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Os campeões, o sequestrador e o motor que parou. As aventuras de um piloto da TAP

Foi sequestrado no ar e teve uma arma apontada à cabeça, temeu um atentado em setembro de 2001, transportou o FC Porto quando foi campeão europeu em 2004. As histórias de José Correia Guedes em livro.

O convite era irrecusável: “Queres passar três dias com o Futebol Clube do Porto em Gelsenkirchen, na Alemanha, por ocasião da final da Liga dos Campeões de 2004?” A sorte caiu no colo do piloto José Correia Guedes porque, apesar de viver em Lisboa desde que começara a trabalhar na TAP, tinha nascido no Porto, em 1946. Mais importante ainda, era sócio do clube. Enquanto os Dragões queriam ganhar a taça, a TAP queria ganhar Pinto da Costa, que há vários anos não fretava aviões à companhia, por causa de uma operação que não tinha corrido lá muito bem. “O senhor Pinto da Costa ficou zangado e cortou relações connosco. Uma pena, porque era um bom cliente”, confessou o chefe da frota da Airbus 340. A função de José Correia Guedes não era só a de levar José Mourinho, Deco e Vítor Baía em segurança e a horas até à competição. “Queremos que o FC Porto tenha uma viagem inesquecível.”

A viagem inesquecível foi relatada na primeira pessoa, em fevereiro deste ano, numa página de Facebook chamada “O Aviador“. José Correia Guedes criou-a para contar as histórias que acumulou ao longo de 36 anos a pilotar aviões, e onde se inclui um sequestro que fez manchetes, uma cena de pancadaria num voo de longo curso, poucos dias depois dos atentados terroristas do 11 de setembro de 2001, um parto prematuro de uma grávida que só descobriu no ar que tinha gémeos, o primeiro voo sem instrutor em que um motor deixou de funcionar, um rato grande e gordo a bordo e uma passagem de modelos no ar.

José Correia Guedes abre-nos as portas da sua casa, em São João do Estoril, para nos contar também um pouco sobre si. O piano destaca-se na sala, assim como as fotos das duas filhas, Maria Guedes, a bloguer, e Sara Guedes. Quando o piloto contou as memórias de Gelsenkirchen no Facebook, tinha cerca de dois mil ‘gostos’ na página. Hoje tem 19 mil e os fãs continuam a aumentar, entre ex-pilotos que partilharam algumas das aventuras, pilotos mais jovens e gente atraída por histórias bem contadas. A chancela Lua de Papel, do grupo editorial Leya, também reparou nelas e compilou-as num livro. O Aviador vai ser lançado na sexta-feira, 7 de julho, na Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa. Curiosidade: João Medeiros e Almeida foi um dos fundadores da TAP.

“O Aviador” sai a 7 de julho e tem 179 páginas. Custa 13,50€.

Mas voltemos à Liga dos Campeões. A aventura começou no Porto, a 24 de maio de 2004, e o piloto esmerou-se. Vestiu o casaco do uniforme e foi receber o casal presidencial azul e branco à porta do avião. Beijou a mão de Carolina Salgado. E, antes de levantar voo, deixou uma mensagem à comitiva de 270 passageiros: “Daqui fala o comandante do avião que, por acaso, é também o sócio nº 25.990 do Futebol Clube do Porto, embora com quotas em atraso…”. Na altura só não mencionou que o atraso nas quotas já ia em mais de trinta anos.

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Com uma receção destas, já todos se sentiam em casa. “Bebiam, fumavam, usavam os microfones de bordo para entoarem os seus cânticos, batiam palmas, enfim, um verdadeiro pandemónio.” Preocupado, o supervisor de cabina entrou no cockpit onde já Miguel Sousa Tavares e outros fumavam. É, aliás, o jornalista e escritor quem assina o prefácio do livro O Aviador. “Ó comandante, metade dos passageiros da cabina de turística está a fumar. Que fazemos?”, perguntou o supervisor, preocupado. “Que fazemos?! Manda o mais elementar bom senso que não façamos absolutamente nada. Este é um voo muito especial em que as regras são ditadas pelo fretador”, respondeu José Correia Guedes, imbuído da missão de agradar ao cliente.

