Desconhecido da generalidade dos portugueses — mas do qual se diz ter enorme importância —, o decreto-lei da execução orçamental abandonou o obscurantismo a que normalmente é remetido. Ganhou, para já, nova vida depois de Marques Mendes, no habitual espaço de comentário da SIC, ter sugerido que o Governo pode estar a ocultar informação ao Parlamento. Por que razão demora, afinal, tanto tempo o Ministério das Finanças a publicar o diploma?
O decreto-lei, que estabelece anualmente as regras concretas para o Orçamento do Estado — definindo, nomeadamente, como é que podem ser feitos os gastos, como é que a execução da despesa vai ser acompanhada e as alterações às cativações —, é publicado invariavelmente com atraso. Mas, nos anos da pandemia, o documento, que Marcelo Rebelo de Sousa já disse ser “fundamental”, não deu sequer sinais de vida. Será que o diploma feito para o Orçamento do Estado de 2019 ainda estará em vigor? Nem isso é consensual.
Situação que “não é razoável” ou apenas um pouco mais do mesmo?
O que é que justifica que, em agosto, oito meses depois da publicação do Orçamento do Estado, ainda esteja o Ministério das Finanças a escrever as regras que enquadram esse mesmo orçamento? Paulo Trigo Pereira, professor de Finanças do ISEG e ex-deputado do PS, não tem dúvidas de que a situação “não é razoável”.
Em 2020, ainda consegue perceber que “tenha havido alguma dificuldade em operacionalizar o decreto-lei de execução orçamental”, por todas as condicionantes que o primeiro ano da pandemia teve e que obrigaram a “uma série de medidas discricionárias”. Mas para 2021, considera que “já devia ter sido aprovado”. “Em 2021 já não estamos a viver, em termos da execução orçamental e da governação do país, uma situação de emergência como vivemos em 2020”.
“Obviamente justificações pode haver muitas, mas penso que não é razoável não haver um decreto-lei de execução orçamental já aprovado”, afirma Paulo Trigo Pereira.
Apesar de considerar que há algumas “razões válidas”, há, no entanto, “outras que não são”. Por um lado, percebe que haja “incerteza na gestão de alguns apoios sociais e de algumas medidas extraordinárias” e “uma carência de recursos humanos na Direção-Geral do Orçamento”, só que esses fatores “não se sobrepõem a outras razões” — o Governo procura ter “maior liberdade de gestão orçamental”, esquivando-se a uma maior fiscalização do Parlamento. E essa carta branca, ainda que “dentro dos limites da Lei de Enquadramento Orçamental”, não é válida para Paulo Trigo Pereira.
A aprovação deste documento é, por isso, vista pelo ex-deputado como “fundamental” para a “transparência da governação”. Caso contrário, “o orçamento aprovado dá uma margem de manobra, em termos de execução, muitíssimo elevada ao Governo”. O ex-deputado recorda que, “numa democracia parlamentar, é o Parlamento que aprova o orçamento e o Governo executa, mas executa de acordo com regras, que estão inscritas no decreto-lei de execução orçamental — o Governo não executa de forma discricionária”.
Joaquim Miranda Sarmento vai ainda mais longe. O presidente do Conselho Estratégico Nacional do PSD e professor de Finanças do ISEG entende que esta situação “é reveladora de algo que se tem vindo a verificar desde 2016”, mas que “agora se verifica ainda mais”, com a substituição de Mário Centeno por João Leão: “É a total discricionariedade do Ministério das Finanças na gestão orçamental, e o total poder que o ministro das Finanças tem de cativar e descativar, independentemente das regras estabelecidas — e a falta de transparência que depois decorre desse poder arbitrário do ministro das Finanças, que não presta contas nem ao Parlamento nem à sociedade”.
Orçamento do Estado para 2021 publicado em Diário da República
Já Fernando Rocha Andrade, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e ex-deputado do PS, desvaloriza esta questão, porque pouco muda: “Os decretos-lei de execução orçamental de cada ano são uns 90% ou mais iguais aos do ano anterior”. Apesar de não saber o que justifica esse atraso, o especialista em direito económico entende que “quando é o mesmo Governo, não havendo situações novas, basicamente as mesmas normas de procedimento que servem para um ano tendencialmente servem para o ano seguinte”.
Ou seja, Rocha Andrade admite que o Governo “não tenha visto necessidade de alterar o decreto-lei e, em vez de aprovar um decreto-lei igual ao do ano anterior, simplesmente prorrogou o que havia”.
Mas a pandemia, com tudo o que trouxe de diferente, não seria razão suficiente para essas alterações? O ex-secretário de Estado recorda que, “no meio de toda aquela legislação especial toda sobre a Covid, houve disposições especiais de execução orçamental” por parte do Governo. “Podia tê-lo feito por alteração do Decreto-Lei de execução orçamental, mas também pode fazê-lo em legislação especial”. Outro exemplo dado por Rocha Andrade é o da legislação aprovada e promulgada no final de junho no âmbito da “bazuca” europeia.
O Governo está a atuar à margem da lei?
As teses divergem ainda sobre o que é que está em vigor e sobre a validade desses instrumentos legais. “Não sou jurista e muito menos constitucionalista para me pronunciar sobre se é ou não constitucional, mas que está a violar a Lei de Enquadramento Orçamental parece-me claro — e isso, enquanto professor de Finanças, sinto-me à vontade para dizer”, afirma Joaquim Miranda Sarmento.
O que é que decorre, então, dessa ilegalidade? “Na prática, nada, porque não há nenhuma sanção prevista na própria lei. A lei estabelece um prazo para aprovação e publicação do decreto-lei de execução orçamental, mas depois não estabelece nenhuma sanção”. Miranda Sarmento entende que a penalização “tem de ser política, na medida em que este é um Governo em que a gestão orçamental é cada vez menos transparente, cada vez mais arbitrária”.
