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Os generais de Abril

Os capitães foram fundamentais para fazer o 25 de Abril, mas a revolução precisou dos generais para acontecer e a sua história também precisa deles para fazer sentido. Um ensaio de Rui Ramos.

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Na história oficial, a revolução de 1974 ficou como a revolução dos jovens capitães e majores que, a 16 de Março, a partir das Caldas da Rainha, e depois novamente a 25 de Abril, com base nas escolas militares à volta de Lisboa, derrubaram a ditadura do Estado Novo. Foram eles que estiveram nas ruas, que comandaram soldados, que forçaram rendições. Mas no dia 25 e nos dias seguintes, ninguém lhes sabia os nomes nem sequer lhes vira as caras, com excepção do capitão Salgueiro Maia, que chefiara o cerco ao quartel da GNR no Largo do Carmo. A revolução foi então atribuída aos generais e almirantes que apareceram na RTP ao fim da noite do dia 25, formados em Junta de Salvação Nacional, como num golpe de Estado militar clássico. As capas da imprensa, em Portugal e no estrangeiro, não resistiram à imagem do general Spínola, o presidente da Junta e depois Presidente da República, com o seu monóculo dos anos 30. Foi o primeiro ícone da revolução, tanto como o cravo vermelho.

Nos meses seguintes, porém, os “capitães” do MFA pareceram de facto ultrapassar os generais. Em Abril de 1974, a revolução começara como transição para uma democracia de tipo ocidental, com a colaboração de um largo espectro de gente, incluindo ministros de Marcello Caetano (como José Veiga Simão). Mas a partir do Outono desse ano, e sobretudo da Primavera de 1975, ameaçou converter-se na última revolução socialista da Europa, reservada ao PCP e à extrema-esquerda. O chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso) falhou. Conseguiu, porém, reduzir a história do 25 de Abril aos “capitães”. No entanto, antes dos “capitães”, tinha havido os “generais”.

Sem os generais, a revolução nunca provavelmente teria acontecido, como aliás um desses generais, Costa Gomes, fez questão de notar anos depois: no dia 25 de Abril de 1974, as tropas mobilizadas para a revolução – 150 oficiais e 2000 soldados, a maior parte instruendos das “escolas práticas”, sem qualquer experiência de combate — nunca, em circunstâncias normais, teriam sido suficientes para derrubar um regime que, nesse ano, mantinha mais de 150 000 homens em armas. Implicitamente, Costa Gomes deu a entender que isso só aconteceu na medida em que oficiais superiores como ele já teriam desmontado a ditadura por cima, impedindo-a de se defender. Sem querer diminuir o papel dos “capitães”, o facto é que o 25 de Abril precisou dos generais para acontecer – e a sua história também precisa dos generais para fazer sentido.

Uma revolução que veio de cima

A revolução de 25 de Abril de 1974 começou treze anos antes, com a guerra que iria ser a sua causa principal. Na Primavera de 1961, houve logo, entre o pessoal dirigente do regime, quem considerasse uma guerra em África insustentável e desejasse fazer evoluir o estatuto dos territórios africanos que Salazar insistia em tratar, contra as Nações Unidas, como simples “províncias ultramarinas”. Foi assim que o general Botelho Moniz, ministro da Defesa, tentou forçar a demissão de Salazar em Abril de 1961. Constou que a ideia era substituí-lo por Marcello Caetano, identificado com ideias de “liberalização” e depois associado a uma proposta “federalista” contrária a um suposto “integracionismo” salazarista.

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Os comandantes-chefes aumentaram a pressão sobre o governo. Spínola sugeriu negociações com o PAIGC; Kaúlza propôs um novo dispositivo militar conjunto para Angola e Moçambique, sacrificando eventualmente a Guiné. Frustrados nesses projectos, passaram a frustração aos seus colaboradores e admiradores.

