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(Imagem ilustrativa) O surto de legionella em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim provocou 88 infeções e 15 vítimas mortais
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(Imagem ilustrativa) O surto de legionella em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim provocou 88 infeções e 15 vítimas mortais

Wikimedia Commons

(Imagem ilustrativa) O surto de legionella em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim provocou 88 infeções e 15 vítimas mortais

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Oito meses depois, surto de legionella no Grande Porto continua sem culpados. Advogados vão levar o caso à Provedora de Justiça

Advogados criticam inércia das autoridades no surto que matou 15 pessoas em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim. Se foco da infeção não for detetado, querem que o Estado seja responsabilizado.

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Passaram oito meses desde que o Ministério Público abriu um inquérito para apurar as causas do surto de legionella que atingiu Matosinhos, Póvoa de Varzim e Vila do Conde e que teve como balanço final 88 infetados e 15 vítimas mortais (apenas nove contabilizadas como tendo sido provocadas pela doença dos legionários). E oito meses depois, ainda não há culpados encontrados. As vítimas e familiares queixam-se da falta de apoio e da demora das autoridades de saúde na investigação do foco de origem da infeção e acreditam que “a culpa vai morrer solteira”.

Enquanto ainda se aguardam as conclusões do inquérito, um grupo de advogados que representa cinco vítimas neste caso —  duas das quais vítimas mortais — decidiu que vai expor a situação à Provedora da Justiça, entendendo que, caso não seja encontrada a fonte que esteve na origem deste surto, o Estado deve ser responsabilizado.

No entender da equipa liderada pelo advogado António Barreto Archer, as autoridades de saúde demoraram demasiado tempo a agir para conter o surto nos três concelhos do Grande Porto, sobretudo no que diz respeito à tomada de decisão para se encerrar preventivamente as torres de refrigeração das estruturas que poderiam constituir o foco de infeção. “Estas investigações têm de ser feitas logo na hora. As autoridades de saúde não investigaram profundamente”, explica o advogado ao Observador, acrescentando que os esforços concentrados no combate à pandemia de Covid-19 podem ter dificultado a tarefa de identificar a origem deste surto e vieram colocar a descoberto a falta de meios e técnicos de saúde pública nos concelhos.

Não havendo um responsável identificado, acrescenta, é o Estado quem deve ser responsabilizado, visto tratar-se de um assunto de saúde pública: “Entendemos que poderá ser o Estado o responsável pela omissão na investigação devida deste surto e pela falta de meios e falta de eficiência que teve na investigação técnica”, defende o advogado.

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Ouvidas no Parlamento no início deste ano, as várias entidades envolvidas no caso, desde a Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte aos hospitais dos concelhos, já deram alguns esclarecimentos sobre o que foi feito e quando foi feito, mas ao contrário de outros surtos de legionella que ocorreram em Portugal — como é o de Vila Franca de Xira, em 2014, e do Hospital Francisco Xavier, em 2017 –, neste caso ainda não foi possível identificar a fonte de origem do surto e, por isso, continua sem existir um culpado atribuído que possa ser responsabilizado.

Renata viu o pai às portas da morte: “Nunca ninguém se interessou por saber o que é que se passava”

Com 73 anos, José Silva, residente na Póvoa de Varzim, tem conseguido superar vários problemas de saúde nos últimos anos, incluindo a doença dos legionários. A sua história é contada pela filha, Renata Martins, que tem tentado perceber o que pode fazer para encontrar respostas para o que aconteceu ao seu pai. Tudo começou a 24 de outubro de 2020, quando José Silva se deslocou de metro da Póvoa de Varzim até ao Hospital de São João, no Porto, para fazer um teste à Covid-19, uma vez que ia ser submetido a uma cirurgia e este era um procedimento obrigatório. “Ia ser internado no dia 26 para ser operado no dia 27, o que aconteceu e correu perfeitamente bem, sem complicações”, conta Renata Martins ao Observador.

