Chego pouco depois das cinco da tarde à Altice Arena, onde uma fila de cinquenta adolescentes já espera que as portas se abram. Estão ali desde manhã. Entro no recinto e, sentado ao piano, um rapaz mais novo do que eu, com a fotografia do avô ao lado, toca uma balada. Está ali desde as onze a ensaiar o concerto do princípio ao fim, para que o dia com que sonha desde puto corra tal e qual como o imaginava no seu quarto de adolescente em Estarreja. Testa o som, as luzes, a voz e até o que dirá entre cada cantiga. Ouço as duas últimas músicas do alinhamento e sigo com a comitiva para a zona dos meet and greets, onde conheço a Kika, uma das participantes do programa The Voice Kids que sonha chegar ao patamar do seu ídolo. Nem dois minutos depois, Fernando Daniel aproxima-se da fila onde umas centenas de fãs vestidas com cachecóis e T-shirts do cantor aplaudem e gritam o seu nome. A um canto da sala, o pai de Fernando assiste a tudo isto em silêncio, acompanhado do neto, o pequeno Diego, de onze anos, que dali a umas horas também subirá ao palco para cantar com o tio o refrão de uma das músicas mais aguardadas da noite.
O pai de Fernando Daniel trabalhou a vida inteira numa fábrica de automóveis. Sempre gostou de cantar mas era tímido. Fala comigo, responde a tudo o que lhe pergunto mas nem por um segundo desvia o olhar embevecido do filho. Lembra-me as noites em que chegava a casa, já com todos a dormir, e “ouvia o Fernando ensaiar, sozinho no quarto”. Só nesse momento percebo a importância do que está prestes a acontecer, uma importância que as pessoas com quem converso só me conseguem transmitir falando uma e outra vez do sítio de onde vieram.
Enquanto uma rapariga passa por nós a chorar baba e ranho depois de ter abraçado o cantor, o pai diz-me que no dia em que o Diego nasceu, o Fernando Daniel marcou um golo quase do meio-campo. O árbitro andou uns metros valentes a correr atrás dele, de amarelo em punho, para o punir por ter mostrado uma camisola onde dedicava aquele momento ao sobrinho. Ao ouvir isto, percebo que se o Fernando Daniel faz questão de cantar acompanhado do sobrinho talvez não seja por querer partilhar com os seus aquele momento mas antes por saber que isso o ajuda a marcar golões do meio da rua.
Nos bastidores, a equipa técnica que por ali anda desde as seis da manhã do dia anterior faz uma breve pausa em redor do frigorífico das bebidas e da mesa repleta de queijos e salgados. Preparo-me para entrevistar a banda. Entro no camarim, onde as namoradas de dois dos músicos alisam o cabelo, espreitam o telefone e retocam a maquilhagem, perto de um charriot cheio de camisas floridas e casacos. Junto à porta, há um outro frigorífico, este munido exclusivamente de águas.
É ali que converso com Mendonza, o teclista e melhor amigo do protagonista da noite. Conheceram-se numa festa das listas da Secundária de Estarreja. Gostavam dos mesmos artistas e queriam o mesmo da vida. O Mendonza lembra-me que “a prova cega do Fernando Daniel no The Voice foi a mais vista do mundo” e eu pergunto-lhe se o amigo não quis desistir quando, antes disso, fora eliminado por duas vezes do Factor X, uma delas logo nas primeiras fases. Mendonza parece não perceber a pergunta. Desistir só é uma opção quando há outro caminho por onde seguir. Para o Fernando, era aquilo ou nada. Tento também saber se aos vinte anos, tendo deixado de tocar em bares do distrito de Aveiro por se ter tornado num dos artistas mais conhecidos do país, não houve um momento de distração ou, como se costuma dizer, deslumbramento. Mendonza ri-se e diz que quando os colegas de escola saíam à noite, eles ficavam a ensaiar numa garagem. O sonho não era serem músicos para chegarem a sítio nenhum. Era serem músicos para serem músicos. A partir daqui, tornar-se-á muito difícil para mim não estar por eles.
Entrevisto o Mike, o Ivo e o Tiago, os restantes membros da banda, de gostos muito variados, diferentes do estilo que irão tocar daqui a nada. O Mike, baterista, é fã dos Queens of the Stone Age e dos Foo Fighters, o Ivo e o Tiago gostam mais de pop-rock, mas parecem sinceros ao falarem da admiração que sentem pelo trabalho da estrela da companhia. Pergunto-lhe se, caso não fizessem parte da banda, estariam na plateia hoje e eles nem hesitam, por admirarem a voz e as melodias do Fernando Daniel.
Falta menos de hora e meia para o início do concerto e avisam-me que finalmente poderei falar dois minutos com o artista. A conversa dura vinte minutos. Ele entra no camarim, a respirar através de um nebulizador. Pergunto-lhe se está cansado. Confessa-me que a semana foi dura. Passou dois dias sem falar para proteger a voz e, mesmo na festa de anos da irmã, ele, normalmente tão efusivo em momentos desses, mal cantou os parabéns. Não é preciso grande astúcia para se perceber que está nervoso. Nada lhe foi dado e tem medo de que, à mínima falha, tudo lhe seja tirado. Diz-me que sonha tornar-se num porta-estandarte da música portuguesa no estrangeiro. Falamos sobre a relação com o resto da comitiva. Fernando diz que tem com todos um compromisso para a vida, o que me faz lembrar aquela frase do Bruce Springsteen: “nobody wins unless everybody wins”.