Foi a primeira “abrilada”, e foi também então que subiram ao palco os personagens principais das intrigas político-militares que dariam origem, anos depois, ao 25 de Abril: os futuros generais Costa Gomes, Kaúlza de Arriaga e Spínola. O primeiro, enquanto subsecretário de Estado do exército, conspirou contra Salazar, e os outros dois defenderam-no, especialmente Kaúlza, subsecretário de Estado da aeronáutica. Mas todos, embora em campos opostos, eram críticos da situação: “isto precisa de mudar”, escreveu Spínola a Salazar em 1961. Consciente disso, e para manter equilíbrios, Salazar absteve-se de punir os que tinham conspirado contra si, mas também de recompensar os que o tinham defendido. Costa Gomes foi demitido do governo logo em 1961 e Kaúlza em 1962. Todos, porém, puderam prosseguir as suas carreiras militares, de tal modo que no fim da década de 1960 se encontraram nos comandos-chefe de África: Costa Gomes em Angola, Spínola na Guiné e Kaúlza em Moçambique.

Durante alguns anos, fez-se a guerra em África como Salazar queria. O país mudou muito, com a emigração, a industrialização e a integração no comércio europeu. Mas o problema do “ultramar” manteve-se. Em 1968, quando finalmente Caetano substituiu Salazar, esperou-se uma “evolução”. E houve alguma. Salazar optara por uma guerra de baixa intensidade, para durar muito tempo. Caetano deixou a guerra intensificar-se, dando aos comandantes-chefes mais meios e sobretudo muita margem para iniciativas e para auto-promoção. Costa Gomes, em Angola, manteve-se mais ou menos discreto. Mas Spínola, na Guiné, parecia já o presidente de uma república africana, e Kaúlza, em Moçambique, o César da África austral. Quebrada a rotina de uma guerra sem prazo definido, criou-se a expectativa de um desenlace para breve. Por volta de 1970, falou-se frequentemente do fim próximo da guerra.

Em termos de grande arquitectura política, porém, Marcello Caetano não foi além de uma “autonomia progressiva”. Acreditou-se que o obstáculo a progressos mais drásticos era o Presidente da República. O almirante Tomás, escolhido por Salazar em 1958, tinha 78 anos e já fizera dois mandatos. Em 1972, tanto Kaúlza (com 57 anos) como Spínola (com 62) esperaram substituí-lo. Cultivaram, para o efeito, imagens públicas de chefes memoráveis. Spínola escolheu adereços conspícuos (o monóculo) e deu-se a cenas espectaculares (as descidas no mato de helicóptero, os banhos de multidão africana). Kaúlza vivia em conferências de imprensa, sempre a anunciar grandes operações. Mas Caetano não confiou nos “senhores da guerra”. Preferiu manter o almirante Tomás, e jogar os comandantes-chefes uns contra outros. Foi então, nesse ano de 1972, que tudo se começou realmente a desfazer.

O general António de Spínola

Os comandantes-chefes aumentaram a pressão sobre o governo. Spínola sugeriu negociações com o PAIGC; Kaúlza propôs um novo dispositivo militar conjunto para Angola e Moçambique, sacrificando eventualmente a Guiné. Frustrados nesses projectos, passaram a frustração aos seus colaboradores e admiradores. Gerou-se assim nas forças armadas, a partir de 1972, um ambiente que foi o reverso das grandes expectativas que tinha havido em 1970. Todas as dificuldades, especialmente na Guiné, foram dramaticamente encaradas como prenúncio de um “colapso” ao estilo de Goa, de que, naturalmente, o governo seria o culpado. No Verão de 1973, Kaúlza e Spínola regressaram à metrópole, melindrados e conspirativos.

Marcello Caetano, entretanto, captara Costa Gomes, a quem nomeara chefe do EMGFA em 1972. Costa Gomes tentou evitar uma conjunção entre Kaúlza, seu velho inimigo de 1961, e Spínola. Este, em Setembro de 1973, ainda parecia disposto a conspirar com Kaúlza num novo “28 de Maio”, contra Marcello Caetano. Mas em Janeiro de 1974, aceitou o inusitado cargo de vice-chefe do EMGFA, criado de propósito para ele. Segundo Kaúlza, a mudança de campo de Spínola, ao dividir os conspiradores, impediu o golpe de generais que ele estava a preparar. E permitiu, pelo contrário, o golpe dos capitães e dos majores uns meses depois.