Mas nem tudo correu bem nos dias seguintes. No dia em que ia ter alta, José começou a ter febre. Dois dias depois teve de ser induzido em coma e foi-lhe diagnosticada legionella. “Esteve por uma unha negra, mas conseguiu recuperar”, conta Renata Martins. José chegou a perder a mobilidade por causa do coma e, apesar de algumas melhorias, ainda sente as sequelas da doença. Já Renata recorda as noites em branco enquanto esperava que o pai conseguisse acordar. A única deslocação que diz não ter sido habitual naqueles dias foi a viagem de metro que o pai fez da Póvoa até ao hospital. “Lógico que se foi de metro passou na zona da suposta exposição”, explica.

Renata Martins diz ter sido contactada pela Direção-Geral de Saúde (DGS) quando José ainda estava internado, para especificar ao detalhe os passos que o pai tinha dado nos dias anteriores. “Perguntaram se passou por lagos, por rios, que tipo de água tinha em casa, etc.”, enumera. Foi o primeiro e único telefonema que diz ter recebido de qualquer entidade sobre este caso. “Foi um único telefonema e nunca mais tive notícias. Nem deles nem de ninguém. Nem câmaras, nem juntas de freguesia…nada. Nunca ninguém se interessou por saber o que é que se passava. Não foi só o caso do meu pai, foram vários. Devíamos ter tido apoio, nem que fosse a nível psicológico”, lamenta.

Para Renata Martins as autoridades de saúde demoraram a intervir, sobretudo na intervenção nas empresas que poderiam ser o foco de infeção. Tudo o que foi sabendo, acrescenta, vinha da comunicação social. “Sentimo-nos abandonados. Parecemos fantasmas aqui. Não houve rapidez, não houve nada e a culpa vai morrer solteira. Houve pessoas que morreram e houve pessoas que ficaram no estado em que o meu pai está”, reforça, sublinhando que tentou juntar várias vítimas e familiares para agirem e exigirem mais respostas, mas muitos acharam que era uma “causa perdida”.

“Aqui o que está em questão não é dinheiro. Não quero nenhum dinheiro para mim. Se chegássemos a um acordo ou se houvesse qualquer tipo de indemnização era para dar melhor qualidade de vida ao meu pai, porque ele vai ter limitações”, garante. Apesar de ter tentado obter mais respostas, Renata Martins já não acredita que se encontre um responsável e se resolva o caso. “Não me acredito”, reitera.

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(Imagem ilustrativa) Ainda não foi detetado o foco de infeção que esteve na origem deste surto

AFP via Getty Images

Luís esteve 13 dias internado: “Morreu gente, muita gente foi afetada e ninguém é culpado”

Luís Mendanha, de 48 anos, foi dos infetados mais jovens deste surto. E também ele passou momentos complicados devido à legionella. “Como apanhei isto eu não sei”, refere logo de início ao Observador. A 2 de novembro de 2020 começou a sentir falta de ar, mas pensou “que era uma coisa normal, visto que era inverno e tinha apanhado um pouco de frio”. No dia seguinte surgiram as dores de costas. Na terça-feira, dia 4, começou a febre. “Pensei logo que estava com Covid-19”, sugere. Ligou para a Linha SNS24, fez o teste no Hospital da Póvoa e regressou a casa para aguardar pelo resultado. “Na sexta-feira às 10h da manhã recebo o resultado do teste e deu negativo. Aí já estou a 41,5º de febre e já não aguento mais. Liguei para a ambulância e fui para o hospital. A partir daí foi exames e mais exames. Ninguém sabia o que tinha“, explica.

À noite, quando estava nas urgências, Luís foi informado de que tinha pneumonia provocada por legionella. “Nunca tinha ouvido falar na legionella”, confessa, acrescentando que pior aconteceu depois: “Mal a médica acabou de me dizer isso eu caí para o lado. Tive a primeira paragem. Fui reanimado e depois a partir daí não me lembro de mais nada”. Na manhã seguinte, Luís acordou “todo entubado”. Esteve internado durante 13 dias.

