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Spain. Portrait of the essayist, professor of literature and ex member of the Palestinian National Council Edward Said.
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Edward Said, académico e crítico literário palestino-americano, nasceu a 1 de novembro de 1953 e morreu a 24 de setembro de 2003, aos 67 anos

Cover/Getty Images

Edward Said, académico e crítico literário palestino-americano, nasceu a 1 de novembro de 1953 e morreu a 24 de setembro de 2003, aos 67 anos

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"Orientalismo". Quando a crítica literária transforma a política

Há uma nova edição de "Orientalismo", o clássico em que Edward Said aborda o discurso do Ocidente sobre o Oriente. Mas como é que o livro se tornou tão influente e que legado lhe reconhecemos hoje?

O êxito de Orientalismo (publicado originalmente em 1978) é, de certa forma, surpreendente. Edward Said é um extraordinário crítico literário, é certo, mas o objeto do seu estudo não parece estar à altura das suas capacidades. Outros críticos importantes, sejam Auerbach, Curtis ou, mais tarde, Steiner e Bloom confirmaram a sua importância com obras monumentais. Mimesis corre toda a história da literatura, da Bíbla e Homero até ao século XX, Bloom entreteve-se a definir o cânone da literatura ocidental e Steiner, no seu Depois de Babel, debruçou-se sobre a própria linguagem. Said, porém, dedicou-se a um tema marginal, aos livros que, no catálogo dos grandes génios, ocupam a prateleira mais datada dos fundos, como os retratos pinturescos de Chateaubriand e Flaubert, e que tem como grandes representantes Pierre Loti ou Galland, autores de quem não se pode dizer que a grande distância a que estão de Shakespeare ou Tolstoi é apenas geográfica.

Claro que um leitor de Orientalismo sabe que o livro é muito mais do que uma viagem pelas páginas oitocentistas como gravurinhas coloridas de sobas e marajás; no entanto, a dimensão que o Orientalismo ganhou, a sua importância histórica e política, existem porque Edward Said foi capaz de insuflar o tema e de o resgatar das minudências académicas.

O Orientalismo, tal como Said o compreende, é o discurso do Ocidente sobre o Oriente. Ora, este discurso tem relevância por várias razões. Em primeiro lugar, porque o discurso provoca uma forma de domínio que terá influência no próprio Oriente e ajuda a perpetrar uma espécie de colonização; depois, porque, como ele próprio explica, uma cultura só se pode definir rejeitando aquilo que não faz parte dela, o que faz do Oriente, com a sua exclusão do mundo Ocidental, um dos fundamentos da ideia de Ocidente; e, por fim, dado que o grosso do livro é dedicado a expor os grandes lugares-comuns da visão do Ocidente sobre o Oriente, isso faz dele uma espécie de livro-negro da literatura.

Estes três aspetos, conjugados, talvez ajudem a perceber, junto de outros elementos, o êxito do livro.

A capa da nova edição de “Orientalismo”, de Edward Said, pelas Edições 70

Edward Said transformou o Orientalismo num grande tema porque, ao olhar para ele de uma perspetiva geral, conseguiu reunir uma coleção de documentos sobre aquilo que o Ocidente rejeita, que não considera como seu, fazendo do livro uma aproximação negativa à ideia de Ocidente; ao mesmo tempo, a exploração das “representações”, para usar a linguagem de Said, dá uma certa originalidade ao livro. Haverá poucos exemplos de uma perspetiva tão alargada da literatura ocidental que a tratem, não a partir das suas grandezas, mas a partir das suas misérias. E neste aspeto, mesmo que se queixe de ter sido mal-compreendido e de ser acusado de estar contra o Ocidente, a verdade é que Said soube encontrar o tom certo. Como ele próprio explica, a manutenção de um discurso opressivo e com tendência para saturar os oprimidos não seria possível sem uma prodigiosa inventividade dos génios que navegam dentro deste discurso. Ora, esta premissa evita que Said, mesmo quando está contra o discurso orientalista, menospreze os seus autores. O que é invulgar no livro é a capacidade que Said tem de admirar o génio daqueles que perpetuam o discurso orientalista. A curiosa interpretação que Said faz do “campo epistemológico” de Foucault, não fazendo dos grandes-autores porta-vozes do paradigma mas renovadores desse mesmo paradigma impede o livro de cair num simplismo revanchista e torna as suas análises dos grandes escritores sempre interessantes.