As conspirações dos generais

Fala-se muito das conspiração dos capitães e dos majores. Mas a conspiração dos generais foi pelo menos tão importante, para dificultar qualquer unidade, pelo menos defensiva, da ditadura. Publicamente, foi aliás pelos generais que começou a revolução, quando, a 8 de Dezembro de 1973, o semanário Expresso anunciou que o general Spínola tinha pronta uma “uma obra de tese”. O editor, Paradela de Abreu, da Editora Arcádia, preparou o lançamento com cuidados conspirativos: percebera que “este livro é a revolução”. O livro, elaborado pelo general e um grupo de colaboradores, derivava de discussões antigas no regime. O título fazia eco de um polémico livro de 1962, do deputado Manuel José Homem de Melo, prefaciado pelo ex-presidente Craveiro Lopes (também dissidente do salazarismo): Portugal, o Ultramar e o Futuro. As ideias principais eram as mesmas. Até a célebre frase de choque – “parece evidente a impossibilidade de ganhar a guerra apenas no campo militar” — tinha antecedentes num artigo de Costa Gomes no Diário Popular, cuja publicação a censura (isto é, Salazar) consentira em 1961. Constava, aliás, de qualquer manual de “contra-subversão”.

Sem a intriga dos generais, os protestos e conspirações dos jovens oficiais do MFA não teriam ido longe. Começaram com queixas corporativas, que aliás tiveram um relativo bom acolhimento por parte do governo, e acabaram a preparar o fim do regime. Eram sobretudo antigos oficiais da Guiné, a que se juntaram alguns poucos esquerdistas e uma grande maioria de oficiais sem clara identidade política.

Em Portugal e o Futuro, que em 1974 foi editado, reeditado e traduzido como o livro que explicava o 25 de Abril, Spínola desfiava o rosário habitual dos críticos internos do regime salazarista na década de 1960: o mundo mudara e havia outras expectativas. “O tempo dos dogmas está ultrapassado”. Não se podia fingir que a emancipação nacional não estava na ordem do dia em África, ou ignorar que os portugueses ansiavam por uma prosperidade europeia e não por morrer numa guerra africana, dispendiosa e sem fim. A “crise” era a “mais grave da história de Portugal”. Contra os que, para evitar a desagregação do país, não viam alternativa à ditadura na metrópole e à guerra em África, Spínola sugeria uma via liberalizante e federalista que preservaria a “nação” enquanto ligação entre povos de diferentes continentes, mas em paz e democracia.

Spínola tinha os devidos exemplos para ser optimista. O Brasil provava a capacidade nacional para criar nos trópicos sociedades multirraciais de expressão portuguesa. O seu governo na Guiné, entre 1968 e 1973, demonstrava, segundo Spínola, ser viável atrair os africanos, como ele fizera com os seus “congressos do povo” e políticas de promoção sócio-económica. Tinha também o exemplo de Leopold Senghor, o presidente do Senegal, um chefe de independência africana, mas anticomunista e francófilo. Era preciso encontrar os Senghores das colónias portuguesas, capazes de conduzir em regime de liberdade e participação popular os referendos que legitimariam democraticamente uma grande “federação de estados portugueses”, independentes mas unidos – a “comunidade lusíada”. Haveria assim a possibilidade de Portugal renunciar ao “império” sem abdicar da “grandeza”, e de acabar a guerra sem enveredar pelo “abandono”.

A saída do livro reflectia os jogos de poder no regime. Spínola publicara-o porque precisava, apesar do seu novo cargo, de distanciar-se de Caetano – usando ideias que tinham sido atribuídas ao chefe do governo noutros tempos. Caetano, pelo seu lado, não impedira a publicação, talvez para deixar que Spínola, com o seu “federalismo”, aparecesse como um polo oposto ao “integracionismo” atribuído a Américo Tomás, à volta do qual passara a orbitar Kaúlza. Caetano também tivera fama de “federalista” na década de 1960. Mas logo na conferência anual da Acção Nacional Popular, a 10 de Fevereiro de 1974, mencionou a “federação”, apenas para considerar que já não a considerava possível. O argumento de Caetano era que, ao contrário do que dizia Spínola, não bastaria liberalizar e “federalizar” para chegar à paz. Teria de se negociar com a guerrilha. Ora, esta e as potências que a patrocinavam só aceitariam um cessar-fogo em troca da entrega imediata do poder. Caetano sabia disso, porque abrira, secretamente, contactos com o PAIGC. Não havia alternativa à guerra, a não ser o “abandono” e a ditadura dos partidos armados apoiados pela União Soviética.