À semelhança do que aconteceu com Renata Martins, Luís Mendanha diz que também foi contactado uma vez pelas autoridades de saúde para especificar os locais por onde passou nos dias anteriores. “Eu disse que não sabia onde é que tinha apanhado isto. Foi a única vez que me ligaram, ainda estava internado. Desde que vim para casa nunca mais ninguém me perguntou nada, nunca mais quiseram saber de nada“, lamenta, enquanto mostra os registos médicos da altura.

"Aconteceu tudo em ano de pandemia e era tudo Covid, Covid e isto ficou esquecido. Mas isto não é brincadeira. Morreu gente, muita gente ficou afetada e ninguém é culpado. Chego a pensar que agora a pessoa não tem direito a viver"
Luís Mendanha, vítima de legionella

Além do tempo em que esteve internado, o período de recuperação também foi um desafio: Luís não conseguia subir escadas, tinha falta de ar e precisava de bombas de oxigénio. “Queria respirar e não conseguia. Procurava ar por todos os lados. É muito complicado. Agora sinto-me melhor, mas ainda me canso muito e isto deixou marcas”, reforça, acrescentando que tinha uma consulta marcada para saber como estava a correr a recuperação, mas foi adiada logo após voltar para casa e nunca mais foi contactado para a reagendar. “Nunca mais me perguntaram nada, nunca mais quiseram saber nada”, volta a lamentar. Luís chegou a contactar um advogado, mas confessa ter perdido a esperança de que se vá encontrar um responsável.

“Aconteceu tudo em ano de pandemia e era tudo Covid, Covid e isto ficou esquecido. Mas isto não é brincadeira. Morreu gente, muita gente foi afetada e ninguém é culpado. Chego a pensar que agora a pessoa não tem direito a viver”, desabafa, acrescentando que já não tem esperança num desfecho diferente. “Não vai dar em nada. Quem morreu, morreu, quem ficou com as sequelas ficou com as sequelas e não vai dar em nada”.

Advogados criticam “inércia das autoridades” e defendem que Estado deve ser responsabilizado

Apesar da desmotivação generalizada das vítimas e familiares de vítimas deste surto de legionella, um conjunto de advogados garante que vai usar todos os meios legais para chegar a um responsável. A equipa liderada por António Barreto Archer representa cinco clientes e foi constituída assistente no processo de inquérito, ao abrigo da Lei da Ação Popular — por estar em causa um problema de saúde pública. “A investigação [do MP] está a demorar algum tempo e temos receio que o resultado seja inconclusivo, porque tudo isto tinha de ser investigado logo na altura”, explica o advogado ao Observador.

Os advogados criticam a inércia das autoridades de saúde neste caso, comparando com o que aconteceu em Vila Franca de Xira. “Aqui as autoridades de saúde não investigaram profundamente, porque estas investigações têm de ser feitas logo na hora para apanhar a origem do surto, antes que haja mais pessoas doentes. Esta doença tem uma taxa de mortalidade que chega aos 15% e, portanto, é uma doença muito mais grave que a Covid-19 em termos de mortalidade”, acrescenta o jurista, sublinhando ainda: “Entendemos que a investigação não é fácil, mas se as investigações técnicas não foram feitas devidamente logo na altura, agora já é tarde para conseguir identificar a origem do surto”.

A equipa acredita que as autoridades de saúde “estavam completamente orientadas e concentradas na Covid-19 e acabaram por não ter meios suficientes para utilizar na investigação que tinha de ser logo feita para travar o surto de imediato e para esclarecer a origem”. Uma maior demora numa investigação deste tipo, referem, leva a dois grandes problemas: um maior período de tempo para o surto se alastrar e afetar mais pessoas e uma maior dificuldade em encontrar o foco de infeção e chegar aos responsáveis.

