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Os controladores do passado: o que une (e o que separa) os historiadores portugueses?

Novos livros recuperam a questão intemporal: de que forma a escrita da História mudou com o tempo e com os autores? Carlos Maria Bobone procura um fio narrativo entre historiografias distintas.

Se a famosa frase de Orwell é verdadeira, eles deviam estar no centro do mundo. Mas a verdade é que a saga daqueles que escrevem o passado também merece ser escrita, porque o passado não se deixa controlar tão facilmente. As mesmas fontes, espremidas por pessoas diferentes, têm dado as conclusões mais díspares; a aventura mansa de fazer falar os mortos nunca foi tão pacata como parece.

Veja-se o caso de Herculano. A lenda enclausurou-o em Vale de Lobos, desiludido com o país, com “vontade de morrer”. Como se, depois de uma vida política ativa, como consciência moral do liberalismo, a velhice o atirasse para a História, para poder completar a sua História de Portugal. Derrotado na vida verdadeira, dedicava-se a ser o “Michelet português”, fazendo pinóquios a partir de figuras medievais que não podiam já desprezá-lo ou contrariar os seus juízos.

A verdade, porém, é que a História foi a grande razão para a sua importância política. E, por mais que tenha escrito sobre pedagogia e direitos de autor, conservação de património e liberdades de culto, a sua visão política mais ampla só se percebe a partir dos seus grandes trabalhos históricos. Mais, a sua História de Portugal é o símbolo mais claro de resposta a uma época e do modo de agir diante das circunstâncias do seu tempo.

A humanização dos atores medievais obrigou a uma disputa sobre cada passo da sua História. Na imagem: uma representação da batalha de Aljubarrota

Não há obra que expresse melhor o espírito do liberalismo do que a sua História. Diante da extinção das ordens e da dissipação das bibliotecas conventuais, ninguém como Herculano contribuiu tão decisivamente para a transfiguração deste património, de património religioso, em património nacional. Foi de Herculano o maior esforço para transformar as Crónicas medievais numa história da construção do país, para fazer das hagiografias de Santa Cruz ou de Alcobaça a mais terrena luta dos reis pelo poder, para encontrar nos documentos paroquiais o esforço de criação dos municípios e de organização da sociedade.

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É claro que este esforço teve um preço; a polémica sobre o milagre de Ourique, desconsiderado por Herculano na sua história, se não exatamente “positiva”, pelo menos científica segundo os padrões oitocentistas, foi uma das mais acesas da historiografia portuguesa; a humanização dos atores medievais obrigou a uma disputa sobre cada passo da sua História. No entanto, mesmo que muita coisa possa ser hoje contestada no seu modo de fazer história, a verdade é que a sua obra provocou uma verdadeira avalanche sobre a documentação barbaramente atirada das bibliotecas conventuais. Aquilo que Herculano fez de uma perspetiva política, a transformação de uma história eclesiástica, na sua relação com os poderes profanos, na História da construção de um país, transformou-se numa autêntica topografia de toda a vida histórica do país. É o tempo das obras monumentais que cartografam o país. Gama Barros escreve a sua História da Administração Pública, Inocêncio Francisco da Silva escreve o seu Dicionário Bibliográfico, uma recolha minuciosíssima da bibliografia escrita por autores portugueses, Teófilo Braga, com muita contestação à mistura, organiza o cânone literário na sua História da Literatura, e o movimento não fica por aqui.

A partir dos anos 50 há uma produção que é obviamente mais histórica do que ideológica. Vários deles, além do mais, presidiram ou fundaram Institutos que alargaram muitíssimo os efeitos das suas obras.

Mesmo em casos mais particulares, a corrida aos documentos dá frutos: o Visconde de Juromenha traz os primeiros avanços de monta a respeito da biografia de Camões desde o século XVII; Carolina Michaelis integra os romances velhos portugueses nas tradições europeias; Leite de Vasconcelos percorre o país no encalço das tradições populares; tudo, da política à literatura, do povo à nobreza, é revolvido pela voragem dos documentos. As revistas históricas, como a Panorama ou, sobretudo, a Archivo Historico Portuguez, publicam documentos com uma importância e uma novidade que não terá paralelo na História de Portugal. Joaquim de Vasconcelos traçará a origem das famosas tapeçarias e de tanta arte portuguesa, integrando-a nas dinâmicas europeias. Anselmo Braancamp Freire, a partir dos Brasões da Sala de Sintra, deslindará o autêntico emaranhado das famílias nobres portuguesas, naquela que é a primeira grande obra genealógica portuguesa, capaz de mostrar as relações de parentesco e as origens das principais famílias portuguesas.