Kaúlza de Arriaga

Pouco depois da publicação de Portugal e o Futuro, Caetano ter-se-ia disposto a entregar o poder a Spínola e a Costa Gomes. Não se deve levar demasiado a sério essa disponibilidade: Marcello Caetano sabia que Tomás nunca aceitaria um governo de Costa Gomes e de Spínola. O Presidente da República, indignado, lera o livro tal como o leu a oposição de esquerda: como o descrédito do esforço de guerra em África e um sinal público de insubordinação nas forças armadas. Esta ficou patente a 14 de Março de 1974, quando os comandos militares foram convidados a manifestar a sua fidelidade a Marcello Caetano. Todos notaram as ausências: Costa Gomes, Spínola, e Kaúlza. Nesse mesmo dia, Spínola e Costa Gomes foram demitidos. Entretanto, a crise económica, provocada pelo choque petrolífero de Outubro de 1973, acentuava a atmosfera de fim de uma época.

Os generais e o MFA

Sem a intriga dos generais, os protestos e conspirações dos jovens oficiais do MFA não teriam ido longe. Começaram com queixas corporativas, que aliás tiveram um relativo bom acolhimento por parte do governo, e acabaram a preparar o fim do regime. Eram sobretudo antigos oficiais da Guiné (em destaque no levantamento das Caldas da Rainha, de 16 de Março de 1974), a que se juntaram alguns poucos esquerdistas e uma grande maioria de oficiais sem clara identidade política. Tiveram sempre contactos discretos com Spínola e Costa Gomes, mas também com Kaúlza. A ideia, aparentemente, era fazer como o general De Gaulle em França, em Maio de 1958: perante o impasse da guerra na Argélia, deixou as forças armadas fazer pressão sobre o governo, de modo a ser chamado pelas autoridades da IV República, que basicamente lhe entregaram o poder. A ideia de um “movimento das Forças Armadas” teve origem nesse precedente francês.

Na famosa reunião conspirativa de capitães e de majores em Óbidos, Dezembro de 1973, os nomes dos três generais foram discutidos como possíveis chefes de um movimento militar. Kaúlza de Arriaga era um equívoco, mas ele próprio se apercebeu disso. Kaúlza não se julgava menos reformista ou modernizador. Mas tinha um projecto muito diferente de Spínola: tratava-se de continuar a guerra, mas concentrando os recursos em Angola e em Moçambique, no âmbito de um bloco de defesa na África Austral, com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul. Ao contrário de Spínola, sabia que esse projecto era incompatível com a democracia, isto é, com qualquer regime em que a oposição de esquerda estivesse à vontade. Ficou assim prisioneiro das hierarquias da ditadura e acima de tudo do presidente da república, de quem esperou, quase até ao último minuto, que demitisse Marcello Caetano e o nomeasse a ele chefe do governo. A sua revolução teria de ser de palácio. De facto, serviu apenas para ajudar a dividir e a minar ainda mais a ditadura.

O general contrariado da descolonização

Ao fim da tarde de 25 de Abril de 1974, Marcello Caetano rendeu-se pessoalmente a Spínola no quartel da GNR do Largo do Carmo. Quase de certeza, nunca se teria rendido ao major Otelo Saraiva de Carvalho, o autor do plano do golpe, de quem Mário Soares, dois meses depois, ainda nunca tinha ouvido falar. Spínola foi essencial. Os capitães, no dia do golpe, fizeram constar frequentemente que contavam com ele, para obter rendições ou simplesmente a neutralidade de muitos militares que teriam combatido e provavelmente derrotado um golpe claramente oposicionista. O nome do general – ferozmente anti-comunista e contrário ao “abandono” de África — deu a muitos no regime a garantia necessária para não resistirem. Ao contrário do que é costume dizer, não foi por acaso ou por simples condescendência dos jovens revolucionários que Spínola se tornou Presidente da Junta de Salvação Nacional e depois Presidente da República.

