Índice
Índice
A palavra “rigor” foi usada e repetida ao longo da leitura de toda a decisão instrutória da Operação Marquês: não que, na perspetiva do juiz Ivo Rosa, tenha existido. Antes pelo contrário. “Rigor” veio sempre acompanhado por palavras como “falta”, “pouco” ou “insuficiente”. Mas “falta de rigor”, “pouco rigor” ou “rigor insuficiente” nem sequer foram as expressões mais duras usadas pelo magistrado nas duras críticas que fez à acusação do Ministério Público.
Ivo Rosa considerou a acusação de ser “inócua” e “delirante”. De recorrer à “fantasia” e à “especulação”. De ser “incoerente em termos cronológicos e lógicos”. E de ser “insuficiente”. O juiz de instrução criminal recebeu quatro mil páginas que acusavam 28 arguidos de um total de 189 crimes e transformou-a numa decisão instrutória de mais de seis mil páginas que leva a julgamento só cinco arguidos por um total de apenas 17 crimes. Quais foram as críticas mais devastadoras que Ivo Rosa fez ao Ministério Público e porquê? Ora leia.
A “fantasia” de que Sócrates recebeu dinheiro de Salgado para o ajudar na compra da Oi através da PT
Apenas com recurso à especulação e à fantasia será possível concluir nos termos enunciados pela acusação”.
Para o juiz Ivo Rosa, só com “recurso à especulação e à fantasia” é que se pode concluir que o antigo primeiro-ministro recebeu pagamentos de Ricardo Salgado, através do seu amigo empresário Carlos Santos Silva, em troca de apoio na aquisição da Oi no Brasil através da PT. Ou que José Sócrates tenha mantido conversações com autoridades brasileiras para facilitar esse negócio.
O magistrado faz esta crítica especificamente depois de considerar que não é possível “fazer uma ligação” entre dois eventos — e, “muito menos, ao arguido José Sócrates”: a operação de transferência de quatro milhões de euros, realizada no dia 19 de Junho de 2009, para a conta titulada da sociedade offshore Pinehill, de Santos Silva e o parecer favorável à fusão da Brasil Telecom com a Telemar/Oi mitido pela entidade brasileira SEAE, no dia 1 de Julho de 2009. “A conclusão a que chegou a acusação trata-se apenas de mera especulação projetada para fora do domínio da racionalidade prática, sem qualquer suporte em concretos argumentos e elementos de prova objetivos”, lê-se na decisão.
Os 189 crimes da Operação Marquês passaram a 17. Quem vai afinal julgamento e por quais?
Uma acusação “inócua” que não identifica de forma como Sócrates teria interferido no concurso do TGV
A acusação é completamente inócua, na medida em que não identifica qual a pessoa ou pessoas que, alegadamente foram instrumentalizadas pelo primeiro-ministro”.
O magistrado também não considerou que José Sócrates tivesse interferido no concurso do TGV para o troço do Poceirão-Caia. O juiz Ivo Rosa concluiu que o Ministério Público “limitou-se a referir, de um modo genérico, titulares do Ministério [das Obras Públicas Transportes e Comunicações] administradores da RAVE e REFER, membros do júri, terceiros, co-decisores e decisores” que o antigo primeiro-ministro teria determinado a “adotar opções procedimentais ilegais”. Mas a acusação não identifica “uma única pessoa em concreto”, afirma.
O magistrado diz que a “falta de rigor da acusação” revela-se igualmente “no modo como imputa” os crimes relacionados com o concurso do TGV a Sócrates. Isto porque “o seu caráter vago e meramente conclusivo” não permite determinar que “ato ou atos foram praticados” pelo ex-primeiro-ministro.
O “rigor” que foi “insuficiente” para provar o crime de corrupção (que caiu) ligado ao Grupo Lena
A descrição da matéria de facto constante da acusação, quanto a este segmento, não prima pelo rigor necessário para que, com base nela — nos factos concretos, objetivos e precisos — se extraiam as necessárias consequências jurídicas”.
Outra das críticas surge para explicar que, no entender do magistrado, não houve nenhuma obra adjudicada ilicitamente ao Grupo Lena. Para haver rigor, era “exigível” que o Ministério Público indicasse, “de modo expresso, claro e inequívoco”, haver uma listagem, por exemplo, dos concursos públicos e das obras que foram adjudicadas ao Grupo Lena em detrimento de outros grupos e sociedades do mesmo sector de atividade, das sociedades que foram preteridas e em que concursos públicos, mediante a intervenção de Sócrates. Mais: quais os concursos públicos em que antigo primeiro-ministro tivesse tido intervenção direta ou indireta.