"Se se deixar passar muito tempo, depois já não é possível detetar nada. Uma empresa que não tenha feito as monitorizações necessárias, e que se suspeite que o surto até possa ter origem nas suas instalações, chama logo alguém para fazer a limpeza. Fazendo-se a limpeza, elimina-se a legionella e já não é possível estabelecer a conexão ou nexo de causalidade entre as pessoas que ficaram doentes e aquela estirpe que ali existia"
António Barreto Archer, advogado

Os advogados contam que houve empresas que poderiam constituir o foco da infeção que tiveram margem temporal para limparem as suas instalações e, desta forma, apagarem vestígios de legionella das suas torres de refrigeração. De acordo com os dados fornecidos pelas várias entidades ouvidas no Parlamento no início deste ano, entre o momento em que foi detetado o primeiro caso de legionella (29 de outubro) e o momento em que as autoridades de saúde começaram a inspecionar as várias empresas dos três concelhos (a partir do dia 6 de novembro) passaram oito dias.

“Se se deixar passar muito tempo, depois já não é possível detetar nada. Uma empresa que não tenha feito as monitorizações necessárias ou que não tenha tido o cuidado devido e que se suspeite que até possa ter origem nas suas instalações chama logo alguém para fazer a limpeza e, fazendo-se a limpeza, elimina-se a legionella e já não é possível estabelecer a conexão ou nexo de causalidade entre as pessoas que ficaram doentes e aquela estirpe que ali existia”, explica o advogado.

António Barreto Archer sublinha que nos casos de surtos de legionella é essencial existir uma investigação rápida para se identificar a fonte da infeção, não só para se evitar mais infetados e vítimas mortais, mas também pela “possibilidade de as vítimas poderem, mais tarde, a responsabilizar civilmente as pessoas, empresas, entidades, edifícios públicos ou outras entidades que tenham esses equipamentos e que tenham provocado essa contaminação”. “Essa possibilidade depende da identificação do foco e tem de ser feita muito rapidamente após o conhecimento dos primeiros casos. E, para isso, é preciso fazer uma profunda investigação sobre o sítio onde as vítimas andaram”, refere. No fundo, é essencial o rastreio (rápido) e a definição de um mapa com os pontos em comum por onde todos os afetados passaram ou estiveram.

Os advogados apontam ainda para outra dificuldade sentida: houve casos de vítimas e respetivas famílias que nunca terão sido contactadas, nem mesmo para o rastreio e mapeamento do surto. “Uma das medidas essenciais que é preciso fazer numa investigação deste tipo é contactar a família da pessoa que ficou doente a perguntar onde é que esteve, por onde andou e onde é que se deslocou nos dez dias anteriores ao diagnóstico. É uma pergunta fundamental e é relativamente fácil reconstituir”, argumenta António Barreto Archer, acrescentando que o facto de “isto não ter sido feito em todos os casos já é um indício que não foram utilizados os meios necessários para se investigar devidamente”.

Sobre o inquérito levado a cabo pelo Ministério Público no DIAP do Porto, os advogados sustentam que esta investigação terá de incidir sobre aquilo que foi feito logo na altura, uma vez que “já não é possível fazer mais diligências, pelo menos em termos de recolha de amostras”. A equipa acredita que o inquérito do MP possa ser inconclusivo, “não por culpa da investigação, mas por culpa das autoridades técnicas e de saúde, que não fizeram o trabalho de base de investigação logo na altura”.

Se a fonte de origem da infeção não for encontrada, os advogados defendem que o Estado deve ser responsabilizado neste caso, uma vez que se trata de uma questão de saúde pública. “Entendemos que este caso tem uma gravidade tal, porque contende com uma das funções essenciais do Estado, que é proteger a saúde e garantir a vida dos cidadãos. O Estado tem o dever de, quando se trata de uma matéria em que pode intervir, proteger a vida e a saúde das pessoas”, sublinha o advogado.