Só alguém como Spínola, antigo combatente e apóstolo de uma “comunidade lusíada” democrática e multirracial, poderia ter reconhecido o direito dos territórios africanos à autodeterminação e à independência (discurso de 27 de Julho de 1974), sem revoltar logo os portugueses de África com a perspectiva de serem abandonados às ditaduras sanguinárias dos cinicamente chamados “movimentos de libertação”.

Em 1974, o livro do general vendeu 200 mil exemplares. Mas nos meses seguintes à revolução, provou ser um mau guião dos acontecimentos. Portugal, em vez da ordeira “liberalização progressiva”, tombou num “processo revolucionário”; em África, em vez da prometida autodeterminação por via eleitoral, sucedeu uma simples entrega dos territórios e das populações às guerrilhas independentistas. Spínola não durou no poder: a 30 de Setembro de 1974, renunciaria à presidência.

Para explicar este grande desapontamento, é costume invocar os “erros” e a “falta de jeito” do general para a política. Mas se de alguma coisa Spínola foi culpado, foi sobretudo de não renunciar às suas ideias, mesmo contra as circunstâncias. Estas nunca lhe foram favoráveis. Depois de sanear a hierarquia militar (42 dos 85 oficiais generais foram passados à reserva em Maio de 1974), não dispôs de outros pontos de apoio que não o MFA e o general Costa Gomes, entretanto nomeado outra vez Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Spínola fez muitos discursos pelo país, procurou banhos de multidão, e propôs, numa inversão do calendário eleitoral, que o presidente da república fosse eleito antes da Assembleia Constituinte. Quase ninguém o quis acompanhar, porque quase ninguém, quer no exército, quer entre os novos partidos políticos, desejava a tutela de um De Gaulle à portuguesa. Spínola teve assim sempre menos poder do que parecia.

De facto, a sua influência, durante o Verão de 1974, não dependeu das forças que ele tinha para opor aos oficiais revolucionários do MFA, mas da necessidade que esses oficiais revolucionários tinham de uma figura como ele. Sem o general, os capitães não se sentiam à vontade. Em 1974, mais de meio milhão de portugueses europeus vivia em África. Só alguém como Spínola, antigo combatente e apóstolo de uma “comunidade lusíada” democrática e multirracial, poderia ter reconhecido o direito dos territórios africanos à autodeterminação e à independência (discurso de 27 de Julho de 1974), sem revoltar logo os portugueses de África com a perspectiva de serem abandonados às ditaduras sanguinárias dos cinicamente chamados “movimentos de libertação”. Também só alguém como Spínola, conhecido anti-comunista, poderia ter nomeado o primeiro líder comunista membro do governo de um país da NATO, sem isso causar alarme nos outros governos ocidentais.

O general Costa Gomes

A descolonização nunca foi o grande projecto de autodeterminação democrática imaginado por Spínola. Os partidos independentistas em África só estavam interessados num trespasse de poder, isto é, na substituição da ditadura salazarista pelas suas ditaduras de partido único, sem eleições e sem liberdade. Teria sido preciso continuar a guerra para os obrigar a ir a votos. Mas a disciplina militar no terreno não resistiu ao golpe de Estado, nem aquele esforço de guerra era verdadeiramente compatível com uma democracia. Os EUA, paralisados pelo Watergate, também não ampararam Spínola. Numas forças armadas onde toda a gente sentia a urgência de sair de África, os oficiais esquerdistas, os mais determinados em retirar, adquiriram uma predominância com que nunca terão sonhado. O problema de Spínola é que nunca se conformou, como todos lhe pediam. Empenhara a sua palavra junto das populações africanas. Em Novembro de 1972, discursando na Guiné, fizera uma promessa solene: “asseguro-vos que jamais estareis sós”. Portugal nunca abandonaria a Guiné. Mas agora, para acabar com a guerra, era precisamente isso que Portugal ia fazer, deixando os guineenses à mercê da vingança e da repressão do PAIGC. Os oficiais do MFA viram por isso Spínola genuinamente transtornado, depois de ter acabado de ler o discurso de 27 de Julho.