Assim, para o juiz Ivo Rosa, “uma alegação com um conteúdo tão genérico” e subjetivo “é manifestamente insuficiente para sustentar qualquer juízo de indiciação”.
Uma “total incoerência” cronológica de como Sócrates não podia saber que Grupo Lena estava a negociar na Venezuela
Deste modo, para além da ausência de elementos de prova, a versão da acusação mostra-se incoerente, quer em termos cronológicos, quer em termos lógicos”.
Sobre favorecimento do grupo Lena na Venezuela por Santos Silva e José Sócrates, o juiz Ivo Rosa entendeu que “a sequência cronológica” do Ministério Público é de “uma total incoerência”. Para o magistrado, nada indicia que o antigo primeiro-ministro tivesse conhecimento antecipado dos contratos que o Grupo Lena estava a negociar naquele país — a fim de beneficiar o Grupo, como afirma a acusação.
Ivo Rosa não “compreende” como é que Sócrates, mesmo sendo primeiro-ministro, podia “saber antecipadamente dos planos e projetos de um governo de outro país, planos esses que só meses mais tarde vieram a ser anunciados“.
A “falta de rigor” do MP ao atribuir duas razões para um alegado pagamento feito por Salgado a Zeinal Bava
Verifica-se, uma vez mais, falta de rigor e de coerência da acusação, na medida em que o Ministério Público apresenta duas razões para o mesmo pagamento e com origem em dois distintos acordos entre os arguidos em causa”.
O juiz Ivo Rosa apontou também “falta de rigor” no que diz respeito aos alegados pagamentos feitos pelos arguidos Ricardo Salgado a Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT. O magistrado foca-se em particular no pagamento de 8,5 milhões de euros que terá sido feito no início de 2011. Isto porque, segundo a decisão instrutória, o Ministério Público “apresenta duas razões para o mesmo pagamento e com origem em dois distintos acordos entre os arguidos em causa”.
Operação Marquês. Leia aqui as 6.728 páginas da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa
Segundo explica Ivo Rosa, num primeiro momento, a acusação alega que esse pagamento se destinou a “compensar” Zeinal Bava “pela sua atuação em favor dos interesses do BES nos negócios da venda da participação na Vivo e na aquisição de uma participação no Grupo Telemar/Oi”. No entanto, noutro momento, é dito que o pagamento foi uma contrapartida pela atuação de Bava “no âmbito das aplicações de tesouraria da PT junto do BES”.
A “total falta de coerência” a afirmar que Sócrates escolheu o Grupo Lena para comitivas internacionais de empresas
Quanto a esta afirmação, constata-se, uma vez mais, uma total falta de rigor e de coerência da acusação”.
A afirmação a que o juiz se refere é aquela que, na acusação, fala da alegada intervenção de José Sócrates em benefício do Grupo Lena, nomeadamente, na suposta escolha privilegiada do grupo para integrar comitivas internacionais de empresas. O magistrado entendeu que apenas é feita, pelo Ministério Público, uma única “referência vaga e abstrata, sem qualquer concretização factual” sobre estas suspeitas: a de uma viagem do antigo primeiro-ministro à Venezuela, de 12 e 15 de Maio de 2008.
Só que, quanto a esta viagem, “a acusação não imputa ao arguido José Sócrates qualquer intervenção no processo de escolha dos empresários que integraram a viagem em causa”, lê-se na decisão, que explica que “a inclusão do Grupo Lena na comitiva partiu da iniciativa do chefe de gabinete do ministro Mário Lino”.
O “pouco rigor e consistência” sobre a suposta influência de Sócrates na OPA da Sonae à PT
Cumpre dizer, ainda, que a própria acusação mostra pouco rigor e consistência“.
O juiz Ivo Rosa entendeu que, no que diz respeito à suposta influência de Sócrates na OPA da Sonae à PT, “a própria acusação mostra pouco rigor e consistência” já que “tanto diz que o sentido de voto da CGD se formou com base nas indicações do arguido José Sócrates, ou seja, do primeiro-ministro, como diz, logo no artigo seguinte, que esse sentido de voto foi tomado no seguimento de indicações do Governo”. “Ora, uma coisa é o primeiro-ministro enquanto membro do Governo e outra coisa é o Governo, constituído pelo primeiro- ministro, pelos ministros e pelos secretários de Estado, enquanto órgão de condução da política geral do país”.