No estádio do Shalke 04, prestes a ver o seu clube sagrar-se Campeão Europeu. © D.R.

O cliente estava a gostar tanto que ofereceu seis bilhetes à tripulação para que alguns dos membros pudessem entrar no estádio do Schalke 04 e assistir à final. José Correia Guedes agarrou num dos bilhetes e, no dia 26 de maio, lá foi para a bancada. Ao intervalo, o FC Porto vencia o Mónaco por 1-0 e a vitória parecia no papo. Foi então que o piloto com as quotas em atraso teve uma ideia. Pegou no telefone e ligou para o amigo Nelson Augusto, também comandante da frota A340 e elemento da Direção de Operações de Voo.

– Alô, Nelson. Isto está no papo. O FC do Porto vai ser campeão europeu.
– Sim? Boas notícias. Precisas de alguma coisa?
– Preciso. Agradecia que entrasses em contacto com o ATC (Controle de Tráfego Aéreo) e pedisses para eles alterarem o “call sign” do voo de regresso. Em vez de TP9224 dizes que queremos ser CHAMPS, de champions.
– Zé Guedes, tu estás bom da cabeça?

E foi assim que, pela primeira vez na história da aviação comercial, um avião cruzou os céus da Europa identificado pela sigla CHAMPS. O que dava origem a diálogos profissionais como “CHAMPS, climb to flight level three five zero”, “Switch to control frequency 123.45. Goodbye, CHAMPS”, “Well done, CHAMPS. Congratulations“, ia dizendo a torre de controlo, colegas da Lufthansa, da British Airways e da Alitalia. No máximo podem ser usados seis caracteres, senão o nome teria sido CHAMPIONS. No interior do Airbus, o descontrolo total. Só os pilotos e José Mourinho estavam sóbrios. “Sabendo que trazia consigo a família, mulher e duas crianças pequenas, fui pessoalmente oferecer-lhe o pequeno compartimento situado por trás do cockpit onde existem dois beliches para descanso dos pilotos em viagens de muito longa duração. Recusou, agradeceu discretamente e continuou a fingir que dormia”, recorda.

"Momentos antes da descida para Pedras Rubras o senhor Pinto da Costa entrou no cockpit para agradecer o nosso empenho e aproveitou para pedir o meu velho cartão de sócio do FCP. Fiquei embaraçado devido às quotas em atraso."

José Correia Guedes levou tão a sério a missão de reconquistar Pinto da Costa que, uma hora antes da chegada ao Porto, teve outra ideia. Chamou Reinaldo Teles ao cockpit e sugeriu que o avião fizesse uma passagem a baixa altitude sobre o Estádio do Dragão, onde estavam concentrados os adeptos à espera da equipa. “Grande ideia, comandante! O pessoal ia adorar. Mas acha que isso é seguro?”, respondeu o vice-presidente do clube. O piloto só pediu um favor: “Como vamos chegar ao amanhecer dava-me jeito ter uma referência visual para apontar ao estádio. Será possível pedir para acenderem as luzes?”

As luzes acenderam-se, mas os planos quase sofreram um curto-circuito. O nevoeiro frequente no aeroporto Francisco Sá Carneiro naquela época do ano intensificara-se e, não só punha em causa o brilharete proposto por Correia Guedes, como ainda trazia uma ameaça maior: ter de ir aterrar a Lisboa, a cidade dos maiores rivais clubísticos. O piloto não ficou com a cabeça a prémio e conseguiu aterrar no Porto. A TAP conseguiu reconquistar o FC Porto. E José Correia Guedes conseguiu um perdão presidencial. “Momentos antes da descida para Pedras Rubras, o senhor Pinto da Costa entrou no cockpit para agradecer o nosso empenho e aproveitou para pedir o meu velho cartão de sócio do FCP. Fiquei embaraçado devido às quotas em atraso mas lá o entreguei. Pensei que só o quisesse conferir, mas não: quando dei por mim o presidente do Futebol Clube do Porto tinha guardado o cartão no bolso do casaco. Um par de meses mais tarde viria a receber em minha casa um novo exemplar, com número de sócio atualizado e quotas em dia.”