Já em abril deste ano a equipa de advogados defendia esta ideia: “Sendo um surto de legionella um problema de saúde pública cuja fonte, em regra, consegue ser rapidamente identificada através de um inquérito das autoridades de saúde competentes aos casos de infeção, uma vez que não tem potencial de contaminação a grandes distâncias e não se transmite de pessoa para pessoa, os danos sofridos pelas vítimas podem ser imputados, a título de responsabilidade civil ou penal, aos proprietários das redes, sistemas e equipamentos propícios à proliferação e disseminação da legionella, ou, em último caso, ao próprio Estado, caso a fonte do surto seja uma estrutura ou edifício público com torres de arrefecimento, como por exemplo um hospital, ou quando os serviços de saúde não sejam capazes de identificar a fonte do surto”.

"Muitas pessoas sentem-se abandonadas. Vemos aqui pessoas que ficaram abaladíssimas pela morte ou pela doença dos seus familiares. Sentem-se, de certa maneira, abandonadas pelas autoridades, porque muitas delas não receberam sequer uma palavra de conforto pelo falecimento dos seus familiares"
António Barreto Archer, advogado

Ainda antes de avançarem com esta hipótese, e uma vez que ainda se aguardam as conclusões do inquérito do MP, os advogados decidiram, como diligência prévia, que vão expor o caso à Provedora de Justiça, uma vez que consideram que “há, por parte do Estado e das autoridades de saúde omissões graves dos seus deveres de monitorização, de vigilância e de proteção dos cidadãos, de defesa da saúde pública”.

“Muitas pessoas sentem-se abandonadas. Vemos aqui pessoas que ficaram abaladíssimas pela morte ou pela doença dos seus familiares. Sentem-se, de certa maneira, abandonadas pelas autoridades, porque muitas delas não receberam sequer uma palavra de conforto pelo falecimento dos seus familiares”, acrescenta António Barreto Archer.

O que indicaram as autoridades de saúde sobre este surto?

A cronologia dos acontecimentos

O surto de legionella que atingiu Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim teve o seu primeiro caso identificado a 29 de outubro de 2020. Segundo a Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte, durante a audição parlamentar realizada a 13 de janeiro deste ano, a 2 de novembro — quatro dias depois do primeiro caso detetado — “a unidade de saúde pública da Póvoa de Varzim/Vila do Conde percebeu que tinha um aumento não previsto do número de casos” e no dia 3 de novembro o mesmo aconteceu em Matosinhos, onde a unidade de saúde pública “percebeu que tinha um aumento do número de casos que seriam associáveis a um surto”. Foi nesta altura que se determinou que se estaria perante um surto de legionella e não um caso pontual — a legionella transmite-se por via aérea (respiratória), através da inalação de gotículas de água (aerossóis) contaminadas com bactérias.

De acordo com Rui Capucho, médico do departamento de Saúde Pública da ARS Norte, logo nesses dois dias ambas as unidades de saúde pública iniciaram os inquéritos epidemiológicos dos doentes em causa — era necessário saber onde moram, quais foram os percursos que fizeram nos 14 dias anteriores ao início dos sintomas e, assim, desenhar um mapa de risco para fazer a investigação ambiental. Surgiram duas hipóteses iniciais: “Podia ter sido através da rede de distribuição de água de consumo humano, que é a mesma para ambas os concelhos, e/ou uma exposição ambiental de grande dimensão que pudesse ter infetado estas pessoas”.

Carlos Nunes, presidente da ARS Norte, indicou que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) foi contactado para se tentar perceber se houve algum tipo de interferência ambiental na disseminação da infeção. “Verificou-se que durante a depressão Bárbara, que ocorreu nos últimos dias de outubro, os ventos seguiram uma determinada direção, o que nos apontava para que a fonte daquele contágio estivesse realmente a norte de Matosinhos e se estivesse espalhado daquela maneira e com aquela intensidade”, explicou.