Em todos estes historiadores impressiona a largura dos seus campos de investigação. Ainda hoje, alguns dos mais relevantes trabalhos sobre Gil Vicente, Uriel da Costa, os Cancioneiros, Pêro de Andrade Caminha ou Luísa Sigea se devem a Carolina Michaelis. Do mesmo modo, Leite de Vasconcelos escreveu, sempre com interesse e novidade, a primeira gramática de mirandês, sobre religiões da Lusitânia (e traduziu, sobre o assunto, Martinho de Dume), festas populares, símbolos, vestes, e tudo o que, de alguma forma, diz respeito à vida social de um povo. Mesmo Teófilo Braga, tão criticado pela sua credulidade e precipitação, escreveu sobre o Romantismo, recolheu contos tradicionais, biografou Bocage e Camões, fundou revistas de método positivo, numa capacidade de se interessar não só por assuntos variados, mas por uma quantidade de perspetivas que só encontra paralelo, talvez, em Oliveira Martins. Este, que também contribui com uma História de Portugal e, sobretudo, com o seu Portugal Contemporâneo para a grande onda oitocentista, fica também como o introdutor de vários métodos de investigação nas ciências sociais portuguesas. Oliveira Martins aplicou teorias socialistas e biologistas à História, tentou interpretações económicas e mitológicas da sociedade, naquela que é a primeira grande obra portuguesa moderna mais focada no método do que no objeto.

Todos os tipos de História têm herdeiros contemporâneos. Na imagem: a rainha D. Maria II, aos anos de idade

A vertigem documental do século XIX trouxe, é claro, alguns excessos. Depois da engorda do corpus camonista, que o Visconde de Juromenha transformou num colosso, o trabalho dos anos seguintes foi de revisão das atribuições demasiado ligeiras. Mesmo alguns trabalhos importantes, como o de Felgueiras Gaio com o seu Nobiliário, ou o do Visconde de Sanches Baêna, que publicou documentos sobre variadíssimos assuntos, ficaram marcados pela pouca fiabilidade de algumas fontes e pela atribuição apressada de veracidade a documentos descobertos.

É natural, por isso, que a historiografia dos anos seguintes mude um pouco a agulha.

Talvez um dos maiores símbolos desta mudança esteja num livro hoje pouco lido. As Erratas à História de Portugal, de João Ameal e Rodrigues Cavalheiro, trazem de uma forma flagrante e declarada aquilo que se encontra, talvez de um modo mais contido, noutros autores, como Alfredo Pimenta e António Sardinha ou, do outro lado da barricada, António Sérgio. As Erratas são, fundamentalmente, um exercício de interpretação. Não trazem documentos novos, não são descobertas históricas, mas propõem-se a olhar, com outros olhos, para os reinados de D. João V ou D. Miguel, resgatando estes reis do opróbrio trazido pela historiografia liberal.

A segunda metade do século XX foi obrigada a olhar para a História de um modo diferente a partir de uma das grandes revoluções historiográficas contemporâneas. Depois do surgimento da escola dos Annales, em França, não mais era possível fazer uma história que tomasse as fontes como relativamente neutras e a sucessão de acontecimentos como um resultado, acima de tudo, de decisões conscientes.

Esta consciência, de que há um lado ideológico na História, transformou também muita da política da primeira metade do século XX em polémica historiográfica. Qual é a grande obra do Integralismo Lusitano? Mais do que a sua Junta Central, mais do que grandes ações governativas, aquilo que fica é uma série de ensaios historiográficos, que expressam um modo de ver a História de Portugal. O mesmo acontece com a Seara Nova e com o papel político de António Sérgio. A sua grande batalha política é, na verdade, histórica. É impossível não ver, na revalorização que Alfredo Pimenta faz de D. João III, um apelo ao lado religioso e à ortodoxia do Portugal contemporâneo; o interesse de Sardinha pelas corporações medievais – e, até, o inesperado interesse pelo Teófilo Braga estudioso do lado orgânico do romantismo – tem obviamente uma orientação política, tal como a interpretação sergiana do século XVII como um século de prisão do racionalismo pelas forças obscuras dos jesuítas tem paralelos óbvios na sua proposta de um Portugal democrático.

