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A rádio, a televisão, o disco. O cinema fica de fora enquanto motor de difusão da música, enquadrada no novo livro do historiador Luís Trindade na qualidade de estrutura de produção de sentido. Há momentos em Silêncio Aflito – A Sociedade Portuguesa Através da Música Popular dos Anos 40 aos Anos 70 (ed. Tinta da China) que falam de filmes em que a música é importante, como “A Menina da Rádio”, mas servem para ilustrar o percurso ascendente de uma dada canção numa determinada época – para exemplificar de que forma uma canção se torna popular.
“As estruturas da comunicação acabam por moldar em grande medida o tipo de música que se produz”, refere Luís Trindade, também autor de Foi Você que Pediu uma História da Publicidade?, num momento de pausa numa tarde passada na Biblioteca Nacional, onde se encontra a trabalhar acerca de dois filmes militantes das décadas de 60 e 70, os documentários argentino “La Hora de los Hornos” (1968, de Fernando Solanas e Octavio Getino) e o francês “Le Fond de l’Air Est Rouge” (1977, de Chris Marker) e assim pensar a época enquanto período de revolta através do cinema.
“A minha investigação partiu de uma leitura sistemática de duas revistas. Uma li-a durante 25 anos.” Leu a Século Ilustrado desde o final dos anos 40 ao início dos anos 70. A outra foi a Flama. “Os temas foram surgindo e eu senti necessidade de duas coisas: de falar sobre os diversos tipos de música no mesmo livro”, explica Trindade, uma vez que coexistiam num mesmo tempo e numa mesma sociedade e fazia portanto sentido falar sobre elas numa mesma narrativa. “E não me interessava escrever um livro sobre a rádio, outro sobre a televisão e outro sobre o disco – porque na realidade estava a fazer uma história cultural que tinha que conseguir sintetizar as várias coisas a acontecer na sociedade ao longo destes 30 anos.”
A cada época está associado um grande meio de difusão da canção: o crescimento da rádio nos anos 40, o avanço e crescimento da televisão nos anos 50 e 60 e a indústria fonográfica a partir dos anos 60. A cada período, Luís Trindade associou uma canção-estandarte, que se traduzem nos quatro capítulos do livro de 496 páginas: “Vocês Sabem Lá”, de Maria de Fátima Bravo (de 1958); “Desfolhada Portuguesa”, de Simone de Oliveira (de 1969); “A Lenda d’El-Rei D. Sebastião, dos Quarteto 111” (de 1968); e “Venham Mais Cinco”, de José Afonso (de 1973). Na verdade, Luís Trindade poderia ter ido até aos anos 80, mas diz que o livro tornar-se-ia insuportavelmente grande.
Mas comecemos pela definição da própria canção. Trata-se de uma estrutura produtora de sentido que se define pela sua brevidade e pela sua velocidade: é fácil de apropriar (é popular) e é fácil de se propagar (é ligeira, termo apropriado pelo Estado Novo). “O sentimento e a imaginação flexibilizam o que a estrutura e a comunidade possam ter de rígido e uniformizador”, refere a certa altura o livro. “Funciona como uma forma de comunicação social – de comunicarmos, de nos relacionarmos, de nos identificarmos uns em relação aos outros”, acrescenta Luís Trindade, professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras. A canção permite comunhão de imaginários e a partilha de valores – “conformistas e inconformistas”. A canção permite pensar também nos seus suportes.
“Vocês Sabem Lá” e a rádio
“A canção da rádio dos anos 40 não é a mesma que a canção da televisão nos anos 60 ou que a canção ouvida em disco nos anos 60”, esclarece Luís Trindade. “Essas formas de audição não só são muito determinantes para o tipo de canção que se faz, como também para o modo como se ouve.”
No pós-II Guerra Mundial e com a implementação do Plano Marshall, o plano norte-americano de ajuda à recuperação da economia europeia, começam a chegar também os hábitos de consumo e materialismo ao velho continente. A aliança entre o cinema, a rádio e a imprensa ajuda a criar a figura da vedeta, que se pauta por uma relação de proximidade com o público, por mais distante e inacessível que esteja. Através do aparelho de rádio, começamos a ouvir o som das suas vozes entrar-nos pela sala adentro, reunidos que estamos em família para ouvir.
Em 1958, acontece, segundo o Século Ilustrado, “o maior acontecimento artístico português dos últimos anos”. Trata-se do I Festival da Canção Portuguesa, organizado pela Emissora Nacional, e que decorreu no início do ano no cinema Império, em Lisboa. A grande vencedora foi Mária de Fátima Bravo com “Vocês Sabem Lá”, em que o repórter ressalva o “estilo de verdadeira artista internacional” da intérprete.