1983, a caminho de Roma em Boeing 707 com a equipa do Benfica. Eusébio não gostava de andar de avião mas sentia-se mais confortável no cockpit a falar com os pilotos. José está à direita, de bigode.

© Nuno Ferrari / D.R.

O “piratinha do ar”

José Correia Guedes não diz ao Observador se essas quotas ainda estão em dia, 13 anos depois. Em troca, vai ao baú e conta mais uma história, incluída no livro com o título “O Piratinha”. Maio outra vez, mas de 1980. Aquela terça tinha tudo para ser um dia de trabalho tranquilo, ir a Faro e regressar a Lisboa. Durante a manhã, tinha estado com o amigo e jornalista Benjamim Formigo no Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil, que tinha ajudado a fundar em 1976. Desta vez, o portuense trabalhava no embrião daquilo que viria a ser a revista de aviação “Sirius”, que ainda hoje existe. No momento da despedida, Formigo perguntou-lhe qual a sua rota para o dia.

Vou ali a Faro e já venho, respondi.
– Isso achas tu, disse ele.

Naquela altura havia muitos aviões a serem desviados, daí a brincadeira. Mal os dois sabiam que o comentário havia de se tornar realidade. Nesse mesmo dia, um jovem roubou a pistola de defesa ao pai e entrou pela primeira vez num Boeing 727/100 com direção a Faro. Abriu a porta do cockpit logo após a descolagem e ordenou: “Vamos para Madrid! Vamos para Madrid!“. O copiloto Correia Guedes olhou para trás e perguntou: “O que é isto?!”. Nesse momento, a arma que estava apontava à cabeça do operador de sistemas passou a ficar apontada à sua cabeça. Enquanto o comandante acionava secretamente o sistema de alerta com o sinal de que o avião estava sob sequestro, o copiloto, que era o elemento mais jovem da tripulação, tentou uma conversa com o também jovem sequestrador, de 16 ou 17 anos e visivelmente perturbado. “Chamo-me Rui e peço desculpa pelos problemas que lhes estou a causar”, respondeu, deixando mais calmo Correia Guedes, que achou que um perigoso terrorista não pede desculpa pelo transtorno.

Quem tem a arma é quem mais ordena, já que um disparo dentro do aparelho é extremamente perigoso, e o avião começou a fazer as alterações necessárias para aterrar na capital espanhola. Avisaram-se os 83 passageiros da nova rota, sem contar as razões, para que o pânico não se instalasse. O copiloto continuou a conversar, reforçando a relação de proximidade que se estava a criar, mas quando ouviu os planos do jovem ficou gelado: “As coisas em minha casa andam muito mal. Os meus pais não se entendem e eu não quero aturar mais aquilo. Estou farto. Quero 20 milhões de dólares e um salvo conduto para a Suíça.” A TAP já apresentava fragilidades e não tinha esse dinheiro. E os bancos estavam fechados àquela hora da noite, alegou Correia Guedes. “Muito bem. Sendo assim vamos então pedir os 20 milhões de dólares ao Governo”, disse, decidido. O primeiro-ministro da altura era Francisco Sá Carneiro, que certamente não iria ceder.

Logo após a aterragem em Madrid, o pirata do ar pediu o microfone do sistema de comunicação interno e anunciou aos passageiros que eram seus reféns, enquanto Correia Guedes tentava evitar que as forças de segurança espanholas tomassem de assalto o Boeing, por temer “um banho de sangue”. “Diga-lhes que tenham calma, por favor”, implorou ao controlador de serviço na Torre de Controle de Barajas, tentando convencê-lo de que tudo se ia resolver a bem. A pouco e pouco, Rui Rodrigues aceitou libertar mulheres e crianças.

O embaixador português em Madrid, João Sá Coutinho, transmitiu que o primeiro-ministro Sá Carneiro não poderia conceder salvo conduto, por essa figura não se aplicar à situação. Um vice cônsul sueco que ia a bordo ainda tentou chamar a Suécia às negociações, mas limitou-se a levar uma reprimenda do embaixador sueco em Espanha, por se estar a meter onde não era chamado. Correia Guedes quis falar a sós com o sequestrador, mostrou-lhe a foto da filha bebé, Maria, e, amolecido o coração de Rui Rodrigues, fez-lhe uma proposta: o seu pai era juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e o copiloto prometeu que, se ele lhe entregasse a arma, ele esconderia as balas e tentaria influenciar alguma brandura na situação, que teria de ser certamente julgada na Justiça.