Nos dias seguintes foi iniciada a avaliação de potenciais fontes de infeção. De acordo com as explicações dadas pela ARS Norte, a primeira entidade a ser contactada, a 4 de novembro, foi a Indaqua, empresa privada de fornecimento de água sediada em Matosinhos. Mas as análises descartaram a hipótese de a origem do surto estar na água. Depois, seguiu-se um conjunto de visitas a às torres de refrigeração de várias empresas e entidades dos concelhos, incluindo uma visita à Petrogal e ao Mar Shopping (dia 6), à conserveira Ramirez (dia 9), à fábrica de lacticínios Longa Vida e à Lactogal (dia 11), sendo que a última visita terá sido feita no dia 19 de novembro.

“Com as visitas técnicas a estas torres e a toda esta indústria, foram feitas colheitas de amostras de água dos seus sistemas de refrigeração e estas colheitas foram todas analisadas no INSA [Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge], numa primeira fase por deteção de PCR — um teste mais rápido que nos diz se existe ou existiu bactéria nas respetivas torres”, explicou Rui Capucho. De todas as amostras analisadas, foi identificada a presença de legionella pneumófila em duas torres de refrigeração: na Longa Vida e na Ramirez.

De seguida, as autoridades de saúde determinaram, como medida cautelar, o encerramento das torres de refrigeração destas duas empresas, no dia 11 de novembro — 13 dias depois do primeiro caso detetado, oito dias após a identificação do surto e no mesmo dia em que o Ministério Público decidiu abrir um inquérito crime às causas do surto. “Todas estas análises depois são confirmadas do ponto de vista de exame cultural para ver se as bactérias são viáveis ou não. E depois é feita a devida genotipagem”, explicou ainda Rui Capucho.

Legionella. Torres de refrigeração de duas fábricas ficam suspensas em Matosinhos. Há 97 casos e 9 mortos

Carlos Nunes, da ARS Norte, informou, também em audiência na Assembleia da República, que depois do encerramento destas duas torres “dá-se um corte no aparecimento de casos” e que os que surgiram após esse encerramento estavam dentro do período de incubação da doença (14 dias), o que indica que poderiam estar perante a fonte de infeção. Mas, apesar de os resultados só terem dado positivo em dois casos, não há 100% certezas de que a bactéria não esteve presente noutros locais também inspecionados: “Não podemos dizer que as outras torres analisadas não pudessem ser a causa de infeção, até porque, quando souberam do facto, muitas delas utilizaram uma limpeza das suas próprias torres e, portanto, as análises feitas posteriormente poderiam já não ser efetivas”, admitiu Carlos Nunes.

As amostras conseguiram determinar o foco da infeção?

Depois das duas análises PCR positivas, foi feita uma análise cultural (mais detalhada) à bactéria encontrada nas torres da Longa Vida e na Ramirez. “Do ponto de vista cultural só foi identificada legionella pneumófila nas torres da Longa Vida”, explicou Rui Capucho. Ou seja, apenas nas torres de arrefecimento desta empresa verificou-se a existência atual de bactéria viável e suscetível de causar infeção e que precisava de um estudo mais exaustivo para determinar se, efetivamente, seria esta a fonte de infeção.

“Só em 43% dos casos de legionella há uma associação entre o ambiente e a fonte de infeção”. Desta percentagem, “em apenas 20% é possível encontrar uma associação de nexo de causalidade, isto é, é possível que a infeção tenha uma fonte de infeção comum identificada claramente. E apenas 9% desta associação é direta entre a parte humana e a parte ambiental“
Fernando Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge

A ARS Norte confirmou na altura, em comunicado, que “na sequência do conhecimento do resultado cultural da colheita efetuada para pesquisa de Legionella pneumophila numa torre de arrefecimento da empresa Ramirez, a Autoridade de Saúde da Unidade Local de Saúde de Matosinhos autorizou o funcionamento da referida torre, que já tinha sido submetida, entretanto, a diversos processos de higienização e purga, tendo ainda sido instalado um dispositivo de desinfeção automático”.