[“Vocês Sabem Lá”, o EP de Maria de Fátima Bravo, com a canção que lhe dá título:]
“Há formas de consumo cultural que corroem os princípios do Estado Novo só porque não são nacionalistas. E eu tento explorar isso no livro através, por exemplo, da canção romântica. A chamada música ligeira é uma criação do Estado Novo”, explica Luís Trindade. “O Estado Novo percebeu que tinha de criar um repertório ligeiro porque senão a rádio ficava completamente colonizada de canções estrangeiras.” Esta canção ligeira começa por ser folclórica mas depressa se torna romântica, para fazer face ao que vem lá de fora. É preciso ir ao encontro do gosto do público; a industrialização do espectáculo implica satisfazer os gostos da audiência.
“Desfolhada Portuguesa” e o fenómeno da TV
“O romantismo o que é? O romantismo é a paixão e, a partir de certa altura, começa a ser também a imaginação amorosa”, contextualiza Luís Trindade, sinalizando o surgimento da canção romântica no final dos anos 50.
“Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto”
A canção com letra da autoria do poeta Ary dos Santos e cantada por Simone de Oliveira é a vencedora do Grande Prémio TV da Canção em 1969, que a levará a representar Portugal na Eurovisão, em Madrid. Da história de amor fatalista em “Vocês Sabem Lá”, em que o corpo da intérprete é imaginado a partir da sua voz, chegamos agora àquilo a que Luís Trindade designa de um novo patamar da canção ligeira portuguesa, em que a intérprete tem de posicionar o corpo perante uma câmara de televisão.
[Simone de Oliveira e a “Desfolhada Portugues” na Eurovisão de 1969:]
https://www.youtube.com/watch?v=_XkGlejI98s
“Como [Madalena] Iglésias [em “Canção Para um Poeta”], a tarefa de Simone também passara pela difícil interpretação de uma letra com ambições poéticas. Ao contrário do que acontecera com a rival, porém, o poema de Ary dos Santos não a prendeu à sobriedade literária, abrindo-se à própria corporalidade da atuação”, refere o livro. “Não era só, talvez nem fundamentalmente, a famosa alusão sexual no início, mas uma carga erótica (…) com que a cantora se apropriou de imagens metafóricas que todos sabiam ser de Portugal naquele momento histórico.”
A prova de que esta canção tocou numa “corda sensível” do imaginário português naquele ano de 1969 reside no poder de fluidez da canção, no nível de extrapolação que alcançou: a letra foi apropriada pelo provérbio – “quem faz um filho, fá-lo por gosto”.
“A Lenda D’El-Rei D. Sebastião”, o ié-ié e o fenómeno do disco
“No livro, gostei muito de citar um excerto do romance de Maria Judite Carvalho [Os Armários Vazios], onde há uma mãe que descreve uma situação à tarde, lá em casa. A filha traz uns amigos, põe um disco e começam a dançar”, conta Luís Trindade. “A descrição é lindíssima, até porque a narradora, a mãe, não está a criticar. Tem uma relação generosa com o que está a ver, e o que diz é que aquela dança fez com que entrassem numa outra dimensão. Em que era o corpo e não a cabeça a mandar.”
O consumo, cultural e não só, continua a crescer nos anos 60 em Portugal, a par dos processos de industrialização, urbanização e alfabetização. “A Europa começa a reconstruir-se e a desenvolver-se muito. Esta confiança no progresso e no futuro é muito mais mitigada num país que está sob ditadura, com uma guerra colonial pela frente e que é o país mais pobre da Europa ocidental”, contextualiza o autor de Silêncio Aflito. “Mas, lá está, as pessoas podem, apesar da sua realidade concreta, imaginar um futuro diferente. Acho que os portugueses tiveram muitos mecanismos para imaginarem futuros diferentes.”
É neste contexto que, diz Luís Trindade, a juventude ganha um estatuto social único e inovador. “E aí o rock em Portugal desempenha um papel fundamental, ainda que tenha sido um género que tenha tido algumas dificuldades para se impor, naquela época”, defende. “Em grande medida porque a juventude ainda não é aquela juventude com a capacidade de consumo, de ter uma vida noturna, de criar culturas juvenis, como ao nível dos Estados Unidos, de França, de Itália ou de Inglaterra.” E acrescenta: “houve muito rock e ié-ié nos anos 60 e 70 – para mim foi bastante interessante descobrir isso –, mas, por algum motivo, se diz que houve um boom do rock em ’81, que quase apagou da memória social este ié-ié dos anos 60”.
A mulher é também um dos sujeitos mais visíveis do progresso, refere o livro, e, com isso, vem a juvenilização da imagem feminina, o efeito Lolita. É de Simone a frase “o público gosta de juventude.” Com os anos 60 e a chegada do rock’n’roll a Portugal (o efeito da beatlemania – “yeah yeah yeah”, ié-ié – também aterrou por cá), chega também a indústria fonográfica e, com isso, a importância do estúdio, da gravação em estúdio, da composição.
