado.
É repetível a solução?
Temos condições para que seja. Isto pode mudar tudo. Em política tudo pode mudar de um dia para o outro. Mas fazendo uma previsão em que nada aconteça, sinceramente acho que temos condições para isso, obviamente respeitando as diferenças e mantendo bem que somos diferentes. Esse respeito é que foi o grande sucesso desta geringonça.
Houve campainhas de alarme a soar quando Rui Rio ganhou as diretas no PSD, com o BE e PCP a levantarem o fantasma do Bloco Central. Algum PSD também já o fez. Há fundamento para este receio?
Não, de facto o PSD do passado era um PSD que trouxe o que trouxe ao país e criticamos, enquanto partido, e reprovamos uma série de políticas que foram seguidas pelo PSD e pelo CDS na anterior legislatura. E isso não há dúvida que não se apaga de um dia para o outro. Havendo novos protagonistas, têm posições diferentes e conhecidas em relação a uma série de matérias. Rui Rio é uma pessoa que, de algum modo, veio virar uma página que nós combatemos. Estamos na expectativa. Mas enquanto partido no Governo nós não precisamos do PSD, se o PSD se quiser juntar pontualmente nalgumas questões, não vamos fechar a porta.
Neste período, os dois partidos encontraram-se na descentralização e nos fundos comunitários. No futuro, acha que este entendimento devia acontecer mais vezes?
Acho.
Mas a solução governativa deve ser mais alargada?
Não estou a dizer a solução governativa. Isso não estamos aqui como na Suíça que são todos os partidos. A solução governativa que existe está a dar bons resultados e estamos a dar-nos bem e não vamos mudar.
Deve ser essa a prioridade depois das eleições?
Eu acho que sim, mesmo dentro do meu partido acho que as pessoas não iam perceber que fosse de outra maneira.
Mas as pessoas percebem que o PS e o PCP e o BE se entendam sobre umas coisas e depois em matérias que tanto PS como PSD classificam de estruturais precisem um do outro?
Até são questões que, quanto maior for o apoio, melhor. São questões que pela sua natureza…
… mas não é como se a base se tivesse alargado ao PSD. O PS não consegue com a esquerda e tenta com o PSD.
É o Parlamento a funcionar. Houve no passado, e vai continuar a haver numas matérias, uma maioria com alguns partidos. Nem os partidos que estão na geringonça deixaram de ter a sua identidade e as suas diferenças e também não se podem anular e não se anularam. É esse respeito que está na base do sucesso desta solução.
Há uma matéria que foi uma bandeira sua nos últimos meses e que até mostra um momento em que a geringonça não funcionou no Parlamento, a despenalização da Eutanásia. A margem de votos foi curta. É um assunto a que se deve voltar já ou só na legislatura seguinte?
O que se passou não foi tanto com os partidos da geringonça, porque sabíamos com o que contávamos, à partida, desses partidos. De facto, o PCP nunca anunciou que iria votar a favor da despenalização da eutanásia. Foi super correto. Nunca disse que iria votar a favor, por isso estávamos à espera. O que se passou foi uma diferença de cinco votos, não foi a geringonça que não funcionou. Foi no PSD a troca de votos de última hora. Aquilo foi uma estratégia que se não foi combinada pelo menos parece. À última hora, uns deputados votam a favor de um projeto e contra outro quando eram todos parecidos. Há qualquer coisa aqui que, sinceramente, nunca percebi. A não ser que seja uma estratégia e isso, para mim, é lamentável. A questão é incontornável e vai voltar a ser discutida. A oportunidade, se calhar, tem de ser mesmo depois das eleições. Era bom que não aparecesse nenhuma iniciativa porque em ano de eleições o debate está feito.
E tem que estar nos programas eleitorais?
Não acho que seja falta de coerência não aparecer, até porque há muitas matérias… como se tudo o que votássemos no Parlamento fosse uma questão de estar nos programas eleitorais. Se nos limitássemos a isso era uma tristeza. E depois não nos podemos esquecer que o Parlamento tem liberdade.
Há uma crítica que é feita ao Governo sobre os serviços públicos, as carências da saúde, nos transportes. Isto mostra que a austeridade ainda não acabou?
Não, mostra que acabou e isso vê-se por outros dados que conhecemos. A diminuição do desemprego, o aumento do emprego, o aumento das pensões, que vai acontecer outra vez este mês. Esses dados todos, menos pessoas em risco de pobreza, isso mostra que já não estamos num período de austeridade.
