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Os Óscares vistos do sofá: Bonnie, Clyde & Humberto Bernardo

Este é o relatório de uma noite em que tudo serviu para criticar Trump e aplaudir de pé – até que alguém sabotou a cerimónia. Terão sido os russos? Só podem ter sido os russos.

00h30. Há poucas coisas tão certas na vida como a NicoleKidman aparecer nos Óscares com um vestidinho rosa pálido cor da pele, arrastando o marido pela mão como quem está acorrentado a uma bola de ferro. Assim que nos certificamos de que isso acontece e de que está tudo no sítio certo, deixamos a passadeira vermelha seguir o seu destino e vamos tratar do chá, do roupão e das pantufas para o resto do serão.

1h30. Começa a cerimónia. Deixaram-se daquilo de pôr o apresentador a cantar no número de abertura e arranjaram um cantor. Justin Timberlake entra pelo Dolby Theatre adentro a cantar o seu êxito boa onda “Can’t Stop the Feeling”, que, na verdade, todos conhecemos por “Aquela do Dance, Dance, Dance”.

1h33. O Dev Patel continua com aquele ar de quem acaba de ser abandonado pelo irmão mais velho no meio dum país estrangeiro e não faz ideia do que se passa ou de como foi parar dentro daquela roupa.

1h36. Jimmy Kimmel precisou de exactamente um minuto para fazer a primeira piada sobre Trump: “Esta cerimónia está a ser vista por milhões de americanos e por 225 países que agora nos odeiam.”

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1h41. Jimmy Kimmel para Isabelle Huppert: “Tenho a certeza de que falo em nome de todos nesta sala: não vimos o “Elle”, mas adorámos o filme.” Boa piada – e corajosa. Que pena ser verdade.

1h42. Kimmel ainda não acabou o monólogo de abertura e já sinto saudades… de Billy Cristal.

1h43. Kimmel brinca com a “sobrevalorizada” – como lhe chamou Trump – Meryl Streep. A sala inteira aplaude Streep de pé. E isto ainda só começou há 13 minutos.

1h49. Primeiro Óscar da noite. O carismático Mahersala Ali, de “Moonlight” é o Melhor Actor Secundário. Agradece aos professores, à equipa do filme e à mulher, que teve uma filha há quatro dias. Está genuinamente emocionado.

1h52. Primeiro intervalo. Vamos para o estúdio da SIC com o crítico João Lopes, o actor Filipe Vargas e a jornalista Sílvia Lima Rato. Sílvia começa a tentar dizer Mahershala Ali das formas mais fascinantes.

2h14. Dwayne Johnson está a dizer qualquer coisa em palco com um ar muito respeitável. Bate-nos uma saudade de ter o Jack Nicholson na primeira fila. O Jack Nicholson, de óculos escuros, de noite, dentro duma sala, a rir, na primeira fila. Porquê? Porque era o Jack Nicholson.

1h56. Começamos a achar que fomos injustos para Kimmel. “Esta é a parte gira do espectáculo”, diz ele, “a parte em que todos ainda têm esperança. Daqui a bocado, vão começar a perceber que colaram as mamas ao vestido para nada.”

2h09. As actrizes de “Elementos Secretos” chamam ao palco Katherine Johnson, uma das matemáticas negras que, na vida real, foram chamadas a auxiliar a NASA na corrida ao Espaço. Muito idosa e numa cadeira de rodas, a senhora murmura um “Thank you” sumido. A sala volta a aplaudir de pé.

2h11. “O.J.: Made in America” ganha o Óscar para melhor documentário. Nestas coisas em que vêm vários agradecer um prémio, há sempre um que teve um trabalho do caraças, ganhou um Óscar, fartou-se de pensar no discurso e não consegue dizer nada porque o primeiro gajo gastou o tempo todo a agradecer à mulher e aos filhos.

2h14. Dwayne Johnson está a dizer qualquer coisa em palco com um ar muito respeitável. Bate-nos uma saudade de ter o Jack Nicholson na primeira fila. O Jack Nicholson, de óculos escuros, de noite, dentro duma sala, a rir, na primeira fila. Porquê? Porque era o Jack Nicholson.