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Nada disto, porém, chegaria para fazer do livro um êxito. Nem uma espécie de desmascarar das grandes ideias coletivas, que teria certo eco nos ambientes universitários e levou também ao aparecimento de A invenção da Tradição, de Hobsbawm, é razão suficiente para que Orientalismos e tenha tornado a grande pérola literária da esquerda americana contemporânea.

A verdade é que o livro surge num contexto específico que o torna politicamente muito mais significativo do que qualquer outro do mesmo género. Quando Orientalismo é publicado os Estados Unidos recebem os últimos estilhaços da arrastada saída do Vietname e estão prestes a entrar na primeira Guerra do Afeganistão. O eixo da política externa está, lentamente, a passar das preocupações russas para as preocupações com o Médio-Oriente, Médio-Oriente esse que assume um papel de especial relevo no livro de Said.

A tradição intelectual de Said é, ainda, aquela que olha para a classe ou para a representação em grupo como uma forma de controlar a identidade. O orientalismo é, assim, uma prisão, da mesma maneira que a condição de mulher seria, para Simone de Beauvoir, um impedimento a olhar para as mulheres como indivíduos.

É verdade que Edward Said cavalgou a coincidência – não deixa de ser significativo, aliás, que em 2003 escreva um longo prefácio ao livro, de forte teor político – e não tentou sequer conter as apresentações do livro como a espécie de denúncia antes de tempo à política externa Americana. É o tempo em que Said e Chomsky se apresentam como os paladinos da má consciência americana, que encabeçam a guerra intelectual contra Bush e os seus especialistas no mundo árabe e em que o envolvimento político concreto é de facto mais forte. Seria injusto, porém, olhar para esta atitude como a de um qualquer oportunismo político. A verdade é que o livro de Said sempre foi político. Embora não seja a mais sólida das passagens (até porque o ambiente intelectual da época tomava quase como garantida a ideia de que “tudo é político”), Said vinca que o Orientalismo, mais do que um discurso literário, é um discurso político de rebaixamento, de representações genéricas do estranho e de uma completa incompreensão do quadro cultural que molda os habitantes do Egito ou da Palestina.

A tradição intelectual de Said é, ainda, aquela que olha para a classe ou para a representação em grupo como uma forma de controlar a identidade. O orientalismo é, assim, uma prisão, da mesma maneira que a condição de mulher seria, para Simone de Beauvoir, um impedimento a olhar para as mulheres como indivíduos. O reforço constante do estereótipo tem como correlato a obrigação, por parte dos oprimidos, de confirmarem esse estereótipo. A existência de um estereótipo, assim, confirma a verdade desse mesmo estereótipo. Esta ideia é importante porque reforça a inoperância da ideia de verdade no discurso sobre o outro. De facto, não interessa que a representação dos indianos ou dos egípcios como inferiores seja justa ou verdadeira. O discurso sobre a inferioridade é tão complexo, está tão arreigado na própria linguagem, que é absorvido, torna-se verdade.

Edward Wadie SaÔd Palestinian-American Writer And Theorist

Edward Said transformou o Orientalismo num grande tema porque, ao olhar para ele de uma perspetiva geral, conseguiu reunir uma coleção de documentos sobre aquilo que o Ocidente rejeita

Getty Images

E se até podemos admitir que há nesta tese uma certa razão, a verdade é que Said também conseguiu perceber, como aliás o admite no prefácio de 2003, os efeitos perversos que daqui decorrem. A partir do momento em que a opressão é o toque mais importante do discurso, todo o propósito literário de Orientalismo se perde. Said explica que procurou escrever um livro na linha de Auerbach, que percebesse as subtilezas e aquilo que há de verdadeiro na literatura e no modo de vida do Ocidente. Este trabalho seria particularmente importante porque o discurso típico do Ocidente impediria esta leitura, a que Said chama humanista, e a que poderíamos chamar literatura preocupada com a individualidade, não com a representação, do discurso do Oriente. Ora, o problema é que, para resolver um problema não basta puxar a manta de um lado para destapar do outro. Seria importante procurar ler de boa vontade o Oriente, de tal modo que se pudesse ir para lá das representações genéricas; no entanto, aquilo que Said fez, ao ver no discurso do Ocidente um discurso de domínio, foi transformar este discurso no genérico que quer contrariar. Said, mesmo que reconheça o génio individual, transforma o discurso Ocidental numa representação dominadora, de tal modo que a tal leitura humanista se perde dentro do discurso ocidental. A moda recente de procurar pecadilhos anacrónicos nos grandes textos é filha da ideia de Edward Said, mesmo que a sua ideia não procurasse acusar o ocidente, mas sim libertar o Oriente da leitura que agora é feita do Oriente.