E a outra metade do copo?
Infelizmente em alguns sectores, de maior desgaste, houve um desinvestimento durante muitos anos.
Mas o PS conhecia esses dados. Quando esteve em campanha falava disso.
Mas não conseguimos fazer tudo, quando me fala dos transportes, nós estamos pagar agora o reflexo de desinvestimento de anos. Só agora há um plano para os transportes.
E a degradação de hospitais, falta de espaço, falta de camas, falta de profissionais de saúde?
Na saúde acho que a situação é um bocadinho diferente porque nunca houve tanto investimento na saúde. Com os dados de que disponho percebi que uma coisa é a perceção, a outra é a realidade. Muitas vezes temos tendência a empolar um caso. A saúde é uma área complicada. Lidar com o sofrimento das pessoas é um horroroso. Sempre que há sofrimento temos de ter uma sensibilidade maior. Quando olhamos para os dados do investimento, números de médicos, profissionais de saúde… ainda faltam? Faltam. Faltam muitos.
Se nunca houve tanto investimento como agora, porque existem tantas queixas diretamente de utentes? É só má perceção das pessoas?
Não será só isso. Haverá sempre esses casos, nem sempre corre bem.
São casos isolados?
Pelo dados de que disponho, eu não conheço a realidade total em todo o país, mas vou vendo distrito por distrito. Entidade hospitalar por entidade hospitalar. Os dados não são aquilo que o discurso muitas vezes nos transmite. Os dados são bons. Há mais cirurgias, mais consultas, mais capital humano. Então explique-me, o que se passa aqui?
O que se passa?
O que se passa muitas vezes é que… porque é que muitos hospitais têm resultados bons e outros não têm quando têm o mesmo ratio de doentes? Muitas vezes é má gestão. É a única justificação que posso encontrar.
Nos hospitais?
Em alguns! Não estou a dizer “nos hospitais”. Quando tento perceber, havendo este investimento, mais dinheiro para a saúde, o que se passa para haver este descontentamento? Mas não podemos desvalorizar perceções, o que as pessoas sentem tem de ser sempre ouvido e valorizado, ainda que possa ser uma perceção errada. Em política não podemos menosprezar as perceções. Mas pelos dados de que disponho, a realidade está melhor.
Faz sentido continuar esta contenção?
Não há dinheiro para tudo. Não dá para tudo ao mesmo tempo. É preciso fazer opções
Os vossos parceiros criticam a vossa opção, nomeadamente a de Mário Centeno, se preocuparem em cumprir com Bruxelas, mais do que com a qualidade dos serviços públicos. É injusta a crítica?
Completamente. E não é verdadeira. O rigor das contas públicas, que vai continuar, tem sido o motor para o sucesso de tudo. Não podemos de repente deixar esse rigor. Temos de manter esse nível de rigor e confiança e temos beneficiado disso. É um exercício muito difícil. Acho que este ministro das Finanças tem feito um trabalho extraordinário. O que não quer dizer que não se tenha investido no sector público. Há um investimento nas áreas que são mais importantes para a vida e o bem estar dos portugueses. Demora é a ter-se o resultado destas medidas porque foram muitos anos — aí sim — numa contenção quase cega.
O que é que o PS deve responder à esquerda quando a esquerda falar, como tem falado, da utilização da folga que se consegue além do que Bruxelas pede?
Mas qual folga? O problema é que não há folga.
Há revisões do défice além do pedido todos os anos.
Sim, mas não há folga. Temos beneficiado de termos conseguido resultados com rigor das contas públicas. É precisamente o contrário da crítica que nos fazem. E um elemento a nosso favor. Espero que num futuro próximo não precisemos de usar esse capital.
Falar neste momento de “sucesso” da operação este ano de combate aos fogos quando há um incêndio ativo há seis dias no Algarve não mostra insensibilidade? Sente se confortável com essas declarações do primeiro-ministro?
Eu acho que a declaração do primeiro-ministro era mais no sentido de agradecer o combate feito à Proteção Civil, aos bombeiros que têm tido um trabalho incansável, e de apelo às populações para que acatem as recomendações das pessoas que estão no terreno. Referia-se um pouco à questão da prevenção. Não é tempo de avaliação.
Esta é uma exceção que confirma que a regra de estar a correr tudo bem ou que afinal mostra que em situações-limite o Estado continua a falhar como aconteceu no ano passado?