O pirata acabou por aceder à libertação dos reféns, com exceção dos pilotos e do operador de sistemas. No fim da conversa, entregou a Correia Guedes a arma e cinco balas. Ex-combatente do Ultramar, o copiloto quis saber onde andava a sexta bala da arma. “A sexta vai ser para mim. Isto já não tem saída”, respondeu Rui, em desespero. Correia Guedes deu-lhe um raspanete de pai, conseguiu recuperar a sexta bala, convenceu as autoridades espanholas de que tinham de abastecer o avião porque o sequestrador queria regressar a Portugal — para não o entregar a Espanha –, e ainda arriscou um processo da Justiça por se oferecer para esconder as balas do rapaz, para que este não tivesse uma pena tão grande.

Quando o Boeing aterrou em Lisboa, estavam seis carrinhas da PSP cheias de agentes à espera. Correia Guedes mentiu ao chefe da PSP, ao dizer que a arma nunca teve balas. Mais tarde, seria a vez dele de receber um raspanete do pai juiz por ter feito ocultação de prova e obrigou-o a ir à polícia contar a verdade. E o exclusivo da história foi, claro, para o amigo jornalista Benjamin Formigo, do Expresso. Já se passaram 37 anos. Rui esteve preso preventivamente alguns meses e, quando saiu, apareceu de surpresa em casa do piloto, para pedir desculpas à sua mulher, Lurdes Guedes, que lhe deu um raspanete. Correia Guedes, claro está, convidou-o para jantar. Há ainda um pormenor caricato. Quando o piloto chegou a casa de madrugada, são e salvo, deu um beijo à mulher e correu para o telefone. É que o sequestrador tinha-lhe pedido para avisar a mãe do que se tinha passado. Do outro lado da linha, a senhora acabada de acordar, não estava a acreditar na história. Nem acreditava que o filho não estava a dormir ali no quarto ao lado, como tinha feito todas as noites até então.

O contacto esfumou-se, até que, há uma dúzia de anos, o ex-sequestrado soube do paradeiro do ex-sequestrador e enviou-lhe um e-mail, propondo que se encontrassem para pôr a conversa em dia. Com uma posição pública já relativamente importante, Rui Rodrigues preferiu não relembrar esses tempos. Até que, no início de 2017, voltaram a falar ao telefone. No ar, ficou a promessa de um almoço.

Em 1972, no curso de piloto de linha aérea dve. © D.R.

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Parto a bordo

Recordar estes episódios é recordar um país em mudança, uma era de ouro para quem trabalhava na TAP. Naquele tempo, as casas de banho tinham todas cinzeiro e as comissárias de bordo eram hospedeiras; hoje, os mecânicos de voo chamam-se hoje operadores de sistemas ou técnicos de voo e os bagageiros tornaram-se operadores de rampa. Aos 21 anos, José Correia Guedes, que estudava para ser engenheiro mecânico e gostava de rock’n’roll — teve uma banda chamada Os Kondes, da qual fez parte o ex-presidente da Câmara do Porto Fernando Gomes — nunca tinha tido qualquer fascínio por aviões. Em 1968, foi enviado para combater em Angola. Quando regressou, dois anos depois, não sabia que rumo dar à sua vida, até que viu um anúncio da TAP a pedir pilotos sem qualquer experiência. O que o atraiu foi o bom ordenado, as muitas viagens e a perspetiva de ter uma namorada em cada (aero)porto, confessa. Andou um ano a fazer exames para o lugar e, para não ficar parado, a companhia aérea deu-lhe a hipótese de ir trabalhando como comissário de bordo.