É preciso acrescentar, além disso, que o método de Said tem outro lado difícil de aceitar. A transformação de qualquer discurso em generalização e, por isso mesmo, em falsidade vem de uma espécie de desformalização do materialismo em teoria literária que é difícil de aceitar. Isto é, Said, com Foucault a quem Orientalismo tanto deve, recupera numa linguagem contemporânea a velha questão medieval entre nominalistas e realistas. O que estava em causa na questão medieval era uma discussão sobre a realidade do nome ou do género, isto é, a questão de saber se os universais teriam existência de facto ou seriam apenas, na expressão da escola franciscana, flatus voces, ar. Ora, esta questão é importante porque negar a realidade daquilo que é mais universal do que o indivíduo implica a sua arbitrariedade. Numa perspetiva nominalista, recuperada aqui por Said, não há realidade nem nos géneros, nem nos grupos, nem nos discursos. A representação é uma criação do Homem, nasce do Homem e tanto pode ser a que existe como outra qualquer. Isto é, no fundo não há razão para que agrupemos os homens em Orientais e Ocidentais, ou entre homens e mulheres. A adequação da realidade a estas representações é apenas aparente e não tem realidade, nós é que nos prendemos a um discurso que ganha um carácter ilegítimo de obrigatoriedade e lhe conferimos uma legitimidade que ele não tem.

Não seria de esperar que um livro de crítica literária sobre o discurso Orientalista fosse o porta-voz da importância da crítica e a grande escape para os descontentes com a política americana; no entanto, o êxito do livro é, em certa medida, a prova de que Said tinha razão sobre a importância política da literatura.

Ora, a partir desta perspetiva é relativamente simples transformar qualquer representação discursiva num estereótipo. O discurso sobre o Oriente, aliás, assume tantas formas, dos bárbaros do Cid campeador ou dos relatos do cruzado Osberno ao refinamento marroquino de Brideshead Revisited, que só nesta perspetiva, em que todo o discurso representa um estereótipo, uma representação forçada, é que se pode falar em generalização e num discurso Orientalista como um todo.

Isto é, se admitirmos que toda a linguagem é arbitrária, então de facto nenhum discurso sobre o outro é legítimo, e todo o discurso representa um estereótipo. Mas se entrarmos neste jogo de linguagem então também é verdade que nenhum discurso é legítimo, nenhum discurso é verdadeiro, pelo que a única forma de dar voz ao que quer que seja é o silêncio.

Podemos também ver, na tendência contemporânea para só aceitar como legítimo o discurso das comunidades sobre si próprias, e dos indivíduos sobre si próprios, uma continuidade deste princípio de Said; no entanto, a verdadeira consequência do jogo linguístico de Said seria o silêncio completo, já que até o nosso discurso sobre nós é uma representação.

Edward Said Poses In His Office

Said, mesmo que reconheça o génio individual, transforma o discurso Ocidental numa representação dominadora, de tal modo que a tal leitura humanista se perde dentro do discurso ocidental

Getty Images

O livro de Said tem duas partes principais. Uma sobre a fundação do discurso Orientalista e outro sobre o discurso Orientalista hoje. Se os pressupostos da primeira parte são, como procurámos mostrar, perigosos, a verdade é que aquilo que nasce dos pressupostos é uma maravilha. Uma leitura minuciosa dos textos mais significativos do século XIX sobre o Oriente, nas formas como a linguagem representa um discurso de poder que mostram um grande domínio da linguagem e uma sensibilidade para as subtilezas do espírito que demonstram o grande crítico que Said é. A segunda parte é também interessante porque, embora concentrada no lado mais político e nas consequências bélicas do Orientalismo, mostra de que modo é que o discurso é a verdadeira ferramenta necessária para a aceitação da guerra contra o Oriente. Em sociedades democráticas, em que todas as decisões têm de se legitimar na esfera da opinião pública, o discurso é realmente o centro da política, o que faz da literatura o mais importante dos instrumentos. Num tempo em que a crítica literária parece ser cada vez mais desconsiderada é, assim, interessante que um livro nos lembre que é a literatura que está no centro da sociedade, e que a sociedade depende mais dela do que julga.

Não seria de esperar que um livro de crítica literária sobre o discurso Orientalista fosse o porta-voz da importância da crítica e a grande escape para os descontentes com a política americana; no entanto, o êxito do livro é, em certa medida, a prova de que Said tinha razão sobre a importância política da literatura.

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