Não há comparação com o ano passado. Mas também acho que não estamos em fase de fazer avaliações. A seguir vamos fazê-las todas. Houve um esforço enorme nos últimos meses para a que a tragédia do ano passado não se repita. Em muitos casos, a prevenção resultou e há uma maior consciencialização dos perigos. Estamos todos muito mais alerta. Repetir a tragédia do ano passado seria um horror. Quanto aos fogos que ainda existem, a avaliação terá de ser feita depois.
A sua carreira política começou logo mal saiu da faculdade? Foi logo militante?
Só aos 24 anos é que fui militante, não passei pela JS.
Tendo em conta o seu pai ser António Almeida Santos achei que tinha andado a gatinhar nos corredores do partido.
Ao contrário do que as pessoas pensam, o meu pai nunca impôs nem nunca forçou para que nos filiássemos no partido dele.
É a única dos irmãos com atividade política?
Sou, foi acontecendo naturalmente. Prendeu-se com um grupo de amigos que tinha que eram mais de direita, Achei: ‘porque é que não hei de participar mais ativamente na vida política?’.
O PS era um caminho óbvio para si?
Sim, era um caminho óbvio. Está a perguntar por causa do meu pai não é?
Sim.
Muitas vezes, o meu pai apoiava candidatos diferentes que eu apoiei. Estávamos em áreas diferentes dentro do partido, mas não havia problema nenhum. Nunca me forçou, nunca me deu uma indicação de voto. Muito pelo contrário. Os meus irmãos, apesar de não terem participação ativa em nenhum partido sempre votaram e tiveram consciência política e nem todos votavam no PS.
Antes de se tornar militante disse ao seu pai que o ia fazer?
Disse-lhe se ele me podia levar a um comício para começar a ouvir. Foi assim. Fomos a uma reunião magna do partido onde havia possibilidade de ouvir muita gente, depois gostei e comecei a participar mais ativamente. E no congresso seguinte entrei. Quando acabou o Governo da AD.
Década de 80.
Em 85. O PS estava muito mal e eu disse: ‘Bem está na altura de eu entrar’. Quando os partidos estão mal é que nós devemos entrar.
Mas depois disso ainda vieram 10 anos de seca em relação à governação, com os dez anos de cavaquismo.
Está a falar da governação, mas para mim foi ótimo, porque participei numa série de coisas e é muito mais fácil participar quando se está na oposição, sobretudo quando se é jovem e se tem muito mais vontade de protestar do que propriamente de fazer outras coisas.
Logo a seguir foi consultora jurídica na Presidência da Republica.
Primeiro trabalhei num escritório de advogados de família e depois a Dra. Maria Barroso convidou-me para ir trabalhar em part time com ela. Era muito amiga dela, era uma pessoa que admirei imenso. Depois Mário Soares via-me de passagem lá no Palácio de Belém e convidou-me para trabalhar com ele. Só que nunca deixei a Dra. Maria Barroso. Depois passado dois anos passei logo a trabalhar lá a tempo inteiro.
Com ela fazia o quê?
Era uma assessora para todo o serviço. Preparava eventos, reuniões que ela tinha, dava-lhe elementos para escrever. Ela escrevia maravilhosamente, mas os elementos arranjava eu. Era muito próxima.
Foi depois assessora jurídica na Presidência da Assembleia da República. Com o seu pai a presidente?
Era. Ele tinha um assessor jurídico que era o mais qualificado e estava sozinho com muito trabalho e foi ele que me desafiou. Eu ainda pensei: ‘agora ir trabalhar com o meu pai pode ser mal visto e tal’. Mas ele disse que não achava nada, que não tinha de estar limitada por isso. Foi ele que me propôs ao meu pai e eu fiquei toda contente. E fui e gostei imenso.
Convivia muito com o seu pai no meio profisisonal?
Não, fazíamos o trabalho, mas quem lidava mais com o presidente era o Dr. João Ramos.
Estava a dizer que o seu superior lhe dizia que não devia ser limitada por causa da relação que tinham. Sentiu alguma vez isso ao longo da vida política? O apelido abriu lhe mais portas ou fechou?
É evidente que ser filha do Almeida Santos criava uma expectativa muito grande e isso é uma sensação muito aborrecida, porque as pessoas ainda não nos conhecem e já têm uma expectativa muito alta. Nesse aspeto foi um bocadinho limitador, mas não posso dizer que tenha sido depois. Era mais uma sensação que eu tinha. Eu é que, às vezes, me sentia desconfortável com a situação. Que tivesse sido descriminada ou beneficiada, nem uma coisa nem outra. Acho que nunca fui, pelo menos que eu tenha sentido.