O pai, muito conservador, achava que “isto não era profissão”. Mas era uma grande vida. Foi nessa função que teve o primeiro contacto com cidades como o Rio de Janeiro, Nova Iorque, Lourenço Marques, Montreal, sempre alojado em hotéis de luxo e com quatro ou cinco dias de estadia em cada cidade, que era o período entre voos. “Parecia um sonho”. Mas também houve pesadelos. Como no dia em que uma passageira grávida de seis meses foi à casa de banho do Boeing 707, que voava de Luanda para Lisboa, e começou ali mesmo, a 37 mil pés de altitude, o trabalho de parto.

As hospedeiras eram obrigadas a frequentar um curso na Maternidade Alfredo da Costa durante a sua formação, pelo que José Correia Guedes deixou uma colega a tratar da senhora, enquanto foi avisar o chefe de cabina, que dormia profundamente. Acordaram-se os passageiros na esperança de que houvesse um médico a bordo, mas não havia. Ofereceu-se o mecânico de voo, que no serviço militar em África tinha assistido a alguns partos. Improvisaram uma cama feita de cobertores junto da porta traseira do avião, deitaram a futura mãe e lá surgiu a cabeça de um bebé “mínimo, muito pequenino”, recorda.

Enquanto discutiam se era necessário aterrar para dar assistência hospitalar a mãe e filho — em 1971, um país colonialista como Portugal não tinha muitos amigos em África e não podia aterrar em qualquer lado –, a mulher recomeçou a gemer e a cena ia repetir-se. Afinal havia outro bebé, e nem a mãe nem o pai sabiam. Ainda tiveram de esperar mais duas horas até chegarem a Las Palmas, território espanhol, onde poderiam aterrar em segurança. A mãe e os dois bebés seguiram imediatamente para o hospital, enquanto o Boeing 707 da TAP seguiu viagem até Lisboa. Nem sempre as histórias têm um final feliz, como a do sequestro. José soube depois que os bebés prematuros não sobreviveram.

A aeronave ganhou velocidade, levantou voo e começou rapidamente a ganhar altitude. Só que, de repente, fez-se silêncio. O único motor do avião tinha deixado de trabalhar.

O motor que parou

Do primeiro voo comercial sozinho não se recorda. Do maior susto guarda segredo, para não causar alarmismos nos futuros passageiros nem má imagem à companhia à qual dedicou mais de metade da sua vida. Pelos vistos, o maior susto não foi aquele que apanhou no curso da Flight Safety Academy em Vero Beach, na Florida, para o qual eram enviados os futuros pilotos da companhia. “Era a terceira ou quarta vez que voava sozinho e a minha missão para esse dia consistia em treinar aterragens e descolagens durante uma hora e pouco”, recorda Correia Guedes. O avião era um Piper Cherokee 140, que tinha acabado de sofrer uma revisão — “o que nem sempre é boa notícia”, admite. O dia estava chuvoso e seria a primeira vez que voava sozinho nessas condições meteorológicas. A aeronave ganhou velocidade, levantou voo e começou rapidamente a ganhar altitude. Só que, de repente, fez-se silêncio. O único motor do avião tinha deixado de trabalhar.

No aeroporto de Las Palmas, nas Canárias, em 1977. © D.R.

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“Resisti à tentação de voltar para trás e isso ter-me-á salvo a vida. Olhei para baixo, vi que ainda havia um pedaço de pista sob o avião e decidi mergulhar que nem um Stuka [bombardeiro] em direção à mesma. Estendi os flaps, agarrei-me ao compensador e deixei a velocidade crescer para não entrar em perda.” Escapou intacto e o primeiro pensamento foi de que teria feito algum disparate e seria recambiado para Portugal, terminando ali o futuro de piloto. Mas não. O erro tinha sido da manutenção e a resposta à crise foi a correta. Só aí é que ficou com as pernas a tremer, do susto. Para não deixar que o medo de voar se instalasse, pediu ao diretor da escola que o deixasse voar imediatamente a seguir. E assim foi.

Durante a descida, um dos comissários entrou no cockpit com a camisa coberta de sangue para anunciar que os passageiros se tinham organizado e conseguiram imobilizar os autores dos desacatos, amarrando-os com os cintos das calças.