Já relativamente à amostra da Longa Vida, as análises posteriores e mais detalhadas não conseguiram, até agora, obter nexo de causalidade entre as torres de refrigeração como fonte de infeção para os doentes, uma vez que “nas genotipagens possíveis ainda não foi detetada essa atividade”. Ou seja, foram encontrados vários serótipos de legionella recolhido na colheita feita nas torres, mas este serótipo não é igual ao que foi encontrado nas amostras dos doentes — o que faz com que não se consiga provar que a bactéria tem as mesmas características genéticas da fonte de infeção.

Fernando Almeida, presidente do conselho diretivo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), explicou que, de acordo com os estudos feitos em todo o mundo, “só em 43% dos casos de legionella há uma associação entre o ambiente e a fonte de infeção”. Desta percentagem, “em apenas 20% é possível encontrar uma associação de nexo de causalidade, isto é, é possível que a infeção tenha uma fonte de infeção comum identificada claramente. E apenas 9% desta associação é direta entre a parte humana e a parte ambiental“, como o que aconteceu nos surtos de Vila Franca de Xira e do Hospital Francisco Xavier, “em que foi possível detetar que a legionella estava nas torres de arrefecimento e a legionella que foi encontrada nos humanos era 99,99% de similitude em relação à mesma legionella”.

De acordo com o balanço oficial prestado em audição parlamentar pela ARS Norte, o surto de legionella provocou 88 infetados e 15 vítimas mortais. Mais tarde, em a Direção-Geral da Saúde (DGS) informou que destes 15 óbitos, apenas nove foram considerados como vítimas de legionella. Dos restantes, “dois foram atribuíveis à infeção por SARS-CoV-2 e os outros a outros patologias graves e em fase avançada”. A 13 de janeiro a ARS Norte informou ainda que o surto estava dado com extinto.

Surto de Legionella no Grande Porto dado como extinto com 88 casos e 15 mortos

A investigação demorou demasiado tempo? E os meios técnicos, em plena pandemia, foram suficientes?

Se para advogados, vítimas e familiares houve uma grande demora para se conter o surto, sobretudo na decisão de encerrar as torres de refrigeração suspeitas, para algumas entidades ouvidas no Parlamento no início do ano as decisões foram tomadas dentro de um período normal. Seguindo os dados fornecidos pela ARS Norte, as autoridades demoraram quatro/cinco dias para identificar o surto (o primeiro caso foi a 29 de outubro, mas só nos dias 2 e 3 de novembro é que foi determinado tratar-se de um surto de legionella), oito dias desde o primeiro caso detetado até iniciarem no terreno as inspeções às torres de refrigeração (que começaram no dia 6 de novembro) e 13 dias até encerrarem preventivamente as duas torres suspeitas (11 de novembro).

Rui Taveira Gomes, presidente do conselho de administração da Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM), referiu que, dada a metodologia adotada “oito dias entre a identificação do surto e o encerramento das torres é um tempo razoável”. Contudo, destaca, uma intervenção mais cedo “era o desejável”. “O ideal era fechar tudo no primeiro dia nos sítios de risco. Até fazer as colheitas, encerrar tudo e depois abrir consoante o resultado e a segurança que estivesse nessa estratégia”, referiu em audição parlamentar.

A falta de meios técnicos foi também apontada como prejudicial na resolução deste surto, uma vez que o combate à pandemia de Covid-19 estaria a alocar todos os esforços. Carlos Nunes, da ARS Norte, referiu: “Este surto de legionella ocorreu exatamente no mesmo período em que a pandemia de Covid-19 teve mais impacto na região Norte. Só com o grande esforço de todos os profissionais de saúde pública é que foi possível manter este trabalho que foi necessário, importante e eficaz para as duas situações epidemiológicas que tínhamos na altura”.

Já Taveira Gomes sublinhou que “a situação foi resolvida em tempo adequado e só não deixou à vista uma insuficiência grave de recursos humanos porque eles estavam substituídos com muitas pessoas de outras áreas a assumir uma boa parte das tarefas que são menos exigentes em termos de especificações técnicas e científicas na unidade de saúde pública”.

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