2h23. Kimmel anuncia o discurso da Presidente da Academia: “Uma coisa rara nestes dias: um Presidente que acredita nas artes e nas ciências.” Um bocadinho forçado, né, Jimmy?

2h25. Acaba o discurso da Presidente, Cheryl Boone Isaacs. Como sempre, tão empolgante como o baptizado da filha duma prima da nossa ex-mulher a que tivemos de ir porque ainda ninguém sabe da separação.

2h27. Kimmel manda que chovam rebuçados na sala – e chovem rebuçados na sala.

2h30. São entregues os Óscares do som. Este ano, tomámos a resolução de desistir de tentar perceber a diferença: montagem de som para “Primeiro Encontro”; mistura de som para “O Herói de Hacksaw Ridge”. Claro. Óbvio. Só podia.

2h33. Sílvia Lima Rato continua a tentar dizer “Mahershala Ali”. Em média, sai qualquer coisa como: “Marchálali”. Não estamos a dizer que é fácil.

2h36. Vince Vaughn, com ar de Jack Nicholson, óculos de Jack Nicholson, mesmo não sendo escuros, está em palco para homenagear os laureados com o Óscar honorário com o ar blasé de Jack Nicholson . E isso, amigos, diz tudo. Vince Vaughn. É o Jack Nicholson a que temos direito nos dias que correm.

2h40. Os Óscares honorários vão para Jackie Chan, Frederick Wiseman, para a editora Anne V. Coates e para o director de casting Lynn Stalmaster. O Dolby Theatre já vai no terceiro ou quarto aplauso de pé numa hora e pouco.

2h44. Viola Davis ganha finalmente o seu primeiro Óscar por “Vedações”. É a melhor actriz secundária, num lote onde três das cinco candidatas eram actrizes negras – como muda bem o mundo, apesar dos pesares. Agradece ao “captain, my captain Denzel Washington”, ao marido que também tem uma pinta do caraças e faz, como de costume, um grande discurso. Fala das histórias que quer contar. As histórias das pessoas que viveram, amaram e perderam, as pessoas anónimas que estão enterradas em qualquer cemitério, as pessoas reais.. “Tornei-me artista porque somos a única profissão que festeja o que significa estar vivo.”

2h55. A sala põe-se de pé para aplaudir Shirley Maclaine, que vem entregar um prémio com Charlize Theron. Até nós já nos pomos de pé e fazemos continência à televisão – já nos estávamos a sentir mal.

2h58. Depois de “Uma Separação”, Asghar Farhadi volta a ganhar o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira com “O Vendedor”. É, provavelmente, inédito, um mesmo realizador vencer por duas vezes a categoria. Farhadi, que é iraniano, não está presente e manda ler uma mensagem muito clara, explicando que não está em protesto contra Trump e em nome dos cidadãos do seu país e dos outros países cuja entrada nos Estados Unidos a nova administração tentou proibir. É só mais uma agressão, explica, a povos que já são vítimas dentro dos seus próprios países.

3h56. Javier Bardem e Meryl Streep vêm entregar um prémio. Streep já tem dificuldade em tossir sem que se ponha tudo a aplaudir de pé. Bardem continua a falar inglês como quem decidiu mascar duas pastilhas Gorila ao mesmo tempo e agora não tem o tampo duma mesinha onde as colar.

3h04. Começa a dar-nos a fome.

3h05. Será que a Nicole Kidman ainda está a segurar o marido pela mão?

3h06. E o Jack? Há quantos anos é que ninguém vê o Jack?

3h08. Gael García Bernal, que tem quase 40 anos, mas que chamaram para entregar os prémios de animação porque acham que ele tem a altura duma criança, lá arranja maneira de dizer que como trabalhador migrante, mexicano e ser humano, é contra todos os muros. Mais um aplauso de pé. Aqui em casa, levantamo-nos do sofá e voltamos a cair.

3h15. Lá aparece um Óscar para “La La Land”: melhor direcção de produção. O senhor que recebe o prémio lê o discurso. Todo. E com a emoção de quem está a ler a bula dum supositório.