Os atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque, em setembro de 2001, vieram apertar muito a segurança na aviação. De tal forma que hoje não é possível fazer a viagem no cockpit (embora haja pilotos que, por vezes, permitam a entrada de estranhos, ou seja, se fosse vivo, Eusébio poderia continuar a acalmar os nervos de voar junto da tripulação). Foi poucos dias depois destes atentados terroristas, num clima generalizado de medo no ar, que José Correia Guedes apanhou um susto.

O voo em questão fazia-se num Airbus A340 de Lisboa para São Paulo, “completamente cheio”, recorda. Perto de 300 pessoas enchiam a aeronave e as primeiras seis horas de viagem correram calmamente. Quando começaram a aproximar-se do Nordeste brasileiro, o supervisor de cabina entrou no cockpit com ar assustado e disse: “Comandante, temos um problema. Há dois passageiros estrangeiros que estão a distribuir pancada por toda a gente na zona da classe económica. A situação está fora de controle e já há feridos.” A primeira decisão do piloto foi a de colocar dois comissários à porta do cockpit, com ordens rigorosas para não deixarem entrar ninguém. Depois, informou o Controle de Tráfego Aéreo de que algo de anormal se passava a bordo e pediu para aterrar em Fortaleza. Autorizado.

Durante a descida, um dos comissários entrou no cockpit com a camisa coberta de sangue para anunciar que os passageiros se tinham organizado e conseguiram imobilizar os autores dos desacatos amarrando-os com os cintos das calças. “Dias depois do 11 de setembro o espectáculo não podia ser mais deprimente e toda a gente a bordo já só ansiava por terra firme para aliviar os medos.” Após a aterragem, apareceu no avião uma brigada da Polícia Federal para levar os dois agressores para interrogatório, dois holandeses com dependência de drogas que entraram em crise devido às muitas horas sem consumir.

O avião deveria poder partir agora em segurança até ao destino final, São Paulo, mas havia as burocracias. Muitas burocracias. “Eu não posso reter os dois holandeses sem uma denúncia formal e para isso preciso de testemunhas. Terei que ouvir todos os passageiros do avião”, disse o delegado da polícia, que logo adiantou que, para ouvir toda a gente, seriam precisos “uns dias”. Passados alguns minutos de reflexão, o delegado da Polícia Federal aproximou-se do piloto português e partilhou o seu plano: “Eu volto para o gabinete e faço mais umas perguntas aos caras. Enquanto isso, você fecha as portas do avião e vai para a pista. Quando descolar, eu venho à janela e grito: ‘Puta que pariu, o português fugiu!'” E assim foi. “Seis horas mais tarde, os dois holandeses foram colocados num voo doméstico para São Paulo, já nós estávamos no hotel a descomprimir com uma mais que merecida caipirinha.”

À chegada do último voo a receber um presente da tripulação e uma ovação por parte dos 300 passageiros a bordo, pouco antes da aterragem. “A segurança de voo esteve por um momento em causa: as lágrimas não me deixavam ver os instrumentos”, escreveu, na sua página de Facebook. © D.R.

Um desfile de moda do estilista Augustus em pleno voo, o pânico causado por um rato gordo a bordo que quase levava a uma aterrarem antecipada, uma aventura com touros que acabou mal. A riqueza destes relatos está também na forma como este piloto na reforma os conta, aliado às descrições das diferentes épocas e países.

O último voo da sua carreira foi Lisboa – Rio de Janeiro – Lisboa, em setembro de 2006. Levou a família toda e, no regresso, teve uma surpresa da tripulação. Mas disse-lhes: “Normalmente, este é o momento que todos os pilotos imaginam com horror, o dia em que nos cortam as asas” E brincou: “Mal eu sabia que ia começar a melhor década da minha vida.” Mais uma premonição acertada na vida do piloto. “Tem sido, de facto. As minhas filhas estão criadas, viajo, fundei um grupo de jazz, fundei um clube de automóveis antigos, escrevi um livro… Fiz tudo o que me apeteceu fazer.”

Já lá vão mais de 10 anos desde que deixou de colecionar novas aventuras nos céus para contar. Desde aquele setembro de 2006 que nunca mais pilotou um avião. Mesmo não morando longe do aeródromo de Tires. “Corte absoluto. Dizem que é assim que se lida com o fim das paixões, não é?”

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