Já Paulo Trigo Pereira entende que “não é muito claro que o decreto-lei de execução orçamental de 2019 — que diz que produz efeitos até ser aprovado o de 2020 — continue em vigor em 2021”. E tem dúvidas sobre a questão da constitucionalidade: “O que a Constituição diz é que o Orçamento prevê receitas necessárias para cobrir as despesas e que a Lei define as regras da sua execução. Se interpretarmos de forma mais restritiva, este termo ‘lei’, como Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), ela existe, não há inconstitucionalidade. Mas se a interpretação for mais abrangente e incluirmos, além da LEO, também o decreto-lei de execução orçamental, então nesse caso pode considerar-se inconstitucional”.
Marcelo Rebelo de Sousa promete promulgar “rapidamente” Decreto de Execução Orçamental
Fernando Rocha Andrade sinaliza, no entanto, a existência de uma “norma que prorrogou o decreto-lei de execução orçamental” e que, por isso, o Governo ainda estará com o decreto-lei de 2019 em vigor. “Não creio que se trate de uma situação de inconstitucionalidade ou ilegalidade, porque existirá uma norma que prorrogou a vigência do decreto-lei de execução orçamental, primeiro para 2020, depois para 2021 — as tais circulares que são feitas, tanto quanto percebo, ao abrigo do decreto-lei de execução orçamental de 2019, que continua em vigor”.
Depois de vários anos em que houve sucessivos atrasos — incluindo em 2019, que demorou meio ano a ver a luz do dia —, no ano passado não chegou sequer a ser publicado. Para Fernando Rocha Andrade, esta situação “é inédita” pelo tempo que tem durado, mas também sublinha que “o atraso é uma constante” na legislação orçamental. “É uma característica da nossa legislação orçamental, em que o decreto-lei de execução orçamental nunca está em vigor no início do ano e, portanto, o decreto-lei do ano anterior vigora por vezes muitos meses. É inusual passar o ano inteiro sem decreto-lei, mas não vejo que seja problemático”.
“Como a regulamentação da execução orçamental é uma competência que a Constituição confere exclusivamente ao Governo, tenho as maiores dúvidas que se possa dizer que um decreto-lei de execução orçamental está sujeito à fiscalização da Assembleia da República, a não ser que lá houvesse matérias que não são de execução orçamental”, nota Rocha Andrade. O parlamento “não pode, em sede de apreciação parlamentar, alterar uma matéria que a Constituição confere em exclusivo ao Governo”.
“O Governo está, pelos vistos, satisfeito com as regras que vigoram desde 2019 e a margem de manobra que o decreto-lei de execução orçamental dá, dentro daquilo que o orçamento aprovado permite, é aquela que o Governo entende ter”. Ou seja, “o facto de estar a vigorar o decreto-lei de 2019 em vez de outro qualquer não dá, em tese, nem mais nem menos flexibilidade ao Governo. O Governo está a cumprir regras de 2019”.
Confrontado com mais este adiamento, o Ministério das Finanças, para já, não responde. No final de junho, fonte oficial do ministério disse ao Público que o diploma publicado há dois anos se mantinha adequado e que, como alternativa, o executivo tem “aprovado diplomas extraordinários que incluem a dimensão da execução orçamental”. Em todo o caso, adiantou que um novo decreto-lei estava já “em fase de conclusão” e que nas semanas seguintes seria discutido pelo Governo. Dois meses depois, no entanto, ainda não há novidades.
Documento “fundamental” para Marcelo
As grandes regras que balizam a execução orçamental “já estão definidas na lei de enquadramento orçamental”, mas depois “há uma série de pequenas regras importantes” que são concretizadas no decreto-lei de execução orçamental, explica Paulo Trigo Pereira.
Depois de o Orçamento do Estado ser aprovado, este diploma “vai esmiuçar como é que o Governo vai executar esse orçamento”. Além de indicações relacionadas com cativações de despesa, o decreto-lei permite, por exemplo, “saber se os saldos podem transitar ou não de um lado para o outro; se as dotações orçamentais — que há várias, e são especiais — podem ser afetas” a outras rubricas. “É aquilo que restringe, de certa maneira, o Governo, e também lhe dá liberdade, na execução do orçamento”.
O Presidente da República, que em 2019 considerou este decreto-lei como “uma peça fundamental” para a execução do orçamento, tem feito diversas referências a estes adiamentos. Nesse ano, logo que Marcelo Rebelo de Sousa recebeu o documento, em junho — com o maior atraso da primeira legislatura de António Costa —, prometeu “promulgá-lo rapidamente” para que entrasse em vigor ainda “na primeira metade do ano”.
Marcelo Rebelo de Sousa promete promulgar “rapidamente” Decreto de Execução Orçamental
“Durante meio ano, a execução orçamental foi feita sem necessidade de decreto de execução orçamental, o que revela uma subtileza e inteligência de gestão financeira grande”, notou então o Presidente da República.
Já este ano, a 21 de junho, Marcelo Rebelo de Sousa também deu nota de que o decreto-lei de execução orçamental ainda não tinha sido submetido a promulgação. A referência foi feita a propósito do documento que estabelece um regime excecional para a execução da despesa e a simplificação de procedimentos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Marcelo Rebelo de Sousa notou que esse enquadramento para o PRR “normalmente constará do decreto-lei de execução orçamental”, mas, “não querendo atrasar a execução dos programas a financiar pela União Europeia”, decidiu dar luz verde ao documento do Governo.