É de notar, no entanto, que ao mesmo tempo que esta historiografia política ia fazendo o seu caminho nos jornais, uma força poderosa, mais discreta, ia criando o seu caminho.

Se Alfredo Pimenta misturava a sua terrível e furiosa língua com uma erudição inegável, se mesmo Paulo Merêa, no campo do direito, tem um conhecimento assombroso, a verdade é que o tipo de historiografia interpretativo que domina a primeira metade do século chegará rapidamente a um impasse. É fácil de ver que, quando não se transforma apenas em panfletos para-literários, este tipo de História dificilmente produz algum conhecimento comum. No entanto, é importante para a consciência pública das heranças de uma sociedade, que facilmente se acantona em barricadas políticas e interpretações parciais, conhecimentos seletivos e investigação enviesada.

A historiografia política também fez caminho nos jornais. Na foto: o visconde da Ribeira Brava celebra a revolução de 5 de outubro de 1910

Arquivo DN

É certo que já existia investigação universitária quando integralistas e seareiros se digladiavam; no entanto, basta ver o D. Sebastião, de Queirós Veloso, publicado nos anos 30, altura em que o autor já tinha sido diretor do Curso Superior de Letras, para perceber que a investigação universitária não tinha dado ainda o salto que viria a dar nas décadas seguintes.

A partir da década de 50, a quantidade de trabalhos monográficos com uma solidez e erudição que não estariam ao alcance de nenhum amador é notável. Das Sesmarias Medievais, de Virginia Rau, à Crise Nacional nos Finais do século XIV, de Salvador Dias Arnaut, os trabalhos sobre os Descobrimentos ou a maçonaria, de Silva Dias, aos estudos económicos e diplomáticos, de Borges de Macedo, a gama é grande. Pouco liga estes historiadores, a não ser, de facto, uma produção que é obviamente mais histórica do que ideológica. Vários deles, além do mais, presidiram ou fundaram Institutos que alargaram muitíssimo os efeitos das suas obras. É inegável que, até hoje, é quase tão importante a existência de um instituto como o Centro de História d’Além Mar quanto a de um historiador capaz. A quantidade de teses e de conhecimento que se alcança ao abrigo destes centros, mesmo com todos os defeitos que possamos encontrar, é fácil de reconhecer.

A segunda metade do século XX foi, também, obrigada a olhar para a História de um modo diferente a partir de uma das grandes revoluções historiográficas contemporâneas. Depois do surgimento da escola dos Annales, em França, não mais era possível fazer uma história que tomasse as fontes como relativamente neutras.

A crise Académica dos anos 60 ajudou a fazer ressurgir a consciência do lado ideológico da História. No entanto, mesmo aqui, o ambiente universitário manifesta-se e a consciência ideológica de Vitorino Magalhães Godinho ou de António José Saraiva tem uma consequência de outro tipo. Aquilo que está em causa, mais do que o uso do facto histórico para defender a ideologia, é o aproveitamento das grelhas interpretativas surgidas ao longo do século para perceber a História de outro modo. É isso que acontece em A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, com um nome esclarecedor, ou na História da Literatura Portuguesa que Saraiva escreve com Óscar Lopes. Mesmo que esta venha a ser reescrita com um progressivo afastamento, da parte de António José Saraiva, da grelha da luta de classes, a verdade é que esta é usada no livro para alargar a compreensão de Fernão Lopes, por exemplo, tornando-o um cronista da vontade popular, numa perspetiva que, concorde-se ou não com ela, o enriquece, e não como um fim servido pelo estudos dos autores literários.

A segunda metade do século XX foi, também, obrigada a olhar para a História de um modo diferente a partir de uma das grandes revoluções historiográficas contemporâneas. Depois do surgimento da escola dos Annales, em França, não mais era possível fazer uma história que tomasse as fontes como relativamente neutras e a sucessão de acontecimentos como um resultado, acima de tudo, de decisões conscientes. A História dos Annales é a História das grandes forças latentes, dos movimentos coletivos, uma História comparativa em que as estruturas sociais têm muito mais força do que os indivíduos.