Até ao fim, tentou, como ele disse, “salvar o possível no meio do impossível”. Ao contrário de outros, não quis esperar por umas eleições que pudessem reduzir a influência comunista. Envolveu-se em conspirações. Com isso, porém, deu apenas aos revolucionários, a 28 de Setembro de 1974 e a 11 de Março de 1975, o pretexto necessário para fazer avançar o PREC em nome da resistência à “reacção”.

O general misterioso da revolução

Durante o PREC, falou-se sobretudo de capitães e de majores, mesmo quando graduados generais. Mas houve sempre um general de carreira na linha da frente: o general Costa Gomes. Os capitães e majores do MFA tentaram concentrar o poder nas suas assembleias e conselhos, mas nunca de facto dispensaram Costa Gomes: ele foi  Presidente da República, e quando apareceu o Conselho da Revolução, como órgão supremo do Estado, em 1975, passou a presidir também ao Conselho da Revolução. Durante todo esse tempo, permaneceu como Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Costa Gomes era um general muito diferente, quer de Spínola, quer de Kaúlza. Ao contrário dos outros dois, não se sabia bem o que pensava. Spínola e Kaúlza esforçaram-se por compor figuras de grandes chefes militares; Costa Gomes não se importava de parecer um pachorrento chefe de secretaria. Os outros falavam, ele ouvia. Os outros estavam rodeados de cortes de fiéis, ele parecia desligado, quase que sozinho. Nas reuniões, em 1974, muita gente reparou em como ele evitava envolver-se em debates, e conservava os olhos pregados nos papéis que tinha à frente. Toda a gente, em certos momentos, pareceu confiar nele: Marcello Caetano, Spínola, os oficiais esquerdistas do MFA. Toda a gente, em outros momentos, se sentiu traída por ele: Marcello Caetano, que achou que Costa Gomes o tinha traído com Spínola; Spínola, que se convenceu de que Costa Gomes o tinha traído com os esquerdistas do MFA; e, finalmente, os esquerdistas do MFA, como o coronel Varela Gomes, persuadido de que Costa Gomes tinha sido o principal inimigo da revolução em Portugal.

Em geral, sempre que os militares, em 1975, se aproximaram de uma situação de confronto, tenderam, de um lado e do outro, a tratar Costa Gomes como uma espécie de árbitro. Quer a 11 de Março de 1975, quer a 25 de Novembro, a questão para os vários grupos em luta pareceu consistir, em grande medida, em captar o Presidente da República para o seu lado.

Para o explicarem, uns imaginaram-no agente da CIA, outros nas mãos do PCP. Não é necessário, porém,  recorrer a teorias da conspiração. Também não vale a pena tentar adivinhar aquilo em que Costa Gomes acreditava em termos políticos, porque não era nesses termos que ele raciocinava, mas em termos militares. Em 1974, alinhou com os oficiais esquerdistas do MFA numa retirada rápida de África, porque se persuadiu de que o exército já não estava, depois da revolução, em condições de continuar a guerra; no fim de 1975, deixou cair o esquerdismo militar, porque percebeu que o MFA revolucionário era incapaz de assegurar a ordem e a legalidade no país. Mas nunca actuou através de confrontos. Anos depois, explicou que “se uma pessoa não tem força para impor uma solução, tem então de conversar, de contemporizar, de aguentar, de discutir, de harmonizar posições”.