3h17. Um longo gag em que uns turistas que estão a fazer um tour por Hollywood são metidos na sala, durante a cerimónia, supostamente sem saberem. Soou, certamente, melhor quando foi pensado.

3h32. A Scarlett Johansson está do caraças e agora é que ninguém lhe dá um filme de jeito.

3h34. Seth Rogen vem entregar um prémio com Michael J. Fox. Foi você que pediu um aplauso de pé?

3h35. “O Herói de Hacksaw Ridge” e, portanto, Mel Gibson, recebe o segundo óscar: melhor montagem. É o primeiro filme da noite a receber uma segunda estatueta. Well done, Mel.

3h43. David Oyelowo e Salma Hayek vêm entregar os óscares para as curtas-metragens: documental e de ficção. Que atire a primeira pedra aquele que, quando Oyelowo falou em “big films in short packages”, não olhou para o decote da Salma.

3h49. Kimmel: “Já vamos com mais de 2h de programa e Trump ainda não fez um tweet. Estou preocupado.” E manda-lhe uma mensagem a perguntar se está tudo bem.

3h56. Javier Bardem e Meryl Streep vêm entregar um prémio. Streep já tem dificuldade em tossir sem que se ponha tudo a aplaudir de pé. Bardem continua a falar inglês como quem decidiu mascar duas pastilhas Gorila ao mesmo tempo e agora não tem o tampo duma mesinha onde as colar.

3h59. Era a única nomeação para “Silêncio”, de Scorsese – o excelente Rodrigo Prieto – mas a melhor fotografia também vai para “La La Land”. O galardoado é um gigante sueco chamado Linus Sandgren, que agradece contido, mas com emoção. Kimmel rápido e brilhante: “Linus, lamentamos pelo que aconteceu na Suécia na semana passada!”

4h01. Uma série de actores lêem mensagens reais, de ódio das que se escrevem na net sobre eles. Excelente momento. E foi um bocadinho em que ninguém se pôs de pé nem falou de Trump.

4h11. Sílvia Lima Rato continua a tentar. Agora, é mais “Marcel Ali”.

4h13. Justin Hurwitz vem receber o óscar de melhor banda sonora por “La La Land”. É o terceiro óscar para o “Lálálá” (petit nom) – querem ver que, afinal, ainda limpa isto? Justin tem 31 anos. E um Óscar. Obrigado, Justin, por nos fazeres sentir uma merda.

4h16. Scarlett Johansson vem apresentar um prémio. Levantamo-nos imediatamente a aplaudir. Ai, agora fica tudo sentadinho?! Agora que a rapariga merec… Ah, deixem lá.

4h24. In Memoriam. Entre outros, recordam-se Gene Wilder, Michael Cimino, Emmanuelle Riva, Prince, Abbas Kiarostami, Curtis Hanson, Zsa Zsa Gabor, Debbie Reynolds, Carrie Fischer – e Bill Paxton, que morreu anteontem, aos 61 anos.

4h29. A cerimónia tem corrido bem, com excelentes momentos gravados, razoável distribuição dos prémios e rapidez, mas só agora há um momento hoo-ha! cá em casa. Óscar de melhor argumento original para “Manchester by the Sea”, de Kenneth Lonergan.

5h11. A maior gaffe de sempre. Esqueça tudo. Esqueça o Humberto Bernardo naquele dia em que trocou a 2ª dama de honor com a Miss Portugal e depois teve de ir trocar as faixas, as flores e a coroa às raparigas. Esqueça. O Bernardo está salvo. O Bernardo pode, enfim, dormir em paz. Estes tipos fizeram a maior asneira de sempre, perante a maior plateia de sempre.

4h33. Amy Adams está vestida para uma festa no espaço. Podia ser o date do C-3PO.

4h35. Melhor argumento adaptado para “Moonlight”. Discurso com grande power de Barry Jenkins e, sobretudo, Tarell Alvin McCraney. Dedicado aos miúdos negros das pequenas cidades, como eles eram e conseguiram ali chegar.

4h41. Óscar de melhor realização para Damien Chazelle, que, aos 32 anos, se torna o mais jovem de sempre a vencê-lo e que nos faz sentir outra vez terrivelmente acerca do que temos andado a fazer com o nosso tempo. É já o quinto Óscar para “La La Land” – mais quatro ou cinco, portanto, do que provavelmente merecia.