E se houve canção que soube ser o epíteto dos anos 60 e do ié-ié foi “A Lenda D’el-Rei D. Sebastião”, do Quarteto 111. “Se ‘estrutura’ é a palavra-chave do momento histórico, então pode dizer-se que o que faz de ‘A Lenda D’el-Rei D. Sebastião’ uma canção-chave do rock em Portugal está, de alguma forma, na sua qualidade estrutural”, refere Trindade no livro. “Mas ‘estrutura’, aqui, refere-se menos à máquina administrativa dos conjuntos ou à relação da música com a sociedade, e mais a uma qualidade interior à própria construção sonora.”
[“A Lenda D’el-Rei D. Sebastião”:]
“Há muita coisa que está a acontecer no rock que normalmente não acrescentamos às nossas narrativas políticas. Mas, de repente, quando começamos a imaginar a sala do Monumental, aqui em Lisboa, com imensos rapazes e raparigas a dançar mais ou menos descontroladamente, percebemos que ali está a acontecer algo de novo, que vai em contracorrente à ideologia do Estado Novo.”
“Venham Mais Cinco” e a nova canção portuguesa
Já a estrutura ligada à juventude universitária é a da balada e da chamada canção de intervenção, estruturas essas que funcionam como canção oficial das lutas estudantis. “O Adriano Correia de Oliveira, o José Afonso, vêm sobretudo de Coimbra”, explica Luís Trindade. “Há um historiador que cito no livro, o Rui Bebiano, que diz, a certa altura, que não eram muito comuns casos como o dele próprio – que nos anos 70 era um militante político da extrema-esquerda e apreciador de rock.” A banda sonora da revolta política juvenil é composta pela chamada “nova canção portuguesa”.
A 21 de fevereiro de 1968, o movimento estudantil organizou em Lisboa uma manifestação contra a Guerra do Vietname, junto à embaixada dos Estados Unidos, então na Avenida Duque de Loulé, em que se proclamavam valores anti-imperialistas e anti-colonialistas. “Estamos num espaço público censurado, onde, por exemplo, nos anos 60, a guerra ou desaparecia ou a sua parte mais violenta ia sendo bastante filtrada”, explica Trindade. “As narrativas que se vão construindo acerca da guerra são narrativas subversivas, que se tentam encontrar de maneiras mais ou menos escondidas.” Luís Trindade defende que, à falta de imagens da guerra nas colónias portuguesas, as pessoas imaginaram o que se estava a passar através do viam acontecer na Argélia (contra a França) e no Vietname. Uma espécie de “narrativa em segunda mão”.
É o uso dessa capacidade de imaginação, dessa capacidade de subversão da mensagem, política, que define a chamada “nova canção portuguesa”.
“Venham mais cinco
duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto
se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta
dá-lhe um apito e põe-no a andar”
[“Venham Mais Cinco”, José Afonso ao vivo no Coliseu dos Recreios:]
Assim canta Zeca Afonso em “Venham Mais Cinco” (1973), canção usada para ilustrar o capítulo dedicado à nova canção portuguesa no livro Silêncio Aflito. Foi esta a canção inicialmente escolhida para dar o sinal de avanço às tropas na madrugada de 24 para 25 de abril de 1974, mas decidiram trocá-la pela “Grândola, Vila Morena” por ter uma letra menos explícita e por isso menos denunciadora dos seus planos quando passasse na rádio.
O estúdio e as técnicas de gravação desempenham também um papel central na nova canção portuguesa. “Quando o Adriano Correia de Oliveira, o José Afonso e outros começam a criar uma balada nova, muitos veem aí uma canção anti-fascista que podia ser usada não só como uma forma de combate político mas também como um modo de resgatar tradições musicais àquilo que era o folclorismo do Estado Novo”, explica Luís Trindade.
Se Simone foi uma mulher de uma enorme coragem política, ao ousar continuar a atuar depois de casada, de ter tido filhos fora do casamento, de ser ter divorciado, já a nova canção portuguesa não teve vozes femininas, faz notar Luís Trindade. “Estamos habituados – e é uma coisa que não digo tão claramente como devia na conclusão do livro – a olhar para a tradição oposicionista na música do José Afonso, do José Mário Branco, na balada, na canção de protesto, e não nesta música ligeira”, admite Luís Trindade. “Tento dizer que há coisas que estão a acontecer na música ligeira dos anos 60 e 70 que não se pode considerar de oposição política, mas que já estão a corroer as fundações morais e ideológicas do Estado Novo.”