Percebo agora que a capacidade de superação que toda a gente elogiou nas duas últimas horas não se aplica só à música. Fernando quer ser o melhor pai, o melhor namorado, o melhor tio, o melhor irmão e diz-me que dá mais valor a isso do que àquela noite. Não deixa que a música o impeça de estar presente e por isso volta para Aveiro logo a seguir a todos os concertos, exceto quando, em noites como esta, a namorada e a filha o acompanham. Assisto da primeira fila à competição infinita entre o Fernando e o Daniel. Pergunto-lhe como se sente ao ver centenas de pessoas à espera na fila por uma fotografia e ouço-o falar do dever para com as pessoas que o admiram. Diz-me que já teve fãs a dizer o quanto a música dele as ajudara a superar depressões e ideações suicidas. Fala-me dos troles online com simpatia e sem rancor, garante serem sempre rapazes da sua idade e acha que vem tudo de um lugar de frustração, parece ver neles uma espécie de Fernandos Daniéis rejeitados em todos os castings, remetidos a um papel de figurantes num biopic sobre os próprios. Digo-lhe ser estranho um artista como ele conseguir passar a entrevista inteira sem por um segundo se referir a si mesmo, aos seus desejos, aos seus sentimentos e pergunto-lhe se não lhe faz impressão ter como público uma plateia aparentemente tão diferente de si. Ele responde que sim, que esperava ver os concertos cheios de homens de vinte e poucos anos, mas não parece extraordinariamente incomodado com isso.
Despedimo-nos. Janto a correr com a malta do som e vou para um segundo camarim ouvi-lo aquecer a voz, ensaiando escalas enquanto sopra para uma palhinha dentro de uma garrafa de água. Enquanto o Fernando, deitado no sofá, canta os primeiros versos de Outra Vez tal e qual como fará a seguir no concerto, passo em revista as latas de cera e um horário detalhado do dia, sobre o qual alguém escreveu a marcador “Desfruta do teu dia” e “Vais partir tudo!!!”. O treinador vocal elogia-lhe a voz enquanto Fernando anuncia estar muito tenso. Já nos bastidores, beija a filha e revira os olhos em pânico ao ouvir a multidão chamar por si.
Passeio por entre o público, que aguarda ansiosamente pelo que aí vem e depois caminho com a banda por trás do palco até à boca de cena. Fernando Daniel benze-se umas dez vezes e sobe, enfim, as escadas. Agora é que vai começar.
As canções que ouço sucederem-se são todas sobre sentimentos limpos: o amor pela filha e pela companheira; as promessas para o futuro que se repetem em pelo menos três dos seus sucessos. Na única música sobre o fim de uma relação, os amantes continuam a respeitar-se e a gostar um do outro. Em Metade, cantada a meias com a Beatriz Rosário, confessa ter falhado mas o mal terá sido, acima de tudo, falta de vontade (“Faltou vontade, eu sei que é tarde/ Agora, o amor ficou lá fora”). As canções são linearmente autobiográficas, e os defeitos de que falam parecem coisas vagas e ligeiras, mas disso ele não tem grande culpa: o pobre rapaz parece ser bom tipo e Deus sabe como é difícil criar arte a partir da bondade. A complexidade das letras não é, talvez por isso, avassaladora.
Depois de cantar a Prometo com o tio, o Diego desce de palco, meio atrapalhado por ter ouvido dezasseis mil pessoas gritarem o seu nome. Nem dois minutos depois, o garoto já está nos camarins a aviar um pacote de Cheetos Rolitos como gente grande enquanto eu procuro maneira de abrir uma cerveja, até ser acudido por um dos roadies, que primeiro finge ir abrir a garrafa com o olho e só depois a abre realmente com um isqueiro. Dou um high-five ao Diego e volto para o Golden Circle, de onde ouço o resto do concerto. Agir entra em palco, ele que, tal como a Beatriz Rosário, se desfaz em elogios sobre o amigo. Depois, já perto do fim, Carlão fará o mesmo.
Fernando Daniel vai agradecendo ao The Voice e a uma longa lista de patrocinadores e ainda há tempo para que chova artificialmente em palco até que chega o momento mais apoteótico da noite: canta o Voltas, o seu maior sucesso, sai de cena e regressa sozinho para cantar no encore a Melodia da Saudade, a tal balada dedicada ao avô que eu ouvira ensaiar à chegada. Fernando chora a bom chorar. Não é o único. À minha volta, vejo membros da comitiva com lágrimas nos olhos, fãs entre abraços e maquilhagens desbotadas e até pais que vieram acompanhar os filhos e a quem agora — sorte macaca — lhes entrou qualquer coisa para o olho. Ainda há tempo para mais uma canção e para uma explosão de confetti, à Coldplay.
Sai de palco, abraça toda a gente. Até eu recebo um abraço. Dou-lhe os parabéns e agradeço-lhe por aquela noite. Daqui a um mês, repete a dose no Pavilhão Rosa Mota. Fernando Daniel não tem tempo para esperar.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”