A História é um ofício interpretativo de um passado que nunca se deixa controlar por muito tempo. Na foto: Quartel do Carmo, Lisboa, 25 de abril de 1974)

LUSA

Houve, decerto, uma historiografia portuguesa que usou com proveito os ensinamentos do grupo de Braudel e companhia. Foi o que aconteceu com Mattoso, cuja identificação de um país é, na verdade, uma história sem acontecimentos, feita de análise de tipos de parentesco, particularidades geográficas, modelos de organização social, mas também com Oliveira Marques, cuja Nova História de Portugal, que dirigiu, não esconde a ligação à “Nova História” dos Annales.

Houve também, contudo, uma historiografia que, sem renegar a herança dos Annales, reclamou o regresso à história política. O importante ensaio Apologia da História Política, de Maria de Fátima Bonifácio, é um claro representante desta corrente, que tem uma predominância óbvia no ICS, onde Vasco Pulido Valente ou Maria Filomena Mónica trabalharam toda a vida, contribuindo para a permanência deste tipo de História. É, aliás, de assinalar que Maria Filomena Mónica tenha não só um livro chamado Vidas, como tenha organizado um número da Análise Social inteiramente dedicado a biografias, como que numa provocação à ideia comum sobre o principal legado dos Annales – a desvalorização da História biográfica.

Há, é certo, outras maneiras de fazer História que têm, ainda hoje, o seu lugar. A História, muito levada a cabo no Instituto de História Contemporânea (que, de resto, é enorme, pelo que também alberga uma produção metodológica variadíssima), que Fernando Rosas dirigiu por vários anos, tem também a sua força na produção editorial. Ganhou, aliás, um peso ideológico importante, porquanto, pelo seu carácter particular, consegue exacerbar fenómenos cuja quantificação não faz parte deste método histórico. Isto é, se estudarmos a repressão policial no regime democrático, aquilo que temos é um levantamento dos casos que confirmará sempre a existência desta repressão, mas que não a enquadra dentro dos procedimentos opostos, ou em comparação com outros tipos de sociedade. Isto é, trata-se de um tipo de História especialmente útil do ponto de vista político porque a mera pergunta já confirma a tese.

Há uma aura de imparcialidade associada ao estrangeiro, uma lucidez, que faz olhar mesmo para os livros mais vulgares como representantes de uma espécie de abordagem desapaixonada que deve ser lida. Mesmo quando pouco dizem de novo, ou trazem interpretações vulgares ou pouco consequentes.

Todos estes tipos de História têm herdeiros contemporâneos, o que faz do caldo de Breve História de Portugal um confronto infindável de perspetivas. O livro de Raquel Varela e Roberto della Santa, recentemente publicado, traz uma perspetiva quase encantadora de tão declarada, na sua assunção da luta de classes como modelo interpretativo; já a História da Nação Portuguesa, de Yves Léonard, faz parte de uma tradição que também tem raízes fortes em Portugal.

Os estudos de estrangeiros sobre Portugal sempre mereceram muita atenção autóctone. Foi o que se passou com o Portugal de Ferdinand Denis, com a História de Portugal e do Império Português, de A, R. Disney (para não falar do excelente trabalho de Boxer, a partir do King’s College, sobre o Império Marítimo Português), com a biografia de Camões escrita por Storck ou com as muitas biografias, mais populares, de Elaine Sanceau. Há uma aura de imparcialidade associada ao estrangeiro, uma lucidez, que faz olhar mesmo para os livros mais vulgares como representantes de uma espécie de abordagem desapaixonada que deve ser lida. Mesmo quando pouco dizem de novo, ou trazem interpretações vulgares ou pouco consequentes, recebem uma atenção inusitada, como se só a partir de fora se pudesse perceber aquilo que é realmente importante ou original na História de um país. É o que se passa com a História de Yves Léonard, que pouco trará de novo ao leitor português sobre a História do seu país, mas trará sempre a curiosidade de uma perspetiva vinda de outras paragens. Não serão os livros mais importantes publicados sobre o assunto mas, se não trouxerem mais nada, pelo menos reforçam a consciência da História como um ofício interpretativo de um passado que nunca se deixa controlar por muito tempo.

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