Quando pensava nisso tudo não lhe apetecia dizer: ‘estou farta, vou para o privado’?
Não, fui estando em vários sítios e não sentia a pressão no dia a dia. Foi um bocadinho desconfortável em algumas situações, mas as pessoas com quem trabalhei conheceram-me e depois saí e fui trabalhar numa área em que também gostei muito, a comissão de dissuasão para a toxicodependência. Era uma equipa onde íamos aplicar o novo regime de descriminalização do consumo de substâncias estupefacientes e foi todo um caminho novo, um período de quatro anos muito compensador.
Houve uma entrevista em que perguntaram ao seu pai sobre a posição dele em matéria de legalização de drogas, se nessa postura dele tinha pesado…
[Interrompe] … a história da minha irmã.
Sim, um drama familiar muito próximo, da sua irmã, que morreu [era toxicodependente].
E o que respondeu ele?
Deixe-me fazer a mesma pergunta a si antes de dizer o que ele respondeu. Pesou nessa sua ligação a esta matéria e a esta luta pela legalização de drogas?
Eu acho que sim, embora não de uma forma muito consciente. Mas acho que sim. O ter-me dedicado a estudar esses temas, a perceber como funciona, não só a minha irmã, como também amigos dela e meus que tiveram histórias dessas. É evidente que influenciou.
O seu pai dizia que não tinha a ver com isso diretamente.
Nele não sei, porque ele de facto estudava muitos assuntos. Ele até ligava mais a esta questão da parte do tráfico, porque tinha sido ministro da Justiça.
Normalmente este é mais um tema das jotas do que das figuras históricas dos partidos.
Ele sempre foi um homem à frente do seu tempo. Não era um homem da idade que tinha. Era jovem de espírito apesar do ar formal. Era um homem com um espírito muito aberto e tolerante. E como foi ministro da Justiça, e houve situações terríveis em relação a traficantes e a consumidores, eu penso que o que ele terá dito tem a ver com isso. Ele achava que, nesses casos, a pena de prisão não reabilitava ninguém, muito pelo contrário. Na altura as prisões nessa área funcionavam muito como escolas de crime. E teve uma posição pioneira, quando considerou o toxicodependente um doente, e não alguém que se devia perseguir. Penso que foi até antes da morte da minha irmã, que foi uma situação muito dramática para toda a família. E deixou marcas, obviamente. Se pensar bem, apesar de muitos anos depois, é óbvio que me interessei por estes assuntos por ter vivido uma história familiar tão dramática.
Acha possível que no tempo mais próximo se consiga dar o passo da legalização em Portugal?
Acho. Acho que não estamos muito longe, assim haja vontade política.
E há? Ao longo dos anos debate-se, mas não há decisão legislativa. O que falta?
Agora já aprovámos o uso de canábis para fins medicinais. Completamente diferente e houve, de facto uma tentativa, do partido proponente, o BE, de que se avançasse para a legalização do uso recreativo de substâncias. Agora há substâncias e substâncias, não vamos fazer de conta de que é tudo igual. Não é tudo igual. Ainda não conseguimos dar esse passo e é um caminho que se está a fazer em Portugal, onde vamos muitas vezes a reboque do que se passa. E, muitas vezes, estas legislações beneficiam muito quando não somos os primeiros.
Próximo é o quê? Próxima legislatura?
Sim. Na minha opinião acho que sim. Vale o que vale, não estou a falar do partido. É da minha perceção e opinião. Tendo feito o caminho da discussão no Parlamento, acho que temos base de trabalho e há uma abertura, não para a legalização de todas as substâncias, mas de algumas, para uso recreativo.
Estamos a caminhar para o fim da entrevista… e férias? Com quem nunca iria de férias e para onde nunca iria?
Ai, com tanta gente. Não me lembro de uma pessoa só. Olhe… as minhas férias grandes são sempre aqui em Portugal. Com quem nunca iria… ai meu Deus, isto é muito complicado. Com o Trump. Veja lá o meu grau de antipatia com o senhor, que acho que nem me cruzando com ele.
E para onde nunca iria?
Eu que adoro viajar… Olhe também não ia para os Estados Unidos agora. Não me interessa. Seriam umas férias muito aborrecidas, não poder fumar, não poder… sei lá. Acho que era tudo muito antipático.