Por vezes, parecia que não podia nada; outras vezes, pelo contrário, parecia poder tudo. Em geral, sempre que os militares, em 1975, se aproximaram de uma situação de confronto, tenderam, de um lado e do outro, a tratar Costa Gomes como uma espécie de árbitro. Quer a 11 de Março de 1975, quer a 25 de Novembro, a questão para os vários grupos em luta pareceu consistir, em grande medida, em captar o Presidente da República para o seu lado, de modo a cobrirem-se com a sua legitimidade enquanto acusavam os adversários de rebelião. Se nos lembrarmos que a disputa política em 1975 passava pelos quartéis, mesmo em revolução, percebemos como a noção de autoridade legítima era fundamental. Nunca os revolucionários a puderam dispensar. Ora, não havia mais ninguém para representar essa legitimidade como Costa Gomes, Presidente da República e Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Costa Gomes foi salomónico: tal como deu legitimidade aos “gonçalvistas” – o sector do MFA identificado com o coronel Vasco Gonçalves e alinhado com o PCP — a 11 de Março de 1975, também deu legitimidade aos inimigos dos gonçalvistas a 25 de Novembro do mesmo ano. Escolheu friamente, em função da correlação de forças. Chamaram-lhe, por isso, o “rolha”. Em momentos cruciais, fez diferença. Por exemplo, na “assembleia selvagem” do MFA, na noite de 11 de Março de 1975, onde se falou de fuzilamentos e se decidiu as nacionalizações. Costa Gomes presidiu a essa assembleia. Segundo o seu inimigo Varela Gomes, foi ele quem, já numa madrugada fria e chuvosa, com todos os oficiais revolucionários cansados e distraídos, propôs que a assembleia confirmasse que as eleições para a Assembleia Constituinte iriam realizar-se mesmo em Abril de 1975 – as eleições destinadas precisamente a tirar aos revolucionários a legitimidade para dizerem que falavam em nome do país. Em Agosto de 1975, revoltou os “moderados” ao dar posse ao V Governo Provisório de Vasco Gonçalves; mas desmoralizou os “gonçalvistas” quando, na própria cerimónia de tomada de posse, na sua inconfundível voz rouca, esclareceu que o governo era apenas temporário e não iria durar.

Uma prioridade: evitar a guerra civil

Ao contrário dos jovens oficiais revolucionários, controlados pelo PCP ou excitados pela companhia dos estudantes da extrema-esquerda, Costa Gomes estava muito consciente da integração ocidental de Portugal, com umas forças armadas dependentes da NATO e uma economia já então mais ou menos enquadrada pela CEE. A ideia de uma Cuba europeia deve ter-lhe sempre parecido ridícula. Como notou o coronel Melo Antunes, a sensação de que a revolução estava a levar o país para um beco sem saída foi decisiva nas grandes assembleias militares de Setembro de 1975, onde o esquerdismo começou a recuar. Que fariam, quando acabasse o dinheiro para pagar importações? Mas Costa Gomes teve ainda do seu lado outros dois sentimentos: a relutância de todos, civis e militares, em aceitar um regime puramente militar, sem partidos, e o receio geral, a que só escapavam uns quantos exaltados, de uma guerra civil. Esta última era, talvez, a sua preocupação dominante. Raciocinava, a esse respeito, como um membro da corporação militar: a guerra civil era a divisão do exército, e para ele não havia pior perspectiva.

Em 1975, a democracia pluralista de tipo ocidental era, desse ponto de vista, a melhor solução. Mas Costa Gomes foi certamente importante para que o país pudesse adoptá-la. 

Nada, para Costa Gomes, podia justificar uma tragédia como tinha sido a guerra de Espanha entre 1936 e 1939. Mas precisamente por isso, teria talvez aceite, só para evitar a guerra civil, uma ditadura de inspiração comunista, tal como, depois do 25 de Novembro, aceitou a democracia, e tal como, antes de 1974, aceitara quase até ao fim a ditadura de Salazar e de Marcello Caetano. Com ele, não havia de facto soluções boas ou más em princípio: cada solução era boa ou má apenas na medida em que o seu custo, em termos de conflito e de violência, fosse baixo. Em 1975, a democracia pluralista de tipo ocidental era, desse ponto de vista, a melhor solução. Mas ele foi certamente importante para que o país pudesse adoptá-la. O actual regime, nas suas comemorações, tem o direito de homenagear os “capitães”; a história, a quem importa sobretudo compreender o que se passou, tem a obrigação de não esquecer os “generais”.

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