4h47. A nossa alma descansa. Numa das mil boas montagens que passam esta noite, surge, finalmente, Jack Nicholson. É o discurso em que agradece, há muitos anos, o Óscar por “Voando sobre um Ninho de Cucos”: “Isto prova que há tantos malucos na Academia como noutro sítio qualquer”.

4h50. Brie Larson anuncia Casey Affleck como melhor actor e ele dá um saltinho na cadeira. Parece genuinamente surpreendido. É beijado pelo irmão Ben e o competidor Ryan Gosling aplaude-o de pé com ar de grande dignidade. Humilde, Casey começa por se dirgir a Denzel Washington, o outro favorito, para dizer que foi uma das pessoas que o ensinou a representar e que só esta noite, há pouco, falou com ele a primeira vez. E termina, genuinamente grato e simples: “I wish I had something bigger and more meaningful to say”.

4h57. O senhor Leonardo DiCaprio entrega o Óscar de Melhor Actriz a Emma Stone. É o sexto Óscar para “Lálálá” e estamos a ver isto mal parado, mas isso não é o pior. O pior é que, como Kimmel dizia a início, ninguém viu “Ela”. Por isso é que se perde a oportunidade histórica de reconhecer um dos maiores papéis de uma das maiores actrizes que veremos actuar – Isabelle Huppert, 63 anos – para o dar à jovem Emma, que, aos 28, ainda vai fazer muito melhor do que aquilo.

5h02. Warren Beatty e Faye Dunaway, em homenagem aos 50 anos de “Bonnie & Clyde”, vem entregar a última estatueta da noite. A sala põe-se de pé. Nós, em protesto pela Scarlett, amuamos.

5h08. A hora do desastre. Beatty diz que o prémio de Melhor Filme vai para e… faz suspense; Dunaway ri e diz baixinho: “És horrível…” Enternecedor. Ele volta o conteúdo do envelope para ela e ela lê: “La La Land”. A esperada ovação na sala. Toda equipa do “Lalala” sobe ao palco. Discursos para lá e para cá, o elogio da comunidade artística, o elogio dos sonhos, o último recado à administração Trump: a repressão é inimiga da civilização. E de repente…

5h11. A maior gaffe de sempre. Esqueça tudo. Esqueça o Humberto Bernardo naquele dia em que trocou a 2ª dama de honor com a Miss Portugal e depois teve de ir trocar as faixas, as flores e a coroa às raparigas. Esqueça. O Bernardo está salvo. O Bernardo pode, enfim, dormir em paz. Estes tipos fizeram a maior asneira de sempre, perante a maior plateia de sempre: já ninguém vislumbra Damien Chazelle e é um dos produtores de “La La Land” quem, com enorme dignidade, diz: “Atenção, houve um erro, quem ganhou foi o ‘Moonlight’, isto não é uma brincadeira”. A sala demora minutos a decidir se acredita ou não. Nós estamos de pé, mas desta vez sem aplaudir, só de braços caídos, caneca na mão, boca aberta, a derramar o resto do chá em cima dos nossos apontamentos. O pobre Warren Beatty explica o melhor que pode: que não estava a fazer suspense antes. O envelope que lhe deram dizia: Emma Stone, “La La Land” . Por isso, o virou para Faye, que disparou o nome do filme que lá estava. O pessoal de “Moonlight” começa finalmente a acreditar e a abraçar-se. Sobem ao palco enquanto a realização esconde habilmente a saída da equipa de “La La Land”. Barry Jenkins e os produtores fazem, assim, o segundo discurso de Melhor Filme da noite. Desta vez, o elogio não é para os sonhadores, mas para os marginalizados.

5h15. A noite acaba. “La La Land”, cuja maior crítica que se lhe podia fazer é que seria um filme facilmente esquecível, afinal vai ficar para sempre. Ainda se farão filmes sobre isto. E o mais trágico é que Hollywood, que passou a noite a fazer pouco de Trump, acabou a entregar-se de bandeja. Os tweets, tão pedidos, começam dentro de momentos.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).

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